O Quebra-Cabeças dos Juros no Brasil
A taxa básica de
juros brasileira, a taxa Selic (Sistema Especial de Liquidação e Custódia), é
historicamente muito elevada. Neste momento, a taxa real de
juros (Selic ajustada pela inflação) é a segunda maior do mundo a 9,48%,
perdendo apenas para a turca (13,33%). Mesmo em países como México e África do
Sul, economias periféricas de grande porte e baixa renda per capita, as taxas
são significativamente menores que as do Brasil. Este nível da Selic tem fortes
implicações para a economia brasileira, já que ela serve de régua para todas as
outras taxas, do consumo ao investimento e, inclusive, para as que são pagas
pelo Tesouro Nacional como remuneração de boa parte dos seus títulos de dívida.
O patamar atual da taxa Selic é negativo tanto para as famílias, quanto para as
empresas, encarecendo o seu endividamento e, portanto, deprimindo o consumo e
investimento. Como consequência, a atividade econômica, especialmente do
setor industrial intensivo em capital e produtor de bens duráveis, é
negativamente afetada.
Na atual
conjuntura, a taxa Selic caiu de 13,75% em janeiro para 10,50% em maio de 2024.
Nível que foi mantido até o mês de setembro, quando o Banco Central do Brasil
(BCB) passou a aplicar uma política monetária mais restritiva. O aumento de
0,25 p.p. em setembro, 0,5 p.p. em novembro e, finalmente, de 1 p.p. em
dezembro elevaram a taxa básica ao patamar de 12,25% ao ano, sendo esperados
ajustes de mesma magnitude nas próximas duas reuniões. Isto num contexto no
qual o Federal Reserve – banco central norte-americano, cujas
decisões são de grande peso para o rumo da política monetária brasileira – e o
Banco Central Europeu têm adotado uma postura de corte das suas taxas de
referência. Mas por que então os juros brasileiros são tão elevados? Existe uma
prolífica, mas muitas vezes confusa, discussão sobre esse tema entre
economistas brasileiros, com posições diferentes sobre as causas desse
fenômeno.
A posição do Copom,
Comitê de Política Monetária do BCB, na ata da última reunião do ano de 2024
indica que a “conjunção de um mercado de trabalho robusto, política fiscal
expansionista e vigor nas concessões de crédito amplo segue indicando um
suporte ao consumo e consequentemente à demanda agregada”. Esta posição do BCB
se fundamenta no ponto de vista teórico do “Novo Consenso Macroeconômico”,
amplamente integrado pelos agentes do mercado financeiro como modelo de
comportamento dos agregados econômicos. A inflação é entendida, sob esta ótica,
como um fenômeno puramente monetário essencialmente causado pelo crescimento
excessivo da demanda agregada face à oferta.
A expansão recente
das despesas em benefícios sociais como a Previdência Social, Bolsa Família e o
Benefício de Prestação Continuada (BPC), associadas ao crescimento real do
salário mínimo (referência para parte desses benefícios), estaria estimulando
demasiadamente o consumo das famílias e, logo, a demanda agregada. O mercado de
trabalho, por consequência, estaria sobreaquecido, com a taxa de desocupação em
6,4%, próxima à mínima histórica. Como não há aumento de produtividade ou
capacidade produtiva no lado da oferta acompanhando o aumento da demanda,
haveria uma pressão inflacionária criada pelo governo. O BCB está, na prática,
afirmando que o crescimento da atividade econômica e o aumento de renda e
emprego para os mais pobres são as causas maiores da inflação. Seu dever,
portanto, seria conter tais tendências com sua única arma: o aumento da taxa de
juros, utilizada de forma mais contundente do que por qualquer outro banco
central.
A denúncia contra o
expansionismo fiscal, todavia, vai além do estímulo à demanda agregada,
convocando novos argumentos repercutidos na mídia. O BCB, assim como os grandes
bancos e corretoras privadas de ativos, demonstram grande preocupação com o
tamanho da Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) brasileiro. O que teria levado
o BCB a aumentar o prêmio de risco brasileiro seria o aumento do déficit
público e o consequente descontrole fiscal. O risco de não pagamento seria
agora maior, justificando a alta de juros. Os efeitos de um aumento da
Selic são, porém, contraditórios no que diz respeito ao equilíbrio fiscal. A
degradação do déficit fiscal se deve hoje sobretudo ao elevado custo do serviço
da dívida e não tanto devido aos gastos correntes ou de investimento. A última
decisão do BCB tem o potencial de elevar a DBGG em R$50,3 bilhões por ano. Este
valor representa aproximadamente 71% do valor do pacote de cortes anunciado
pelo ministro Fernando Haddad em 29 de novembro de 2024, de acordo com os
cálculos do próprio BC.
