Valério Arcary: A China já é capitalista?
A China é uma sociedade plena de paradoxos e
permanece ainda, em algum grau, um mistério. A confusão não deve nos
surpreender. Quais são os critérios que devem ser considerados, na tradição
marxista, para definir se um país é capitalista? E, se não é capitalista, qual
é a régua para avaliar se está em um processo de transição ao socialismo? A
China está realizando, desde os anos 1980, a transição histórica mais
vertiginosa do mundo agrário para uma sociedade urbanizada da história. Nesse
intervalo, nenhum país contribuiu mais para a erradicação da miséria no mundo
que a China.
Um país pode ser socialista, se as relações
econômicas-sociais são capitalistas, mas nenhuma fração da burguesia tem,
diretamente, controle do Estado? Ou, com outras palavras, um país pode ser
considerado capitalista se o poder é controlado por um partido comunista,
herdeiro de uma das maiores revoluções sociais da história? As façanhas do
crescimento econômico espetacular, e a fantástica modernização acelerada seriam
provas incontestáveis de que a China é socialista? Seria possível sustentar,
indefinidamente, uma vibrante economia capitalista, incentivando o
enriquecimento privado, ao longo de gerações, e preservar a estratégia de
transição ao socialismo? Como explicar a relativa estabilidade social e
política interna do país, equilibrando a força econômica da burguesia, por um
lado, e o domínio do Estado pelo aparelho do partido comunista, por outro? Não
é simples.
Mas não é um bom método considerar somente a
opinião que os dirigentes da China têm sobre seu Estado, sua economia e sua
sociedade: eles devem sua legitimidade política interna, ou pelo menos uma
parte dela, à defesa da revolução e ao prestígio de Mao. Pior ainda seria
considerar a opinião que os inimigos da China têm sobre ela, denunciada como
uma “ameaça comunista à civilização ocidental”. Ou seja, o mesmo cenário que
envolvia a URSS durante os anos 1980 e a ofensiva dos EUA contra o “Império do
mal”. A credulidade diante do fato de que tanto Brejnev como Reagan afirmassem
que a URSS era socialista só serviu para a desmoralização de gerações do povo
de esquerda pelo mundo afora. Este artigo não é conclusivo, embora tenha uma
inclinação. Corresponde a um momento da discussão.
O enigma chinês é um dos maiores desafios
teórico-históricos colocados para o marxismo contemporâneo. Historicamente, tem
uma importância semelhante à caracterização da URSS nos anos 1930. Encontrar
respostas exige um domínio imenso da formação econômico-social da China, o que
é uma especialização muito rara, portanto, muito rigor, humildade e cuidado
para os revolucionários do resto do mundo. Não parece razoável que a esquerda
brasileira, por variadas razões – limitações teóricas, provincianismo político,
isolamento linguístico – possa ser protagonista na primeira linha. Mas
deve acompanhar o melhor do debate marxista internacional. Não há lugar para
ingenuidades campistas.
Existem várias interpretações na esquerda sobre a
natureza da China nesta terceira década do século XXI, mas duas são principais.
O ininterrupto crescimento da economia, a impressionante redução da pobreza e a
tensão crescente de Washington contra Pequim para preservar a posição de
liderança no sistema internacional de Estados, entre outros fatores, exercem
atração e até deslumbramento sobre uma parcela. O regime político monolítico do
partido comunista, a concentração de poder pessoal de Xi Jin Ping, o peso
institucional das Forças Armadas ou o aumento da desigualdade social, entre
outros fatores, alimentam desconfiança e até repúdio em outra parcela. Mas
ambos os campos pecam pela superficialidade quando o debate se esgota nestes
termos.
Não menos importante, devem-se considerar as
pressões ideológicas contraditórias, mas devastadoras do momento histórico que
“turvam” a mente. Elas são duas, mas uma é mais poderosa que a outra: a ilusão
liberal-democrática e a ilusão campista. A principal pressão ideológica sobre a
esquerda é a defesa da democracia liberal como um horizonte histórico
intransponível. Essa conclusão é equivocada, mas se apoia em dois fatores
reais: (a) o peso da experiência inusitada, para padrões brasileiros, de regime
democrático-liberal, apesar do golpe institucional de 2016, que permitiu a
vitória do PT em cinco eleições presidenciais e a conquista de algumas
pequenas, mas valiosas reformas; (b) a consciência crescente do perigo da extrema
direita bolsonarista, agora reforçada pela vitória de Trump, e o medo histórico
de uma nova ditadura.
