'Made in Brazil':
armas brasileiras são anunciadas por vendedores em área rebelde do Iêmen
Pistolas fabricadas
no Brasil pela empresa
Forjas Taurus estão sendo anunciadas em redes sociais por vendedores de armas
em áreas controladas por rebeldes houthis,
no Iêmen.
O país está
em guerra civil desde 2015 e
sob embargo internacional para a importação de armas.
A reportagem da BBC
News Brasil identificou anúncios publicados por vendedores de armas localizados
em Sanaa, capital do Iêmen, vendendo pistolas e munição vendida pela Taurus. Os
anúncios são feitos em perfis abertos de redes como o X ou o
Facebook.
A constatação
também faz parte de um relatório elaborado por um painel de especialistas
das Nações Unidas sobre o Iêmen
publicado em outubro de 2024 ao qual a BBC News Brasil teve acesso.
Segundo o
documento, parte das armas anunciadas por traficantes no Iêmen teria tido como
compradores países como a Arábia Saudita, Tanzânia e Djibouti e podem estar
sendo vendidas por pessoas ligadas ao comando dos rebeldes houthis.
Especialistas
ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que a empresa, o governo brasileiro vêm
falhando em aumentar o controle sobre a exportação de armamentos para regiões
sensíveis e que as plataformas digitais não dão a devida atenção para derrubar
anúncios como os identificados pela reportagem.
Procurada, a Taurus
disse por meio de nota que "cumpre a legislação brasileira" e
"não mantém qualquer ordem de negócios com o Iêmen ou com países em
conflito".
O X e a Meta,
empresa que controla o Facebook, não responderam aos questionamentos da
reportagem da BBC News Brasil.
Em nota, o
Ministério da Defesa, responsável pela autorização da exportação de produtos
bélicos do Brasil, disse que autorizou a exportação de pistolas para a Arábia
Saudita e para a Tanzânia entre 2021 e 2023.
O órgão disse que a
autorização cumpriu os trâmites legais previstos e que "não tinha
conhecimento" de que as armas teriam sido utilizadas para fins ilícitos e
que o órgão não realiza o "acompanhamento, rastreio e controle do
destinatário/uso final dos produtos".
O Ministério das
Relações Exteriores e o Exército, que também avaliam a exportação de produtos
bélicos, não responderam.
·
'Sua
melhor escolha'
O Iêmen é um
localizado na Península Arábica de 34 milhões de habitantes. Ele faz fronteira
com Omã e com a Arábia Saudita. De acordo com a ONU, é o quarto país menos
desenvolvido do mundo. Ainda de acordo com a entidade, 82,% da população vive
sob algum tipo de pobreza.
Desde 2014, o país
vive uma guerra civil. De um lado, estão as forças oficiais do governo de
Abd-Rabbu Mansour Hadi, apoiadas por uma coalizão sunita liderada pela Arábia
Saudita. Do outro, está a milícia rebelde huti, de xiitas, apoiada pelo Irã.
De acordo com a
ONU, a guerra já causou a morte de pelo menos 230 mil pessoas, a maioria de
forma indireta e o país vive hoje o que a organização classificou como a pior
crise humanitária do planeta.
Em 2015, os houthis
tomaram o controle da capital do país, Sanaa. E é de lá que partiram, segundo
perfis em redes sociais, os anúncios de armas brasileiras comercializadas por
vendedores de armas situados em áreas controladas por rebeldes houthis.
A reportagem da BBC
News Brasil identificou quatro perfis de vendedores de armas localizados em
Sanaa, capital do Iêmen controlada por rebeldes houthis.
Ao todo, foram
identificados pelo menos 10 anúncios de pistolas de diversos tipos fabricadas pela
Taurus.
A pistola com a
maior quantidade de anúncios foi do modelo G3, calibre 9mm. As postagens foram
feitas entre o início de 2023 e janeiro deste ano.
Em um deles,
publicado em 29 de setembro de 2024 e ainda disponível no X, o vendedor parece
tentar enaltecer o produto.
"Sua melhor
escolha", diz a postagem em árabe.
O valor da pistola,
que vem acompanhada de uma maleta, dois magazines para as munições e
instrumentos para limpeza da arma custa, segundo o anunciante, a partir de
1.000 riads sauditas, o equivalente a R$ 1,7 mil.