O efeito do aumento
da Selic parece ainda mais grave quando se leva em conta que uma parcela
substancial da dívida pública brasileira (em torno de 43%) é composta por
títulos públicos indexados à Selic, as Letras Financeiras do Tesouro (LFT).
Esses títulos, apelidados de papéis da crise, são altamente populares em
momentos de instabilidade econômica devido à solidez dos seus rendimentos e ao
seu baixo risco. Porém, por serem pós-fixados, sua custosa emissão representa
um fardo para os cofres públicos. Pressionado pelo mercado, o BCB tem realizado
leilões extraordinários de compra de títulos pré-fixados. Estes títulos, com
juros fixos, sofrem uma queda nos seus preços em momentos como o atual,
forçando agentes, sobretudo estrangeiros, a vender os seus títulos e,
subsequentemente trocar reais por dólares, aumentando a pressão de
desvalorização do primeiro. No entanto, as necessidades de financiamento
público tornam a emissão e venda de novos títulos inevitável. Dada a aposta na
crise futura da economia brasileira, o mercado demonstra preferência por
títulos pós-fixados. A emissão desses títulos, porém, piora o perfil da dívida,
tornando-a mais custosa e suscetível a variações futuras nos juros. Se cria
assim uma encruzilhada, na qual as próprias preocupações quanto ao déficit
público acabam por criar um círculo vicioso de endividamento e oportunidades de
ganho financeiro para o mercado via aumento de juros.
Outro argumento
recorrentemente usado para justificar as brutais variações da Selic diz
respeito ao seu efeito limitado nas concessões de crédito amplo. Para um melhor
entendimento do argumento, é proveitoso escrutinar o discurso do anterior
presidente do BCB, Roberto Campos Neto, durante uma apresentação no Congresso.
A autoridade máxima de política monetária destacou o papel da estrutura do
mercado de crédito como causa para as altas da Selic. O crédito direcionado –
isto é, crédito com fins específicos de médio e longo prazo, concedidos, por
exemplo, pela Caixa, pelo Banco do Brasil e pelo BNDES – teria participação
muito alta no mercado, correspondendo a 41,2% do total das concessões em 2022,
mesmo que esse percentual esteja em trajetória de queda. As taxas de juros
dessa modalidade de crédito seriam pouco sensíveis à alterações na Selic, o que
justificaria uma política monetária mais agressiva. Dessa maneira, a potência
da política monetária do BCB estaria comprometida. Essa tese foi inicialmente
defendida por Pérsio Arida, ex-presidente do BCB e do BNDES, e é até hoje um
dos argumentos mais utilizados para atacar os bancos públicos brasileiros, que
oferecem a maior parte do crédito direcionado. Entretanto, observa-se que o
efeito da política monetária sobre o nível de preços é mais potente justamente
nos períodos em que os bancos públicos mais concederam crédito direcionado no
Brasil (notavelmente, entre 2008 e 2013).
Na posição
alternativa apresentada por Modenesi e Passos, este fenômeno ocorreria por
conta da presença, frequentemente ignorada pelos economistas do Novo Consenso
Macroeconômico, do repasse dos novos custos financeiros das firmas para os
preços finais em momentos de alta dos juros. Dessa maneira, a política
monetária restritiva seria paradoxalmente inflacionária, caso o efeito inicial
dos novos custos financeiros sobre os preços superasse o impacto defasado de
redução na demanda. Seguindo esse raciocínio, o crédito direcionado, por ser
menos sensível à Selic, atenuaria a alta dos custos financeiros para algumas
firmas, suavizando o efeito do repasse inicial sobre os preços. Ou seja,
tornar-se-ia possível um maior controle da inflação com menores impactos
negativos sobre a atividade econômica e o nível de emprego. A grande massa de
crédito direcionado criticada por Arida e Campos Neto, contribuiria para a potência
da política monetária, não o contrário.
