O ajuste fiscal de Haddad, ou
ainda: como implodir a esquerda brasileira e permitir o retorno
do neofascismo
O ano mal começou, porém, as medidas de
ajuste fiscal representam um duro golpe ao assalariado brasileiro. Dentre as
medidas a afligir o largo espectro de assalariados estão o aumento da taxa
Selic – que alcançará 15% em março deste ano, conforme projeções do próprio
BACEN –; o reajuste do salário mínimo, que receberá um novo freio de contenção;
além da redução do abono PIS/PASEP às pessoas que recebem até dois salários
mínimos. Para compor o quadro de redução do poder de compra do trabalhador em
senso lato, os requisitos para o gozo do BPC (benefício de prestação
continuada) tornam-se mais rígidos, em um cenário no qual a inflação real não
apresenta sinais de queda, sobretudo para as pessoas com menor poder
aquisitivo. Tais medidas implicam em uma tentativa governamental alinhada à
classe dominante de reduzir o déficit primário brasileiro a zero, sem que com
isso seja discutido o percentual dos gastos públicos dedicados ao serviço da
dívida.
As classes dominantes no comando, seja
o latifundiário agrícola, o agrobusiness ou a burguesia financeira, que sempre
ocuparam o poder e agiram em detrimento do trabalhador, alcançaram algo inédito
em um governo de esquerda, o feito de controlar sem concessões. Os próximos
parágrafos serão dedicados a esmiuçar em que consistiram as recentes mudanças,
parte reflexo do novo teto de gastos, bem como outras leis e medidas que
possuem por resultado último ora diminuir a participação econômica e o poder de
compra da população, ora estrangular direitos sociais e transferir renda ao
topo da pirâmide.
Conforme será demonstrado em uma
análise mais profunda da austeridade, o uso do discurso de ampliação da classe
média, endossado pela mídia e pelo governo, tem por intuito esvaziar o
verdadeiro contraste de forças presente no país e criar um contingente
populacional apático e incapaz de se mobilizar para derrubar os pilares
trabalhistas, monetários e fiscais da austeridade.1 Alinhado
aos ganhos sem precedentes dos quais desfruta o capital especulativo, pautados
em um uma política monetária e fiscal que serve aos interesses da classe
dominante, a pauta austeridade erode o último bastião de confiança que o povo
possuía na figura histórica do presidente Lula.
O intuito do presente artigo consiste
em avaliar a implementação de medidas econômicas marcadamente neoliberais e
demonstrar como a política de austeridade contra o povo trabalhador é nociva às
bases de sustentação do governo. Tal movimento de perda de sustentação
desencadeará a impreterível mudança de inclinação política em direção aos
setores autoritários e neofascistas da política,2 que não
obstante fazerem uso da mesma política econômica, e se aproveitam da tônica de
ataque direto ao Estado para erodir a confiança da população nas aspirações
democráticas e emancipatórias do povo. Assim, o ataque que parte de dentro do
próprio governo no sentido de rever as conquistas históricas em favor do
trabalhador, como o aumento real do salário mínimo, implicam em grave ameaça às
conquistas da recente democracia brasileira.
·
Matar
dois coelhos com uma cajadada só: recrudescem as regras de concessão do BPC e o
aumento do salário mínimo resta condicionado ao “novo calabouço” fiscal
A mudança legislativa trazida pela Lei
nº 15.077/2024 substitui o percentual de aumento do salário mínimo do
incremento do PIB aos parâmetros do arcabouço fiscal. A justificativa de fundo
para tal mudança baseia-se na economia que a diminuição do valor anteriormente projetado
trará aos cofres públicos, pois o salário mínimo condiciona o valor de pensões,
do BPC, auxílios e outros instrumentos através dos quais o governo distribui
renda. Aliado ao enrijecimento dos requisitos para concessão do BPC constata-se
a clara tendência de ser responsável do ponto de vista fiscal, empobrecendo o
trabalhador. Talvez a frequência com a qual se ouça falar na necessidade de
cortar gastos, de recrudescer a política para a esfera da escassez impeça que o
quadro real se apresente, aquele em que a vida do trabalhador se torna nua,3 precária,
desprezível. Aos que têm fome, o mínimo; aos que se alimentam de ideologia, a
alienação completa. Um contingente da cidade que vive alijado à categoria da
sobrevivência na classe média, com uma renda a partir de R$ 3.400, recebeu como
prêmio de consolação pertencer a tal grupo. É o empreendedor de si mesmo,
uberizado e precarizado, cujo acréscimo na renda corresponde à completa erosão
dos seus direitos trabalhistas e previdenciários.
