quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

O Quebra-Cabeças dos Juros no Brasil

A taxa básica de juros brasileira, a taxa Selic (Sistema Especial de Liquidação e Custódia), é historicamente muito elevada. Neste momento, a taxa real de juros (Selic ajustada pela inflação) é a segunda maior do mundo a 9,48%, perdendo apenas para a turca (13,33%). Mesmo em países como México e África do Sul, economias periféricas de grande porte e baixa renda per capita, as taxas são significativamente menores que as do Brasil. Este nível da Selic tem fortes implicações para a economia brasileira, já que ela serve de régua para todas as outras taxas, do consumo ao investimento e, inclusive, para as que são pagas pelo Tesouro Nacional como remuneração de boa parte dos seus títulos de dívida. O patamar atual da taxa Selic é negativo tanto para as famílias, quanto para as empresas, encarecendo o seu endividamento e, portanto, deprimindo o consumo e investimento.  Como consequência, a atividade econômica, especialmente do setor industrial intensivo em capital e produtor de bens duráveis, é negativamente afetada.

Na atual conjuntura, a taxa Selic caiu de 13,75% em janeiro para 10,50% em maio de 2024. Nível que foi mantido até o mês de setembro, quando o Banco Central do Brasil (BCB) passou a aplicar uma política monetária mais restritiva. O aumento de 0,25 p.p. em setembro, 0,5 p.p. em novembro e, finalmente, de 1 p.p. em dezembro elevaram a taxa básica ao patamar de 12,25% ao ano, sendo esperados ajustes de mesma magnitude nas próximas duas reuniões. Isto num contexto no qual o Federal Reserve – banco central norte-americano, cujas decisões são de grande peso para o rumo da política monetária brasileira – e o Banco Central Europeu têm adotado uma postura de corte das suas taxas de referência. Mas por que então os juros brasileiros são tão elevados? Existe uma prolífica, mas muitas vezes confusa, discussão sobre esse tema entre economistas brasileiros, com posições diferentes sobre as causas desse fenômeno.

A posição do Copom, Comitê de Política Monetária do BCB, na ata da última reunião do ano de 2024 indica que a “conjunção de um mercado de trabalho robusto, política fiscal expansionista e vigor nas concessões de crédito amplo segue indicando um suporte ao consumo e consequentemente à demanda agregada”. Esta posição do BCB se fundamenta no ponto de vista teórico do “Novo Consenso Macroeconômico”, amplamente integrado pelos agentes do mercado financeiro como modelo de comportamento dos agregados econômicos. A inflação é entendida, sob esta ótica, como um fenômeno puramente monetário essencialmente causado pelo crescimento excessivo da demanda agregada face à oferta.

A expansão recente das despesas em benefícios sociais como a Previdência Social, Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), associadas ao crescimento real do salário mínimo (referência para parte desses benefícios), estaria estimulando demasiadamente o consumo das famílias e, logo, a demanda agregada. O mercado de trabalho, por consequência, estaria sobreaquecido, com a taxa de desocupação em 6,4%, próxima à mínima histórica. Como não há aumento de produtividade ou capacidade produtiva no lado da oferta acompanhando o aumento da demanda, haveria uma pressão inflacionária criada pelo governo. O BCB está, na prática, afirmando que o crescimento da atividade econômica e o aumento de renda e emprego para os mais pobres são as causas maiores da inflação. Seu dever, portanto, seria conter tais tendências com sua única arma: o aumento da taxa de juros, utilizada de forma mais contundente do que por qualquer outro banco central.

A denúncia contra o expansionismo fiscal, todavia, vai além do estímulo à demanda agregada, convocando novos argumentos repercutidos na mídia. O BCB, assim como os grandes bancos e corretoras privadas de ativos, demonstram grande preocupação com o tamanho da Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) brasileiro. O que teria levado o BCB a aumentar o prêmio de risco brasileiro seria o aumento do déficit público e o consequente descontrole fiscal. O risco de não pagamento seria agora maior, justificando a alta de juros.  Os efeitos de um aumento da Selic são, porém, contraditórios no que diz respeito ao equilíbrio fiscal. A degradação do déficit fiscal se deve hoje sobretudo ao elevado custo do serviço da dívida e não tanto devido aos gastos correntes ou de investimento. A última decisão do BCB tem o potencial de elevar a DBGG em R$50,3 bilhões por ano. Este valor representa aproximadamente 71% do valor do pacote de cortes anunciado pelo ministro Fernando Haddad em 29 de novembro de 2024, de acordo com os cálculos do próprio BC.