No outro extremo ideológico, o destino do Brasil é
indivisível da América Latina, em especial do Cone Sul, mas, por décadas, a
visão de mundo que prevaleceu foi o campismo da URSS. Essa ideologia repousava
na avaliação de que existiria um campo socialista no mundo como retaguarda
estratégica. A derrota histórica para a causa socialista que significaram a
restauração capitalista e o fim da URSS, em 1989/1991, não pode obscurecer que
foram quadros da liderança máxima do partido comunista, tendo à sua frente
primeiro Gorbatchev, depois Yeltsin e, finalmente, Putin que enterraram a
herança da Revolução de Outubro. O perigo de substituir o campismo da URSS, na
ligeireza, pelo campismo da China, sem um balanço crítico da lições da
história, é perigoso e incompatível com o marxismo.
Os dirigentes do partido comunista que deslocaram e
substituíram o grupo que, com o apoio de Mao Zedong, esteve à frente do partido
durante a Revolução Cultural, encabeçados por Deng Xiaoping, elaboraram o plano
das Quatro Modernizações, e admitiram, desde o final dos anos 1970, há quase
meio século, a necessidade de usar métodos capitalistas na construção de um
“socialismo com características chinesas”. Em outras palavras, defenderam a
necessidade de uma restauração capitalista, ainda que interina ou temporária, e
compensada pela defesa do regime de monopólio político do Partido Comunista.
Não há, portanto, polêmica de que aconteceu, em
algum grau, mais ou menos restrita, uma restauração do capitalismo. Mas ao
mesmo tempo defenderam que a regulamentação do direito à propriedade privada, a
regulação mercantil, a abertura para investimentos estrangeiros, em primeiro
lugar, da diáspora burguesa chinesa, eram somente medidas transitórias, embora
indefinidamente, ou sem prazos, para um “caminho nacional” ao socialismo.
No estágio de internacionalização já atingido pelo
capitalismo parece pouco razoável voltar à discussão sobre a viabilidade de
construção do socialismo em um só país. Mas, deixando essa premissa de lado e
suspensa, será que a evolução da China poderia ser analisada a partir da chave
de uma “NEP de longa duração”, inspirada no plano econômico impulsionado por
Lenin e Trotsky na URSS, há cem anos? Seria a China uma confirmação de que a
posição da fração liderada por Bukharin no final dos anos 1920 era uma
estratégia plausível? Estaria a experiência chinesa demonstrando que é
possível uma “restauração controlada” do capitalismo, por um intervalo longo,
que seria, gerações depois, revertida, fazendo uma curva histórica em que se
recuperasse o controle dos trabalhadores sobre a propriedade social? É possível
imaginar uma transição ao socialismo, sem participação popular democrática e
plural? Se a China é socialista, por que não socorre Cuba? Se a China é
socialista, por que não oferece investimento para diminuir o cerco da
Venezuela?
Os cinco argumentos mais populares, mas não mais
poderosos, dos que defendem que a China ainda seria um país socialista, até
mais forte do que até 1978/79, são que: (a) a direção do Estado está sob
controle do partido comunista; (b) na economia, apesar da regulação pelo
mercado, as maiores empresas são estatais; (c) a economia chinesa cresce em
ritmo incomparavelmente mais acelerado que as economias das principais
potências capitalistas, beneficiada pelo planejamento estatal; (d) apesar do
enriquecimento de uma burguesia interna e da formação de uma próspera classe
média, a desigualdade social, que cresceu nas primeiras décadas da restauração,
diminuiu desde a possse de Xi Jinping em 2012; (e) a China é uma potência
mundial, inclusive militar, espacial e nuclear, com um PIB que se aproxima à
dimensão do PIB norte-americano, mas as condições políticas de uma restauração
capitalista controlada não permitem que se caracterize que tenha alcançado a
condição de um imperialismo moderno, porque nunca se envolveu em guerras de
agressão.
Evidentemente, essas características, em alguma
medida, distinguem a China. Mas, sendo intelectualmente honestos não são são
suficientes para demonstrar de forma conclusiva que a China estaria em
transição ao socialismo. O fato de um partido ou governo se autodeclarar
socialista não prova nada. Não se deve julgar ninguém pelo que pensa de si
mesmo. Essa regra é universal e vale para pessoas e Estados. Não foram poucas
as nações, na história dos últimos cem anos, que atravessaram períodos em que a
maioria do PIB estava sob controle estatal, e a intervenção reguladora do
Estado era imensa.
Na Argélia, a Sonatrach, a empresa nacional
de petróleo, é a maior empresa na África, mas não ocorre a ninguém imaginar que
seria uma sociedade em transição ao socialismo. Tampouco se pode concluir que a
existência de planos e instituições reguladores estatais para metas de
desenvolvimento sejam uma prova de socialismo. Outros países o fizeram,
inclusive o Brasil durante o governo Geisel, com algum êxito. Se as estatais
estão ao serviço da cumulação capitalista, mesmo que seu peso econômico seja
grande, ou até mesmo esmagador, não são incompatíveis com o capitalismo. A
erradicação da pobreza aconteceu, também, em algumas outras nações, ainda que a
chinesa seja extraordinária.