Em contrapartida, aos que nunca
participarão do mercado de trabalho de maneira formal ou autônoma, resta
esperar que seus parcos anos de contribuição caiam no vácuo do não-direito,
momento em que o BPC se transforma na aposentadoria de milhões de trabalhadores
que nunca alcançarão os requisitos para Previdência. As donas Marias, os seus
Josés e Joãos, irão recorrer à Providência do vereador solícito que “aposenta”
os trabalhadores com o BPC. Tal realidade não pode ser ignorada e percebida com
as lentes do mercado, que chantageia o país com agências de risco ameaçando cada
centavo “desperdiçado”.
Para o mercado, o gasto social ideal é
zero. O intuito dos mercados consiste em deslocar serviços da esfera pública à
privada, inserindo-os nas dinâmicas do mercado, reduzindo o Estado ao meio
através do qual a renda do trabalhador seja transferida à classe dominante. Um
país que conviveu por séculos com a escravidão e despreza o componente humano
do trabalho não se ressentiu em converter a vida humana em propriedade quando
isso servia à acumulação do capital. Tampouco se ressentiram em torturar e
matar dissidentes políticos quando tal era a tônica para se alinhar e
permanecer na classe dominante. Não serão os gastos sociais e de redistribuição
de renda a servir de óbice para a satisfação dos interesses dos poucos que se
beneficiam da transferência do orçamento ao capital especulativo.
Enquanto o Estado burguês serviu aos
objetivos do mercado, criando diplomas legislativos de índole liberal e
consolidando uma ordem na qual a troca era certa e previsível, o Estado
satisfez às aspirações da nascente burguesia, a saber: consolidar a propriedade
espoliada, chancelar trocas desiguais e impor uma pauta mínima de direitos para
assegurar a máxima obediência do trabalhador. O modelo de Estado surgido no
pós-guerra para rivalizar com o bloco soviético cede espaço ao neofascismo, que
já não oferece mais nada em contrapartida à aniquilação dos direitos dos
trabalhadores.
Portanto, no estágio avançado em que o
capitalismo se encontra, possuir um governo cujo programa social é voltado à
ideia do valor do trabalho, mas que ignorando seus propósitos se curva aos
interesses mais espúrios do mercado, não representa somente uma frustração
momentânea. Representa também a erosão da razão mesma de confiar no mandato que
foi outorgado ao representante para agir em nome do povo. A ruptura do pacto de
confiança depositada no voto popular, que confere ao governo sua missão
institucional, desencadeia o inevitável questionamento de quais segmentos da
política ainda servem ao povo.
O pobre, arrancado à força do orçamento,
verá o recuo de conquistas sedimentadas – como a que ampara o amplo acesso ao
benefício de prestação continuada e o reajuste do salário mínimo por critério
consoante ao aumento do poder de compra – compor parte da barganha da Faria
Lima em troca da alma de um governo que não esconde mais ser favorável aos seus
anseios. Enquanto o imposto de renda sobre lucros e dividendos torna-se uma
quimera no horizonte de atrasos do Brasil, celebra-se a isenção para quem ganha
até R$ 5.000 até 2026. Não seria o limite de isenção prova incontestável de
pobreza? Se a renda de até R$ 5.000 não deve ser tributada, a razão de fundo
para tanto é não haver razão para comprometer renda de subsistência com o
pagamento de impostos. Diante de tal contraste como seria possível entender que
na classe média encontra-se já quem percebe R$ 3.400?
