terça-feira, 21 de janeiro de 2025

O ajuste fiscal de Haddad, ou ainda: como implodir a esquerda brasileira e permitir o retorno do neofascismo

O ano mal começou, porém, as medidas de ajuste fiscal representam um duro golpe ao assalariado brasileiro. Dentre as medidas a afligir o largo espectro de assalariados estão o aumento da taxa Selic – que alcançará 15% em março deste ano, conforme projeções do próprio BACEN –; o reajuste do salário mínimo, que receberá um novo freio de contenção; além da redução do abono PIS/PASEP às pessoas que recebem até dois salários mínimos. Para compor o quadro de redução do poder de compra do trabalhador em senso lato, os requisitos para o gozo do BPC (benefício de prestação continuada) tornam-se mais rígidos, em um cenário no qual a inflação real não apresenta sinais de queda, sobretudo para as pessoas com menor poder aquisitivo. Tais medidas implicam em uma tentativa governamental alinhada à classe dominante de reduzir o déficit primário brasileiro a zero, sem que com isso seja discutido o percentual dos gastos públicos dedicados ao serviço da dívida.

As classes dominantes no comando, seja o latifundiário agrícola, o agrobusiness ou a burguesia financeira, que sempre ocuparam o poder e agiram em detrimento do trabalhador, alcançaram algo inédito em um governo de esquerda, o feito de controlar sem concessões. Os próximos parágrafos serão dedicados a esmiuçar em que consistiram as recentes mudanças, parte reflexo do novo teto de gastos, bem como outras leis e medidas que possuem por resultado último ora diminuir a participação econômica e o poder de compra da população, ora estrangular direitos sociais e transferir renda ao topo da pirâmide.

Conforme será demonstrado em uma análise mais profunda da austeridade, o uso do discurso de ampliação da classe média, endossado pela mídia e pelo governo, tem por intuito esvaziar o verdadeiro contraste de forças presente no país e criar um contingente populacional apático e incapaz de se mobilizar para derrubar os pilares trabalhistas, monetários e fiscais da austeridade.1 Alinhado aos ganhos sem precedentes dos quais desfruta o capital especulativo, pautados em um uma política monetária e fiscal que serve aos interesses da classe dominante, a pauta austeridade erode o último bastião de confiança que o povo possuía na figura histórica do presidente Lula.

O intuito do presente artigo consiste em avaliar a implementação de medidas econômicas marcadamente neoliberais e demonstrar como a política de austeridade contra o povo trabalhador é nociva às bases de sustentação do governo. Tal movimento de perda de sustentação desencadeará a impreterível mudança de inclinação política em direção aos setores autoritários e neofascistas da política,2 que não obstante fazerem uso da mesma política econômica, e se aproveitam da tônica de ataque direto ao Estado para erodir a confiança da população nas aspirações democráticas e emancipatórias do povo. Assim, o ataque que parte de dentro do próprio governo no sentido de rever as conquistas históricas em favor do trabalhador, como o aumento real do salário mínimo, implicam em grave ameaça às conquistas da recente democracia brasileira.

·        Matar dois coelhos com uma cajadada só: recrudescem as regras de concessão do BPC e o aumento do salário mínimo resta condicionado ao “novo calabouço” fiscal

A mudança legislativa trazida pela Lei nº 15.077/2024 substitui o percentual de aumento do salário mínimo do incremento do PIB aos parâmetros do arcabouço fiscal. A justificativa de fundo para tal mudança baseia-se na economia que a diminuição do valor anteriormente projetado trará aos cofres públicos, pois o salário mínimo condiciona o valor de pensões, do BPC, auxílios e outros instrumentos através dos quais o governo distribui renda. Aliado ao enrijecimento dos requisitos para concessão do BPC constata-se a clara tendência de ser responsável do ponto de vista fiscal, empobrecendo o trabalhador. Talvez a frequência com a qual se ouça falar na necessidade de cortar gastos, de recrudescer a política para a esfera da escassez impeça que o quadro real se apresente, aquele em que a vida do trabalhador se torna nua,3 precária, desprezível. Aos que têm fome, o mínimo; aos que se alimentam de ideologia, a alienação completa. Um contingente da cidade que vive alijado à categoria da sobrevivência na classe média, com uma renda a partir de R$ 3.400, recebeu como prêmio de consolação pertencer a tal grupo. É o empreendedor de si mesmo, uberizado e precarizado, cujo acréscimo na renda corresponde à completa erosão dos seus direitos trabalhistas e previdenciários.