Outro vendedor com
perfil aberto no X anunciou um outro kit da Taurus semelhante no dia 7 de
novembro de 2024.
Neste caso, a arma
contém uma indicação de que teria sido fabricada na cidade de Bainbridge, no
Estado norte-americano da Geórgia, onde a Taurus também tem uma fábrica.
No mesmo dia, o
vendedor anunciou outro kit semelhante. Desta vez, a inscrição na arma indica a
sua provável procedência: "Made in Brazil".
A marca também
aparece em um conjunto de três pistolas anunciadas por outro vendedor em uma
postagem feita no dia 7 de janeiro.
Nas postagens, os
vendedores e possíveis compradores trocam informações sobre as características
das armas brasileiras. Entre as supostas qualidades das armas estariam a sua
versatilidade, tamanho e preço baixo.
Os anúncios não se
restringem às armas fabricadas pela Taurus. Há todo tipo de armamento sendo
vendido, de diferentes fábricas e países.
Há pistolas
italianas, austríacas, turcas e norte-americanas. Também são anunciados fuzis
de assalto, sub-metralhadoras e equipamentos de comunicação como rádios e
walkie-talkies.
·
Relatório
da ONU aponta problemas
Um relatório
elaborado por especialistas no mercado de armas a serviço da ONU foi divulgado
em outubro de 2024 e fez uma análise sobre o comércio de armas no Iêmen.
Desde 2014, o país
é alvo de uma série de sanções pelo Conselho de Segurança da ONU que incluem a
proibição de venda de armas ao país.
Segundo o painel,
os rebeldes houthis organizaram uma complexa rede para burlar as sanções
internacionais.
"De acordo com
fontes, os Houthis estão organizando e controlando a aquisição e venda ilegal
de armas nas áreas sob seu controle, possivelmente em violação das disposições
de embargo direcionado de armas e congelamento de ativos. Vários líderes houthis
colaboram com comerciantes de armas ou operam lojas de armamentos, obtendo
receitas significativas, incluindo impostos, provenientes desse comércio",
diz um trecho do relatório.
Os especialistas
contratados pela ONU constataram que apesar da vigência das sanções, o país
continua a receber armas de diferentes origens e, algumas delas, são
comercializadas livremente em áreas controladas por rebeldes em perfis de redes
como o X e o Facebook.
O documento
reproduziu alguns dos links onde as armas estavam sendo anunciadas, mas alguns
deles já foram derrubados pelo Facebook ou pelo X.
No caso do Brasil,
o relatório identificou, por exemplo, que pelo menos 73 pistolas fabricadas
pela Taurus estavam sendo vendidas pela internet por diversos vendedores em
áreas controladas pelos houthis.
Com o auxílio da
Taurus, os especialistas cruzaram os números de série das armas identificadas
com os destinos oficiais de cada pistola.
Esse cruzamento
mostra que ao menos 16 pistolas encontradas à venda no Iêmen haviam sido vendidas,
inicialmente, para o Ministério do Interior da Arábia Saudita e deveriam estar
sendo usadas pelas forças de segurança do país.
Outras 37 haviam
sido vendidas pela Taurus para o governo da Tanzânia e, segundo documentos
enviados pelo país, deveriam ser usadas exclusivamente para fins de segurança
nacional.
Outras 20 pistolas,
segundo o relatório da ONU, faziam parte de um lote de armas exportadas pela
Taurus do Brasil para o Djibouti em 2015.
A venda causou
repercussão internacional porque, segundo o Ministério Público Federal (MPF), o
comprador era um homem apontado pelas autoridades brasileiras como Fares
Mohamed Hassan Manna.
Segundo o MPF,
Manna era um conhecido traficante de armas oriundo do Iêmen quando realizou a
compra junto à Taurus e era, inclusive, alvo de sanções internacionais.
Havia suspeitas de
que a compra fosse uma forma de desviar as armas para o conflito no Iêmen.
À época, a Taurus e
seus executivos alegaram inocência e que não sabiam que Manna seria um
traficante de armas internacional.