Em tais premissas, evidencia-se que
aquele que deveria ser um governo comprometido com a redistribuição e com o
investimento público, que propulsione o país para um menor grau de desigualdade,
transformou-se em caixa de ressonância do mercado. O momento de austeridade
converte-se em política perene, irreversível. O objetivo do déficit publico
primário tendente a zero se constitui na política da exceção-regra. Sob a
premissa de que a taxa de juros controla a inflação, abre-se a via para toda
política fiscal reacionária, uma ortodoxia imutável e sem confronto. Ninguém
ousa questionar a razão pela qual o Brasil necessita comprometer mais de 40% do
orçamento com o pagamento de juros da dívida, porém o problema põe-se em R$
6,00 que o trabalhador deixará de receber no salário mínimo. Ao que parece, o
único instrumento à disposição do economista para conter a inflação é uma
guilhotina monetarista, que decepa a cabeça do trabalhador encarecendo seu crédito
e poder de compra. Todos os outros instrumentos à disposição do economista
desaparecem diante da necessidade incontrolável de satisfazer o mercado,
encarecendo o crédito e diminuindo o poder de compra.
·
Emende-se
a constituição e dai aos bancos o que é dos bancos
Hoje apenas siglas desprovidas de um
significado mais profundo, os programas PIS-PASEP serviam à integração social
do trabalhador ou servidor público. Ou seja, compunham, através de um fundo, as
perdas advindas com o fim da estabilidade trabalhista. Contudo, a disciplina de
quem irá receber tais parcelas será gradualmente limitada, tendo sido
necessária a aprovação da Emenda Constitucional nº 135 para tanto. Toda a
disposição do governo e das bancadas de apoio encontra-se em aumentar a disponibilidade
de despesas discricionárias. Assim, percebe-se que o constituinte, que já
antecipava as minorias eventuais no poder, criou diversos dispositivos que
vinculavam a despesa pública. Gradualmente, com o apoio que o governo recebe de
setores simpáticos à esquerda, a margem de manobra converteu-se em expediente
espúrio voltado à exclusiva satisfação dos que sempre ocuparam as rodas de
poder.
Como a saudosa professora Maria da
Conceição Tavares dizia em suas aulas,5 pobre
precisa fazer política, porque o rico faz política nos almoços das
sextas-feiras. Não existe canal para o trabalhador ser ouvido e
representado quando ele se encontra na condução lotada e, ao chegar ao
trabalho, recebe a alcunha de colaborador. Os vértices foram invertidos e
ignorados. Os economistas da governabilidade esqueceram-se que o trabalhador se
ilustra naquele indivíduo do qual se extrai a mais-valia e, retroagindo-se
alguns poucos anos ao passado, era esvaziado na acepção de propriedade. O
compromisso do Estado Democrático Social não está em converter o orçamento nas
aspirações de ganho do especulador financeiro, que propugna pela austeridade ao
trabalhador em favor da ostentação do capital.
O momento que o mundo e o Brasil vivem é sem
precedentes, o compromisso capital-trabalho não foi
rompido – pois ele nunca existiu –, porém, o modo pelo qual o trabalhado é
pilhado, espoliado, despojado, jamais se apresentou de forma tão escancarada.
·
A
direita neofascista conquista o mundo: sombras do fascismo e do nazismo
Para os movimentos de luta pela
emancipação da classe trabalhadora, o balanço de políticas regressivas
endossadas pela esquerda do neoliberalismo progressista é sobremaneira nociva,
não apenas do ponto de vista econômico, mas sobretudo no espectro político. A
capacidade da extrema direita em articular um discurso de ódio baseado na
eleição dos falsos culpados é bem demonstrada através de diversos períodos
históricos. Explicar Kalecki ao povo será mais difícil do que aplicar suas
noções na economia.
A esquerda intelectual carece de tal
capacidade de arregimentar em bases argumentativas, porém, poderia utilizar a
massiva presença nos círculos do governo para transformar teorias em melhoria
das condições de vida. Não é sem propósito que o capital pressiona o governo ao
suicídio, quando artificialmente infla o dólar e diminui a credibilidade do
país perante as agências de crédito. Concluindo-se o presente mandato do
presidente Lula desempenhando o papel ao qual se propôs, qual seja, de diminuir
as animosidades e criar a aliança inimaginável PT-PSB, o caminho está
pavimentado para a ascensão de uma figura tão ou mais ameaçadora para o povo e
os movimentos sociais do que a representada por Bolsonaro. Estados Unidos,
Itália e Argentina já anteciparam o cenário que, ao que tudo indica, será
reproduzido no Brasil. Apesar dos esforços de conciliar o inconciliável, a
imagem de um ministro da Economia do PT que transmita confiança à classe
dominante do país ao preço de sacrificar o trabalhador não conduz aos
horizontes mais promissores para a democracia.
