Como a ciência pode conversar
com os saberes ancestrais?
A origem da palavra “ciência” vem do latim Scientia,
que significa conhecimento ou sabedoria. Ela tem por objetivo descrever,
explicar e prever fenômenos através de um método, o qual pode ser reproduzido.
Esse mecanismo busca respostas para perguntas ainda não respondidas ou que, com
outra visão, podem ser contestadas, de forma a resolver problemas e contribuir
para a sociedade.
Os saberes ancestrais, por sua vez, são conhecimentos produzidos e
guardados por povos originários, os quais são perpassados sistematicamente aos
seus descendentes através de seus métodos próprios, de vivências individuais ou
comunitárias e de diálogo, igualmente com objetivo de resolver problemas
diversos.
Se observarmos atentamente essas duas definições, elas
se assemelham. Ambas se utilizam de métodos para explicar fenômenos, buscar
respostas e, consequentemente, resolver questões. Muitas vezes, na ciência os
laboratórios são ambientes pequenos, fechados e controlados, enquanto nos
saberes ancestrais a própria natureza, em sua imensidão, é o campo de estudo e
o próprio laboratório.
Considerando os objetivos dos saberes modernos e
ancestrais, não parece haver uma dualidade entre ambos, pois eles se encontram.
O que aconteceu na ciência clássica, até certo tempo atrás, foi uma negação de
um contexto holístico e espiritual, contido, desde sempre, nas práticas
ancestrais. Entretanto, com o advento da física quântica, muitos dos fenômenos
que a física clássica não explicava passaram a ser estudados e então,
atestados.
Particularmente na área da saúde, estudos
epidemiológicos têm trazido potentes resultados na investigação ampla da
espiritualidade – característica fortemente ancestral – no âmbito da saúde
pública. O campo da epidemiologia tem desempenhado um papel fundamental na
resposta a questões de longa data sobre a espiritualidade, sua associação com a
saúde e o tratamento por diferentes diagnósticos.
Porém, essas questões foram investigadas sob a ótica
dos conhecimentos ancestrais, respeitando a cosmovisão que os povos originários
carregam, provavelmente os achados não foram de muita novidade. Isso porque,
como dito anteriormente, os ancestrais já trazem, há milhares de anos, o
entendimento e um olhar holístico sobre a vida. Para eles, a espiritualidade
não está à parte; ela faz parte do todo.
Então, se ambos os conhecimentos querem resolver
problemas e contribuir para uma sociedade melhor, o que falta para esta conversa
franca entre a ciência moderna e os saberes ancestrais? Para haver qualquer
diálogo, é necessário que os dois lados estejam abertos tanto a falar quanto a
escutar. Sem essa disposição bilateral, não há troca de informações.
Entretanto, os povos originários já foram – e são – muito invadidos de diversas
maneiras. Por outro lado, embora a ciência moderna não funcione sob verdades
absolutas, por estar constantemente em investigação e movimento, refutando e
construindo hipóteses, muitas vezes os cientistas têm históricos de quererem
impor suas próprias verdades (as fazendo absolutas).
É justamente neste ponto que, como sociedade,
desperdiçamos a capacidade de evoluir juntos. Não há escuta genuína acerca de
um saber que seja diferente do meu próprio. Isso muitas vezes perpassa por
questões egóicas, pois quando me coloco como detentor de um conhecimento que
julgo ser absoluto, não estou aberto a um diálogo verdadeiro, de maneira que o
outro traga o que tem a contribuir sobre uma tal questão. Logo, não permito a troca
e, tampouco, existe uma colaboração mútua. E nesse jogo de pouca humildade, nós
todos perdemos.
Em contrapartida, o campo de estudo de substâncias enteógenas (que
significa, “manifestação interior do divino”), presentes em vários rituais
ancestrais vem sendo fortemente estudado mundialmente em cenários controlados
de laboratório[. Especialmente
no Brasil, grupos de pesquisadores de universidades públicas federais têm se
dedicado e ganhado destaque internacional neste âmbito, o que é um avanço para
a sociedade e fortalece à saúde de maneira geral.
A Política Nacional de Práticas Integrativas e
Complementares do Sistema Único de Saúde, aprovada em 2006 pelo Ministério da
Saúde, traz a importância de resgatar e valorizar o conhecimento tradicional e
ancestral, além de promover a troca de informações entre grupos de usuários,
detentores de conhecimento tradicional, pesquisadores, técnicos, trabalhadores
em saúde e representantes da cadeia produtiva de plantas medicinais e
fitoterápicos.
Já a Organização Pan-Americana da Saúde
(OPAS) aponta que as medicinas tradicionais complementares e integrativas
constituem um importante modelo de cuidado com a saúde, ressaltando a
importância de suas práticas de forma coordenada, e, assim, considerando o
indivíduo em sua integralidade, singularidade e complexidade. Há uma ênfase
para uma abordagem holística e focada no paciente para cuidados de saúde,
incluindo aspectos mentais, emocionais, funcionais, espirituais, sociais e
comunitários. Entretanto, na prática clínica em diferentes serviços, a inclusão
da dimensão espiritual – e outros tantos componentes dos saberes ancestrais –
no contexto de saúde ainda é insipiente, ou muitas vezes, negado. Ainda se vive
uma realidade de resistência e soberania da medicina convencional em relação à
ancestral.
Estamos juntos num mesmo barco, e poderíamos remar em
direção a um só ponto, com colaboração, mas muitas vezes ainda escolhemos, na
prática, remar em direções distintas, somente por não dialogar com aqueles que
investigam diferente do que estou acostumado a fazer ou viver. E assim
permanecemos a passos de formiga em tantas hipóteses que poderiam ser
impulsionadas em contribuição mútua de saberes, de maneira complementar.
Portanto, a ciência pode conversar com os saberes
ancestrais quando seus agentes estiverem dispostos a ouvir humildemente o que
os verdadeiros detentores desses conhecimentos têm a dizer sobre seus métodos e
práticas, despedindo-se de visões ou conceitos pré-estabelecidos para que
possam, de fato, escutá-los. Desta forma, não haveria necessidade de qualquer
imposição, mas sim, de colaboração. Sem dualidade – em unidade – caminharíamos
mais rapidamente para o objetivo tão desejado de ambos os saberes: explicar os
fenômenos e achar respostas para os problemas.
Fonte: Por Ingrid Guerra Azevedo, no Le Monde
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