Por último, a China denunciou, durante mais de 15
anos, a URSS como social-imperialista e esteve envolvida em uma
guerra-relâmpago com o Vietnã em 1979, e parece irrefutável que Pequim se
beneficia no mercado mundial, na mesma proporção que EUA e Europa, das
relações de troca desiguais com América Latina, África e Ásia, comprando matérias-primas
e vendendo equipamentos industriais, além da exportação de capitais. Nestes
termos, portanto, a discussão sobre a natureza da China não se resolve.
Talvez o argumento mais poderoso dos que defendem
que a China é socialista, ou em vocabulário marxista que sempre privilegia na
análise o caráter de classe, um Estado dos trabalhadores, é que a burguesia não
está no poder. Isso é verdade, embora com mediações, e tem muita importância.
Não há “sincronia” entre as relações sociais dominantes, que favorecem a
acumulação de capital e o controle do Estado pelo Partido Comunista. Há
substitucionismo histórico. Trata-se, de alguma forma, de uma anomalia, porque
as fricções e os conflitos entre burocracia e burguesia são incontornáveis.
Está “fora do padrão”. Mas não é uma “excepcionalidade” histórica, porque já
aconteceu, embora em outra época.
O estatuto social e político da burguesia chinesa é
de inferioridade diante da burocracia que controla o poder. O Estado na China é
monopólio político de um aparelho burocrático civil-militar dirigido pelo
Partido Comunista. Esse aparelho é uma casta privilegiada e tem sido
“funcional” para a prosperidade da economia privada. Existem e são toleradas
relações “promíscuas”, no sentido de híbridas, entre membros da burocracia e
proprietários de grandes empresas capitalistas, além de incontáveis exemplos de
“porta giratória” na passagem de quadros do setor público para o setor privado.
Mas, embora o modo de vida da burocracia seja incomparavelmente mais elevado
que o da média dos trabalhadores urbanos, os graus de privilégios são, também,
muito menores que os da burguesia em escala mundial.
A questão é saber se é possível, e por quanto
tempo, uma restauração capitalista sem que a burguesia se levante para
conquistar o poder? Quais os limites do susbtitucionismo histórico? Um
prolongado cerco imperialista contra a China provocaria uma crise social
interna? Uma exclusão da China do mercado mundial controlado por Washington,
como foi feito contra a Rússia, finalmente expulsa do sistema swift de
transações financeiras, em função da guerra na Ucrânia, teria consequências de
qual calibre?
A questão teórica colocada está entre as mais
complexas e remete a não-correspondências, desencontros e contradições entre a
natureza das relações sociais de produção dominantes e a natureza de classe do
Estado nos períodos de transição histórica, ou de revolução social.
Evidentemente os dois critérios devem ser considerados na análise. Mas qual
deve ser o critério decisivo? Nunca existiu sincronia “perfeita” entre a
natureza das relações sociais dominantes e o controle de classe do Estado. A
evolução histórica assumiu a forma do desenvolvimento desigual e combinado, e
as amálgamas mais surpreendentes de formas arcaicas e modernas aconteceram. O que
prevaleceu foram híbridos históricos. Nenhuma formação econômica social foi
“quimicamente pura”.
Em todas as sociedades, em especial quando dos
períodos de transição, conviveram relações pré-capitalistas e capitalistas de
variados tipos: o trabalho servil passou a ser residual em Portugal desde o
final do século XIV, mas sobreviveu na Rússia até o XIX. Durante séculos o
capitalismo floresceu na Europa, em sua forma comercial-mercantil e
manufatureira, muito antes da burguesia ter conquistado o controle dos Estados
nacionais em formação. A revolução burguesa começou nas cidades-Estado
italianas e nos Países Baixos, antes da República de Cromwell em 1640 e séculos
antes da revolução francesa de 1789.
Mesmo depois do início da revolução industrial, em
distintos países, como França e Inglaterra, por exemplo, as duas classes
dominantes – aristocracia em decadência e burguesia em ascensão – conflitaram e
colaboraram no exercício do poder. As economias alemã, austro húngara e,
talvez, até mesmo a russa de meados do século XIX eram economias capitalistas,
mas não parece tão simples a caracterização de classe dos seus respectivos
Estados. O absolutismo tardio do XIX era um resíduo feudal, ou uma máscara
monárquica da reação aristocrático-capitalista, após o susto da onda
revolucionária de 1848? Leon Trotsky usou as elaborações do marxismo clássico
para tentar compreender a natureza contraditória da URSS nos anos 30 do século
passado e chegou a uma caracterização do híbrido como ainda um Estado operário,
mas burocraticamente degenerado.