O caso se arrastou
até 2024, quando a Justiça Federal absolveu os executivos da Taurus. Manna, que
também foi denunciado, deixou o Brasil na época em que o caso veio a público e
nunca mais foi encontrado.
·
Responsabilidades
Para o coordenador
de projetos da Global Rights Compliance, Daniel Mack, a constatação de que
armas de fabricação brasileira estão sendo vendidas em áreas controladas por
rebeldes houthis levanta questionamentos sobre as responsabilidades do governo
brasileiro, da Taurus e das redes sociais que permitem esses anúncios.
"É difícil
pensar que a venda inicial dessas armas tenha passado por um processo de
análise de risco, tanto da empresa quanto do governo brasileiro sobre onde
essas armas poderiam parar", afirmou Mack à BBC News Brasil.
A análise citada
por Mack faz parte do processo burocrático brasileiro para que materiais
bélicos como armas e munições sejam exportadas para outros países.
Segundo a
legislação brasileira, para que produtos como armas de fogo sejam exportados é
preciso que a empresa submeta sua intenção ao Ministério das Relações
Exteriores (MRE), Ministério da Defesa e ao Exército Brasileiro. No caso de
pistolas, a exportação só é autorizada com a anuência prévia do Ministério da
Defesa que também consulta o MRE e o Exército.
A diretora de
programa da organização não-governamental Sou da Paz, Natália Pollachi, diz que
as evidências apontam que as autoridades brasileiras devem melhorar os
controles sobre a exportação de armas.
Ela explica que
como o Brasil é signatário de tratados internacionais sobre o comércio de
armas, o país é obrigado a realizar análises de risco sobre cada venda com o
intuito de evitar que o material vendido possa ser usado em graves violações de
direitos humanos como perseguições étnicas, entre outras.
"Os casos
recentes indicam que essa análise de risco feita pelo governo brasileiro
precisa, no mínimo, ser bastante aprimorada. Sabemos que a decisão final é do
Ministério da Defesa e que ele pode, inclusive, se opor ao parecer do
Ministério das Relações Exteriores", afirmou Pollachi à BBC News Brasil.
A especialista
criticou a falta de transparência sobre as informações a respeito das vendas de
armas brasileiras para o exterior. Segundo ela, o Brasil estaria entre os
países menos transparentes do mundo neste quesito.
"A gente tem
muito pouca informação sobre como se dá o processo decisório brasileiro sobre a
venda de armas. Infelizmente, esse é um dos casos que se tornaram exceção
quando se trata da Lei de Acesso a Informação (LAI). Pedidos são negados sob
alegação de sigilo industrial", disse Pollachi.
Daniel Mack afirma
que, historicamente, o governo brasileiro não teria uma postura rígida no
controle das exportações de armas de fogo.
"O governo
brasileiro tem que fazer uma análise de risco mais robusta para saber para onde
essas armas vão e em quais mãos elas realmente vão parar", afirmou.
Em nota, o
Ministério da Defesa disse que as exportações de pistolas para a Arábia Saudita
e para a Tanzânia, primeiros destinos das armas, foram autorizadas pelo órgão.
A pasta disse, no entanto, que não acompanha a movimentação das armas após a
venda.
"Informamos
que este Ministério: não tinha conhecimento, conforme os fatos apresentados, de
que os materiais foram utilizados para fins ilícitos; e não realiza o acompanhamento,
rastreio e controle do destinatário/uso final dos produtos", disse um
trecho da nota.
Em relação à
Taurus, Mack afirma que a empresa precisa melhorar o seu próprio compliance e
se abster de vender armas para compradores ou países que tenham potencial de
eventual desvio.
"A empresa
precisa ter um processo de diligência devida para evitar que suas armas
colaborem com eventuais violações de direitos humanos em situações de conflito.
Ela deveria um pouco mais de contenção e segurar um pouco suas vendas em
situações sensíveis [...] do contrário, eles podem até mesmo colocar a própria
empresa em risco", disse.
Em nota, a Taurus
disse que seus "os contratos de exportação de armas são realizados
observando todos os procedimentos legais aplicáveis e obtidas todas as
autorizações dos órgãos reguladores brasileiros". Segundo a empresa, entre
os documentos obtidos está o Certificado de Usuário Final que garantiria à
companhia que o comprador não reexportaria as armas depois de recebê-las.