Em contrapartida, aos que nunca participarão do mercado de trabalho de maneira formal ou autônoma, resta esperar que seus parcos anos de contribuição caiam no vácuo do não-direito, momento em que o BPC se transforma na aposentadoria de milhões de trabalhadores que nunca alcançarão os requisitos para Previdência. As donas Marias, os seus Josés e Joãos, irão recorrer à Providência do vereador solícito que “aposenta” os trabalhadores com o BPC. Tal realidade não pode ser ignorada e percebida com as lentes do mercado, que chantageia o país com agências de risco ameaçando cada centavo “desperdiçado”.

Para o mercado, o gasto social ideal é zero. O intuito dos mercados consiste em deslocar serviços da esfera pública à privada, inserindo-os nas dinâmicas do mercado, reduzindo o Estado ao meio através do qual a renda do trabalhador seja transferida à classe dominante. Um país que conviveu por séculos com a escravidão e despreza o componente humano do trabalho não se ressentiu em converter a vida humana em propriedade quando isso servia à acumulação do capital. Tampouco se ressentiram em torturar e matar dissidentes políticos quando tal era a tônica para se alinhar e permanecer na classe dominante. Não serão os gastos sociais e de redistribuição de renda a servir de óbice para a satisfação dos interesses dos poucos que se beneficiam da transferência do orçamento ao capital especulativo.

Enquanto o Estado burguês serviu aos objetivos do mercado, criando diplomas legislativos de índole liberal e consolidando uma ordem na qual a troca era certa e previsível, o Estado satisfez às aspirações da nascente burguesia, a saber: consolidar a propriedade espoliada, chancelar trocas desiguais e impor uma pauta mínima de direitos para assegurar a máxima obediência do trabalhador. O modelo de Estado surgido no pós-guerra para rivalizar com o bloco soviético cede espaço ao neofascismo, que já não oferece mais nada em contrapartida à aniquilação dos direitos dos trabalhadores.

Portanto, no estágio avançado em que o capitalismo se encontra, possuir um governo cujo programa social é voltado à ideia do valor do trabalho, mas que ignorando seus propósitos se curva aos interesses mais espúrios do mercado, não representa somente uma frustração momentânea. Representa também a erosão da razão mesma de confiar no mandato que foi outorgado ao representante para agir em nome do povo. A ruptura do pacto de confiança depositada no voto popular, que confere ao governo sua missão institucional, desencadeia o inevitável questionamento de quais segmentos da política ainda servem ao povo.

O pobre, arrancado à força do orçamento, verá o recuo de conquistas sedimentadas – como a que ampara o amplo acesso ao benefício de prestação continuada e o reajuste do salário mínimo por critério consoante ao aumento do poder de compra – compor parte da barganha da Faria Lima em troca da alma de um governo que não esconde mais ser favorável aos seus anseios. Enquanto o imposto de renda sobre lucros e dividendos torna-se uma quimera no horizonte de atrasos do Brasil, celebra-se a isenção para quem ganha até R$ 5.000 até 2026. Não seria o limite de isenção prova incontestável de pobreza? Se a renda de até R$ 5.000 não deve ser tributada, a razão de fundo para tanto é não haver razão para comprometer renda de subsistência com o pagamento de impostos. Diante de tal contraste como seria possível entender que na classe média encontra-se já quem percebe R$ 3.400?