¨
A vida fácil de Nikolas Ferreira. Por Ricardo Queiróz Pinheiro
Charles Baudelaire escreveu um poema intitulado “Heautontimoroumenos”,
traduzido como “Carrasco de Si Mesmo”. É uma reflexão sobre o paradoxo de
infligir dor a si próprio, sendo simultaneamente vítima e verdugo. Baudelaire
não escreveu pensando nos defensores do neoliberalismo, mas é impossível não
fazer a conexão com aqueles que repetem, com fervor, ideias que sabotam suas
próprias condições de vida e deixam a vida de figuras como Nikolas Ferreira
muito fácil.
Trabalho duro, foco nos objetivos, força de vontade. Máximas que me
perseguem desde sempre. “Quem quer, faz.” “Quem não chega lá é porque não se
esforçou o suficiente.” “Todo mundo tem as mesmas 24 horas no dia.” Essas
frases, tão presentes em almoços de família, grupos de WhatsApp e campanhas
publicitárias, ajudam a transformar desigualdade em mérito ou falha pessoal.
Na lógica do mérito, o fracasso não é consequência de contextos
adversos, mas um problema moral. “Se eu consegui, qualquer um consegue” é o
mantra de quem ignora os abismos que diferenciam as condições de vida. Quem não
consegue, dizem, é porque não tentou o suficiente. “Quem é pobre é porque
quer.” Assim, o sofrimento é isolado e despolitizado, desviando o olhar do que
realmente cria essas barreiras.
O empreendedorismo é vendido como solução mágica. “Seja seu próprio
patrão.” “Empreenda.” “Invente algo!” Mas a promessa de autonomia
frequentemente resulta em jornadas exaustivas, sem direitos ou futuro. A
precariedade ganha novos nomes, e quem sofre ainda agradece por isso.
Enquanto isso, o Estado vira o vilão perfeito. “Menos governo, mais
liberdade.” “Imposto é roubo.” “Política pública só cria dependência.” Esse
discurso justifica o desmonte de serviços essenciais como saúde, educação e
previdência, enquanto privilégios econômicos seguem intocados. O foco nunca é
nos grandes devedores ou nas desigualdades, mas em culpar quem ainda depende
desses recursos.
Após décadas de trabalho, a aposentadoria oferece migalhas enquanto os
privilégios de poucos permanecem blindados. Reformas aumentam a idade, cortam
direitos e ignoram os grandes devedores que drenam recursos do sistema,
perpetuando uma lógica que penaliza quem mais contribuiu.
Vendem o discurso da “insustentabilidade”, mas deixam isenções e calotes
protegidos. E para aqueles que dizem, com autoindulgência, que “nunca vão se
aposentar”, resta a ilusão de que o trabalho infinito é liberdade, quando na
verdade é só mais uma face do esgotamento.
A resistência coletiva é deslegitimada em todos os âmbitos. Sindicatos
são “roubo do trabalhador”; cotas, “privilégio”; protestos, “vagabundagem”. A
solidariedade vira fraqueza, e o apoio mútuo é ridicularizado. Sem força
coletiva, as pessoas ficam isoladas, incapazes de pressionar ou resistir a
mudanças que só favorecem poucos.
Os impostos recaem mais pesadamente sobre pobres, enquanto os ricos
acumulam isenções e privilégios fiscais. Isso é uma regra. Quem vive com o
mínimo arca com a maior carga, enquanto os mais abastados encontram formas de
pagar menos ou nada. E ainda convencem os ferrados de que o problema é o
“Estado inchado”.
A menção a Baudelaire, no fim, soa como um escárnio: carrascos de si
mesmos, que, em vez de questionar o que os limita, defendem com fervor ideias
que só os afundam. Não precisam tirar nada de ninguém, porque nos ensinam a
entregar. Fazem com que aceitemos o inaceitável, chamemos exploração de
liberdade e vejamos no esgotamento uma virtude. Fazem acreditar que o mundo que
oferecem é o único possível.
No final das contas, nem precisam nos derrotar. Nos convencem a derrotar
a nós mesmos — e deixam a vida de figuras como Nikolas Ferreira muito fácil.
Fonte:
Por Mariella Pittari, no Blog da Boitempo/Opera Mundi
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