Ainda de acordo com
a nota, a Taurus disse que colabora plenamente com qualquer investigação sobre
possíveis condutas criminosas, com o compromisso de combater o desvio de armas
e o comércio ilegal" que forneceu informações ao painel de especialistas
do Conselho de Segurança da ONU assim que foi comunicado.
"Cabe a esse
órgão e demais órgãos competentes fazer as investigações necessárias sobre
eventual desvio ilegal de armas e conduta criminosa", disse a nota.
Na avaliação de
Daniel Mack, a responsabilidade das plataformas digitais como X e Facebook é
uma das que mais chama atenção.
Segundo ele, os
recentes anúncios de mudança nas formas de moderação de conteúdo feitos pelo X
e pela Meta (controladora do Facebook, WhatsApp e Instagram) pode aumentar a
quantidade de anúncios de armas disponíveis nas redes.
"A gente sabe
que as plataformas estão indo no sentido contrário do que deveria ser e tirando
pessoas que faziam a revisão do conteúdo dos anúncios. O ambiente virtual está
operando sem xerife e corremos o risco de viver um faroeste cibernético em que
vale tudo, inclusive comercializar armas", disse.
Para Natália
Pollachi, a revelação de que armas brasileiras estão sendo vendidas redes
sociais não chega a surpreender.
"Infelizmente,
não surpreende. A gente recebe relatos muito frequentes de que armas estão
sendo comercializadas com facilidade nessas plataformas. Algumas vezes, com
fotos e nomes. Já tentamos dialogar com essas empresas, sugerimos melhorias,
mas a gente sente que isso não é prioridade para eles", disse Pollachi.
Meta e X não
responderam aos questionamentos enviados pela reportagem.
·
A
origem do conflito
A origem do
conflito no Iêmen remonta à Primavera Árabe de 2011, quando uma revolta popular
derrubou o então presidente do país, Ali Abdullah Saleh, que entregou o poder
ao vice, Abdrabbuh Mansour Hadi.
A expectativa era
de que a transição traria estabilidade ao país, mas a gestão de Hadi enfrentou
diversos problemas, entre eles ataques do grupo Al-Qaeda, movimentos
separatistas no sul do país, corrupção, insegurança alimentar e o fato de que
muitos grupos militares seguiam leais a Saleh.
Desiludidos, muitos
iemenitas, mesmo sunitas, apoiaram os houthis, e, ao final de 2014, os rebeldes
tomaram Sanaa, forçando Hadi a se exilar.
O conflito tomou
proporções internacionais em março de 2015, quando a Arábia Saudita liderou uma
coalizão de oito países árabes, com apoio de Estados Unidos, Reino Unido e
França, para combater os houthis. O objetivo declarado era restaurar o governo
de Mansour Hadi.
A coalizão temia
que o avanço dos houthis fortalecesse a influência do Irã, um rival regional
xiita, no Iêmen, país vizinho da Arábia Saudita. A Arábia Saudita acusou o Irã
de fornecer armas e apoio logístico aos houthis, algo que o governo iraniano
nega.
Internamente, os
dois lados do conflito enfrentaram divisões. Os houthis romperam com Saleh, e o
ex-presidente foi morto por combatentes ligados ao grupo em dezembro de 2017.
Em 2015, forças da
coalizão saudita retomaram o controle de Áden e expulsaram os houthis de grande
parte do sul do Iêmen. Ainda assim, o governo de Hadi permanece enfraquecido e
operando em exílio, enquanto os houthis mantêm o controle de Sanaa.
Nos últimos anos, a
situação passou a gerar ainda mais preocupação internacional depois que grupos
houthis passaram a realizar ataques a navios cargueiros que passam pelo
estreito de Mandeb, que dá acesso ao Mar Vermelho, considerado um dos
corredores de trânsito de cargas mais movimentados do mundo.
Os sequestros de
embarcações são apontados por especialistas como uma das formas que a milícia
teria encontrado para financiar suas atividades.
Nos últimos meses,
rebeldes houthis também passaram a fazer ataques com mísseis a Israel.
Fonte: BBC News Brasil
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