Em tais premissas, evidencia-se que aquele que deveria ser um governo comprometido com a redistribuição e com o investimento público, que propulsione o país para um menor grau de desigualdade, transformou-se em caixa de ressonância do mercado. O momento de austeridade converte-se em política perene, irreversível. O objetivo do déficit publico primário tendente a zero se constitui na política da exceção-regra. Sob a premissa de que a taxa de juros controla a inflação, abre-se a via para toda política fiscal reacionária, uma ortodoxia imutável e sem confronto. Ninguém ousa questionar a razão pela qual o Brasil necessita comprometer mais de 40% do orçamento com o pagamento de juros da dívida, porém o problema põe-se em R$ 6,00 que o trabalhador deixará de receber no salário mínimo. Ao que parece, o único instrumento à disposição do economista para conter a inflação é uma guilhotina monetarista, que decepa a cabeça do trabalhador encarecendo seu crédito e poder de compra. Todos os outros instrumentos à disposição do economista desaparecem diante da necessidade incontrolável de satisfazer o mercado, encarecendo o crédito e diminuindo o poder de compra.

·        Emende-se a constituição e dai aos bancos o que é dos bancos

Hoje apenas siglas desprovidas de um significado mais profundo, os programas PIS-PASEP serviam à integração social do trabalhador ou servidor público. Ou seja, compunham, através de um fundo, as perdas advindas com o fim da estabilidade trabalhista. Contudo, a disciplina de quem irá receber tais parcelas será gradualmente limitada, tendo sido necessária a aprovação da Emenda Constitucional nº 135 para tanto. Toda a disposição do governo e das bancadas de apoio encontra-se em aumentar a disponibilidade de despesas discricionárias. Assim, percebe-se que o constituinte, que já antecipava as minorias eventuais no poder, criou diversos dispositivos que vinculavam a despesa pública. Gradualmente, com o apoio que o governo recebe de setores simpáticos à esquerda, a margem de manobra converteu-se em expediente espúrio voltado à exclusiva satisfação dos que sempre ocuparam as rodas de poder.

Como a saudosa professora Maria da Conceição Tavares dizia em suas aulas,5 pobre precisa fazer política, porque o rico faz política nos almoços das sextas-feiras. Não existe canal para o trabalhador ser ouvido e representado quando ele se encontra na condução lotada e, ao chegar ao trabalho, recebe a alcunha de colaborador. Os vértices foram invertidos e ignorados. Os economistas da governabilidade esqueceram-se que o trabalhador se ilustra naquele indivíduo do qual se extrai a mais-valia e, retroagindo-se alguns poucos anos ao passado, era esvaziado na acepção de propriedade. O compromisso do Estado Democrático Social não está em converter o orçamento nas aspirações de ganho do especulador financeiro, que propugna pela austeridade ao trabalhador em favor da ostentação do capital.

O momento que o mundo e o Brasil vivem é sem precedentes, o compromisso capital-trabalho não foi rompido – pois ele nunca existiu –, porém, o modo pelo qual o trabalhado é pilhado, espoliado, despojado, jamais se apresentou de forma tão escancarada.

·        A direita neofascista conquista o mundo: sombras do fascismo e do nazismo

Para os movimentos de luta pela emancipação da classe trabalhadora, o balanço de políticas regressivas endossadas pela esquerda do neoliberalismo progressista é sobremaneira nociva, não apenas do ponto de vista econômico, mas sobretudo no espectro político. A capacidade da extrema direita em articular um discurso de ódio baseado na eleição dos falsos culpados é bem demonstrada através de diversos períodos históricos. Explicar Kalecki ao povo será mais difícil do que aplicar suas noções na economia.

A esquerda intelectual carece de tal capacidade de arregimentar em bases argumentativas, porém, poderia utilizar a massiva presença nos círculos do governo para transformar teorias em melhoria das condições de vida. Não é sem propósito que o capital pressiona o governo ao suicídio, quando artificialmente infla o dólar e diminui a credibilidade do país perante as agências de crédito. Concluindo-se o presente mandato do presidente Lula desempenhando o papel ao qual se propôs, qual seja, de diminuir as animosidades e criar a aliança inimaginável PT-PSB, o caminho está pavimentado para a ascensão de uma figura tão ou mais ameaçadora para o povo e os movimentos sociais do que a representada por Bolsonaro. Estados Unidos, Itália e Argentina já anteciparam o cenário que, ao que tudo indica, será reproduzido no Brasil. Apesar dos esforços de conciliar o inconciliável, a imagem de um ministro da Economia do PT que transmita confiança à classe dominante do país ao preço de sacrificar o trabalhador não conduz aos horizontes mais promissores para a democracia.