Na segunda metade do século XX, o debate entre
historiadores inspirados no marxismo chegou, grosso modo, a duas posições, duas
escolas de interpretação polemizando a partir de conclusões antípodas, tendo
como quadro de análise a avaliação histórica sobre a transição do feudalismo ao
capitalismo e a definição do lugar social do Estado Absolutista. Teria este
sido, essencialmente, um ponto de apoio ou um obstáculo para a transição? O
tema deve nos interessar porque a questão de fundo é saber se o Estado chinês é
um ponto de apoio ou um obstáculo para uma transição ao socialismo.
Perry Anderson sustenta que as monarquias
absolutistas eram um anacronismo histórico feudal – o poder da fidalguia seria
uma relíquia de séculos medievais passados -, um resíduo reacionário defensivo
diante das novas forças sociais em ascensão, em contradição (ou antagonismo
relativo) com as novas relações capitalistas. Wallerstein defende que desde o
final da grande crise do século XIV iniciou-se um duplo processo revolucionário
antifeudal: uma revolução social camponesa contra a servidão, que terá na
derrota das guerras na Alemanha o desenlace histórico mais paradoxal, a
preservação tardia da servidão, mas o triunfo da reforma religiosa; e uma
revolução econômica burguesa.
A derrota da primeira teria criado condições mais
favoráveis para a vitória da segunda, que assim abriu o caminho para a formação
de uma economia-mundo europeia capitalista, sendo o absolutismo a forma
transitória do Estado forte, com uma burocracia parasitária e cara, porém
necessária, que corresponde à fase de acumulação primitiva.
A discussão está longe de ser ociosa: ela é chave
para compreender duas questões centrais na discussão das transições históricas.
A primeira é a qualificação social do Estado: ela se faz a partir do controle
de classe, ou seja, tendo como critério as forças sociais que exercem o poder
(como sugere a investigação de Anderson em Linhagens do Estado
Absolutista), ou a partir
das relações econômico-sociais que, historicamente, estão sendo mais dinâmicas,
como propõe Wallerstein em O Moderno Sistema Mundial?
Da primeira hipótese decorre a conclusão inapelável
de que a lentidão secular da transição burguesa, entendida aqui como revolução
social, resultou do atraso histórico da revolução politica. Da segunda resulta
uma apreciação das mudanças na longa duração que desvaloriza o lugar da
revolução politica. Como se pode concluir, este debate é chave para a discussão
do destino das revoluções do século XX. Afinal, o desafio é compreender a
tragédia que foi a restauração capitalista na URSS sem maior resistência social
dos trabalhadores. Se Anderson está certo, não se pode concluir ainda que a
China já seria capitalista. Se Wallerstein está certo, sim.
O nosso drama é que o repertório da esquerda
brasileira se resume aos horizontes democratistas e campistas. Há vários tipos
de cada um deles. O critério comum dos democratistas é a paixão liberal pelas
instituições da democracia representativa. Esse alinhamento desemboca,
irremediavelmente, em capitulação ao imperialismo. A história já deixou gravada
em pedras graníticas que qualquer sociedade em que triunfe uma revolução social
terá que limitar as liberdades da classe dominante, senão o novo regime
desmorona sob dupla pressão interna e externa. Evidentemente, medidas de força
sobre os capitalistas são mais efetivas e legítimas quando a elas são
associadas medidas de ampliação da mobilização popular.
O critério comum a todos os campismos foi a escolha
de uma contradição predominante, os interesses diplomáticos de um Estado no
sistema internacional, à qual as outras contradições – como o antagonismo entre
capital e trabalho em cada sociedade – estariam permanentemente subsumidas. As
lutas de classes em cada região do mundo deveriam estar subordinadas às razões
de Estado. Em consequência, as lutas dos trabalhadores e da juventude contra a
opressão burocrática, nos países com economias pós-capitalistas, eram
desconsideradas como uma expressão da manipulação das reivindicações populares
pela contrarrevolução, que pretendia derrubar os governos socialistas.
Uma insuperável divisão se estabeleceu durante
décadas entre as lutas no Ocidente e no Oriente, acabando de enterrar o
internacionalismo como um movimento político organizado, tal como tinha existido,
por exemplo, diante da revolução espanhola. A destruição do internacionalismo
com o divórcio das lutas no Ocidente e no Leste estão entre as derrotas mais
profundas do marxismo como movimento político e do movimento dos trabalhadores.
Não precisamos repetir os mesmos erros.
Fonte: Opera Mundi
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