Não é somente o
canal de transmissão crédito-custo o desprezado pelo discurso do BCB. De
maior relevância, o canal câmbio-custo também não consta nas discussões
levantadas no Copom. Na verdade, qualquer relevância dada a esta importante
variável equivaleria a (indesejada) absolvição do Tesouro, ou do baixo nível de
desemprego, como responsáveis pela inflação e elevação dos juros. Para aqueles
que consideram a centralidade deste canal para a política monetária, como o
economista Ricardo Summa, o principal determinante da inflação brasileira seria
o custo dos bens afetados pelas flutuações no câmbio. Essas flutuações estão
associadas ao efeito da taxa de juros sobre os fluxos de capitais,
nomeadamente, a forma com a qual um aumento na taxa de juros atrai capital
estrangeiro para o país, apreciando o câmbio (e vice-versa). Se o real está
mais valorizado, há a desaceleração da inflação importada e redução no prêmio
de exportação – o que contribui para a estabilidade do preço interno dos bens
exportados pelo Brasil. Variações na taxa de câmbio também afetam de forma
desmedida o nível de preços brasileiro devido ao seu efeito no IGP, índice ao
qual contratos de bens e serviços, pouco ou nada afetados por importações, como
aluguéis, seguros, ou eletricidade, são indexados. O efeito acentuado do câmbio
no IGP se deve ao fato do seu cálculo envolver variações mais sensíveis aos
preços de produtos voláteis a mudanças na cotação do dólar em relação à medida
de inflação junto dos consumidores, o IPCA.
Apesar de nunca
serem referidos no discurso oficial do BCB, os fluxos de capital são, ainda
assim, importantes variáveis para as decisões de política monetária. Visando
manter a atratividade do Brasil ao capital estrangeiro, o BCB é forçado a
manter as taxas de juros em um patamar constantemente elevado. No entanto, a
inflação representada pela depreciação do real em relação ao dólar não
responde, de forma automática, a um aumento dos juros, conforme evidenciado
pela escalada da moeda norte-americana após o anúncio do Copom. A preocupação
com o câmbio tornou-se clara ao longo das últimas semanas, quando o BCB
respondeu à escalada do dólar – que atingiu sua máxima histórica de R$6,29 no
último dia 18 de dezembro – com uma sucessão de leilões de reservas
internacionais. O valor total desses leilões foi de R$16,76 bi, ou 4,62% das
reservas, o que corresponde ao quarto maior leilão de dólares desde a
implementação do plano real é o maior desde de 2002. Em 20 de janeiro de 2025,
o BCB efetuou sua primeira intervenção do ano, com um leilão de 2 bilhões de
dólares.
A discussão a
respeito da taxa de juros brasileira engloba, então, diversos aspectos da
economia nacional. A posição do Brasil nas cadeias globais de valor e no
sistema financeiro internacional moldam a dinâmica de preços e de juros na
economia doméstica, refletindo a sua posição subordinada. Esses fatores, porém,
parecem ser elementos secundários para as decisões tomadas pela autoridade
monetária. O diagnóstico público do BCB se baseia sobretudo na ideia de que o
controle inflacionário se dá pelo efeito dos juros na demanda agregada
doméstica. Esta noção, disseminada pela mídia, de que a persistência da
inflação brasileira se deve a um sobreaquecimento da economia doméstica é um entendimento
equivocado dos mecanismos de política monetária vigentes no país.
As decisões do BCB
demonstram, mesmo que de forma velada, uma compreensão da importância da
cotação do dólar e do seu papel para o controle da inflação. A elevação da taxa
básica de juros parece visar, prioritariamente, a atração de capital
estrangeiro. Vale ressaltar que esse capital corresponde, em boa medida, a
montantes de dólares possuídos por investidores brasileiros, podendo ser
mantidos dentro ou fora do país a depender das condições macroeconômicas. Como
salvaguarda da estabilidade da economia brasileira, não basta que o BCB realize
operações emergenciais contra a variação cambial. São precisas medidas
estruturais que mitiguem a vulnerabilidade externa da economia nacional. Para
que o quebra-cabeças da taxa de juros brasileira seja solucionado, os fluxos de
capital têm que ser mantidos sob controle, por meio de medidas que dificultem a
retirada de dólares do Brasil ao menor sinal de instabilidade, reduzindo a
nossa endémica volatilidade financeira.
Fonte: Por Carolina
Reitermajer Viana e Claude Luca Oliveira Schwartz, no Le Monde
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