 

¨         A vida fácil de Nikolas Ferreira. Por Ricardo Queiróz Pinheiro

Charles Baudelaire escreveu um poema intitulado “Heautontimoroumenos”, traduzido como “Carrasco de Si Mesmo”. É uma reflexão sobre o paradoxo de infligir dor a si próprio, sendo simultaneamente vítima e verdugo. Baudelaire não escreveu pensando nos defensores do neoliberalismo, mas é impossível não fazer a conexão com aqueles que repetem, com fervor, ideias que sabotam suas próprias condições de vida e deixam a vida de figuras como Nikolas Ferreira muito fácil.

Trabalho duro, foco nos objetivos, força de vontade. Máximas que me perseguem desde sempre. “Quem quer, faz.” “Quem não chega lá é porque não se esforçou o suficiente.” “Todo mundo tem as mesmas 24 horas no dia.” Essas frases, tão presentes em almoços de família, grupos de WhatsApp e campanhas publicitárias, ajudam a transformar desigualdade em mérito ou falha pessoal.

Na lógica do mérito, o fracasso não é consequência de contextos adversos, mas um problema moral. “Se eu consegui, qualquer um consegue” é o mantra de quem ignora os abismos que diferenciam as condições de vida. Quem não consegue, dizem, é porque não tentou o suficiente. “Quem é pobre é porque quer.” Assim, o sofrimento é isolado e despolitizado, desviando o olhar do que realmente cria essas barreiras.

O empreendedorismo é vendido como solução mágica. “Seja seu próprio patrão.” “Empreenda.” “Invente algo!” Mas a promessa de autonomia frequentemente resulta em jornadas exaustivas, sem direitos ou futuro. A precariedade ganha novos nomes, e quem sofre ainda agradece por isso.

Enquanto isso, o Estado vira o vilão perfeito. “Menos governo, mais liberdade.” “Imposto é roubo.” “Política pública só cria dependência.” Esse discurso justifica o desmonte de serviços essenciais como saúde, educação e previdência, enquanto privilégios econômicos seguem intocados. O foco nunca é nos grandes devedores ou nas desigualdades, mas em culpar quem ainda depende desses recursos.

Após décadas de trabalho, a aposentadoria oferece migalhas enquanto os privilégios de poucos permanecem blindados. Reformas aumentam a idade, cortam direitos e ignoram os grandes devedores que drenam recursos do sistema, perpetuando uma lógica que penaliza quem mais contribuiu.

Vendem o discurso da “insustentabilidade”, mas deixam isenções e calotes protegidos. E para aqueles que dizem, com autoindulgência, que “nunca vão se aposentar”, resta a ilusão de que o trabalho infinito é liberdade, quando na verdade é só mais uma face do esgotamento.

A resistência coletiva é deslegitimada em todos os âmbitos. Sindicatos são “roubo do trabalhador”; cotas, “privilégio”; protestos, “vagabundagem”. A solidariedade vira fraqueza, e o apoio mútuo é ridicularizado. Sem força coletiva, as pessoas ficam isoladas, incapazes de pressionar ou resistir a mudanças que só favorecem poucos.

Os impostos recaem mais pesadamente sobre pobres, enquanto os ricos acumulam isenções e privilégios fiscais. Isso é uma regra. Quem vive com o mínimo arca com a maior carga, enquanto os mais abastados encontram formas de pagar menos ou nada. E ainda convencem os ferrados de que o problema é o “Estado inchado”.

A menção a Baudelaire, no fim, soa como um escárnio: carrascos de si mesmos, que, em vez de questionar o que os limita, defendem com fervor ideias que só os afundam. Não precisam tirar nada de ninguém, porque nos ensinam a entregar. Fazem com que aceitemos o inaceitável, chamemos exploração de liberdade e vejamos no esgotamento uma virtude. Fazem acreditar que o mundo que oferecem é o único possível.

No final das contas, nem precisam nos derrotar. Nos convencem a derrotar a nós mesmos — e deixam a vida de figuras como Nikolas Ferreira muito fácil.

 

Fonte: Por Mariella Pittari, no Blog da Boitempo/Opera Mundi

 

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