O efeito do aumento da Selic parece ainda mais grave quando se leva em conta que uma parcela substancial da dívida pública brasileira (em torno de 43%) é composta por títulos públicos indexados à Selic, as Letras Financeiras do Tesouro (LFT). Esses títulos, apelidados de papéis da crise, são altamente populares em momentos de instabilidade econômica devido à solidez dos seus rendimentos e ao seu baixo risco. Porém, por serem pós-fixados, sua custosa emissão representa um fardo para os cofres públicos. Pressionado pelo mercado, o BCB tem realizado leilões extraordinários de compra de títulos pré-fixados. Estes títulos, com juros fixos, sofrem uma queda nos seus preços em momentos como o atual, forçando agentes, sobretudo estrangeiros, a vender os seus títulos e, subsequentemente trocar reais por dólares, aumentando a pressão de desvalorização do primeiro. No entanto, as necessidades de financiamento público tornam a emissão e venda de novos títulos inevitável. Dada a aposta na crise futura da economia brasileira, o mercado demonstra preferência por títulos pós-fixados. A emissão desses títulos, porém, piora o perfil da dívida, tornando-a mais custosa e suscetível a variações futuras nos juros. Se cria assim uma encruzilhada, na qual as próprias preocupações quanto ao déficit público acabam por criar um círculo vicioso de endividamento e oportunidades de ganho financeiro para o mercado via aumento de juros.

Outro argumento recorrentemente usado para justificar as brutais variações da Selic diz respeito ao seu efeito limitado nas concessões de crédito amplo. Para um melhor entendimento do argumento, é proveitoso escrutinar o discurso do anterior presidente do BCB, Roberto Campos Neto, durante uma apresentação no Congresso. A autoridade máxima de política monetária destacou o papel da estrutura do mercado de crédito como causa para as altas da Selic. O crédito direcionado – isto é, crédito com fins específicos de médio e longo prazo, concedidos, por exemplo, pela Caixa, pelo Banco do Brasil e pelo BNDES – teria participação muito alta no mercado, correspondendo a 41,2% do total das concessões em 2022, mesmo que esse percentual esteja em trajetória de queda. As taxas de juros dessa modalidade de crédito seriam pouco sensíveis à alterações na Selic, o que justificaria uma política monetária mais agressiva. Dessa maneira, a potência da política monetária do BCB estaria comprometida. Essa tese foi inicialmente defendida por Pérsio Arida, ex-presidente do BCB e do BNDES, e é até hoje um dos argumentos mais utilizados para atacar os bancos públicos brasileiros, que oferecem a maior parte do crédito direcionado. Entretanto, observa-se que o efeito da política monetária sobre o nível de preços é mais potente justamente nos períodos em que os bancos públicos mais concederam crédito direcionado no Brasil (notavelmente, entre 2008 e 2013).

Na posição alternativa apresentada por Modenesi e Passos, este fenômeno ocorreria por conta da presença, frequentemente ignorada pelos economistas do Novo Consenso Macroeconômico, do repasse dos novos custos financeiros das firmas para os preços finais em momentos de alta dos juros. Dessa maneira, a política monetária restritiva seria paradoxalmente inflacionária, caso o efeito inicial dos novos custos financeiros sobre os preços superasse o impacto defasado de redução na demanda. Seguindo esse raciocínio, o crédito direcionado, por ser menos sensível à Selic, atenuaria a alta dos custos financeiros para algumas firmas, suavizando o efeito do repasse inicial sobre os preços. Ou seja, tornar-se-ia possível um maior controle da inflação com menores impactos negativos sobre a atividade econômica e o nível de emprego. A grande massa de crédito direcionado criticada por Arida e Campos Neto, contribuiria para a potência da política monetária, não o contrário.

Não é somente o canal de transmissão crédito-custo o desprezado pelo discurso do BCB.  De maior relevância, o canal câmbio-custo também não consta nas discussões levantadas no Copom. Na verdade, qualquer relevância dada a esta importante variável equivaleria a (indesejada) absolvição do Tesouro, ou do baixo nível de desemprego, como responsáveis pela inflação e elevação dos juros. Para aqueles que consideram a centralidade deste canal para a política monetária, como o economista Ricardo Summa, o principal determinante da inflação brasileira seria o custo dos bens afetados pelas flutuações no câmbio. Essas flutuações estão associadas ao efeito da taxa de juros sobre os fluxos de capitais, nomeadamente, a forma com a qual um aumento na taxa de juros atrai capital estrangeiro para o país, apreciando o câmbio (e vice-versa). Se o real está mais valorizado, há a desaceleração da inflação importada e redução no prêmio de exportação – o que contribui para a estabilidade do preço interno dos bens exportados pelo Brasil. Variações na taxa de câmbio também afetam de forma desmedida o nível de preços brasileiro devido ao seu efeito no IGP, índice ao qual contratos de bens e serviços, pouco ou nada afetados por importações, como aluguéis, seguros, ou eletricidade, são indexados. O efeito acentuado do câmbio no IGP se deve ao fato do seu cálculo envolver variações mais sensíveis aos preços de produtos voláteis a mudanças na cotação do dólar em relação à medida de inflação junto dos consumidores, o IPCA.

Apesar de nunca serem referidos no discurso oficial do BCB, os fluxos de capital são, ainda assim, importantes variáveis para as decisões de política monetária. Visando manter a atratividade do Brasil ao capital estrangeiro, o BCB é forçado a manter as taxas de juros em um patamar constantemente elevado. No entanto, a inflação representada pela depreciação do real em relação ao dólar não responde, de forma automática, a um aumento dos juros, conforme evidenciado pela escalada da moeda norte-americana após o anúncio do Copom. A preocupação com o câmbio tornou-se clara ao longo das últimas semanas, quando o BCB respondeu à escalada do dólar – que atingiu sua máxima histórica de R$6,29 no último dia 18 de dezembro – com uma sucessão de leilões de reservas internacionais. O valor total desses leilões foi de R$16,76 bi, ou 4,62% das reservas, o que corresponde ao quarto maior leilão de dólares desde a implementação do plano real é o maior desde de 2002. Em 20 de janeiro de 2025, o BCB efetuou sua primeira intervenção do ano, com um leilão de 2 bilhões de dólares.

A discussão a respeito da taxa de juros brasileira engloba, então, diversos aspectos da economia nacional. A posição do Brasil nas cadeias globais de valor e no sistema financeiro internacional moldam a dinâmica de preços e de juros na economia doméstica, refletindo a sua posição subordinada. Esses fatores, porém, parecem ser elementos secundários para as decisões tomadas pela autoridade monetária. O diagnóstico público do BCB se baseia sobretudo na ideia de que o controle inflacionário se dá pelo efeito dos juros na demanda agregada doméstica. Esta noção, disseminada pela mídia, de que a persistência da inflação brasileira se deve a um sobreaquecimento da economia doméstica é um entendimento equivocado dos mecanismos de política monetária vigentes no país.

As decisões do BCB demonstram, mesmo que de forma velada, uma compreensão da importância da cotação do dólar e do seu papel para o controle da inflação. A elevação da taxa básica de juros parece visar, prioritariamente, a atração de capital estrangeiro. Vale ressaltar que esse capital corresponde, em boa medida, a montantes de dólares possuídos por investidores brasileiros, podendo ser mantidos dentro ou fora do país a depender das condições macroeconômicas. Como salvaguarda da estabilidade da economia brasileira, não basta que o BCB realize operações emergenciais contra a variação cambial. São precisas medidas estruturais que mitiguem a vulnerabilidade externa da economia nacional. Para que o quebra-cabeças da taxa de juros brasileira seja solucionado, os fluxos de capital têm que ser mantidos sob controle, por meio de medidas que dificultem a retirada de dólares do Brasil ao menor sinal de instabilidade, reduzindo a nossa endémica volatilidade financeira.

 

Fonte: Por Carolina Reitermajer Viana e Claude Luca Oliveira Schwartz, no Le Monde

 

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