segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Os 200 anos do plano que transformou América Latina em 'quintal dos EUA'

"América para os americanos" é a frase que resume uma das políticas externas mais antigas e emblemáticas dos Estados Unidos, que tem 200 anos: a Doutrina Monroe.

Ela foi apresentada em 2 de dezembro de 1823 pelo presidente James Monroe (1817-1825) em discurso perante o Congresso dos Estados Unidos.

Na sua mensagem, Monroe emitiu um alerta às potências europeias para que permanecessem fora do continente americano.

Aqueles eram os anos posteriores às independências que as nações americanas ganharam frente às monarquias da Espanha, França ou Portugal.

"Os continentes americanos, pela condição de liberdade e independência que assumiram e mantêm, não deverão doravante ser considerados sujeitos de futura colonização por qualquer potência europeia", disse Monroe no Congresso do seu país.

Ele afirmou que qualquer intervenção seria considerada um ataque aos próprios Estados Unidos e garantiu que o seu país não se envolveria em nenhuma disputa na Europa.

Mas, para além de ser vista como um gesto de solidariedade com outros países da região, a doutrina que o presidente expôs conduziu a uma política expansionista e à protecção dos interesses econômicos dos EUA no Hemisfério Ocidental (e, em menor medida, dos dos seus parceiros britânicos).

"O significado da Doutrina Monroe tem variado constantemente desde que o presidente Monroe a enunciou em seu discurso ao Congresso em 1823. As discrepâncias variam dependendo de como indivíduos específicos interpretaram a doutrina nos últimos 200 anos", explica o escritor e especialista em história dos Estados Unidos, Alex Bryne, em entrevista à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.

E, em nome da Doutrina Monroe, nos últimos dois séculos houve numerosas intervenções políticas, militares e econômicas dos EUA na América Latina, uma região que por causa disso passou a ser chamada de "quintal" de Washington.

Por que a doutrina surgiu

O discurso do presidente Monroe foi proferido poucos anos após a formação da chamada Santa Aliança na Europa (1815) entre os impérios da Rússia, Áustria e Prússia, que tinha como objetivo a defesa das monarquias absolutistas e a luta contra os movimentos revolucionários.

Nesse contexto, a Grã-Bretanha – que havia assumido boa parte do comércio que as nações independentes cortavam com o resto da Europa – se aliou aos Estados Unidos para impedir o retorno de outras potências europeias ao continente americano.

Monroe e seu secretário de Estado, John Quincy Adams, formularam uma política que estabelecia que os Estados Unidos assumissem a defesa da soberania americana com o apoio do poder naval britânico, que faltava ao seu país.

"Consideraríamos perigosa para a nossa paz e segurança qualquer tentativa da sua parte [por parte das potências europeias] de estender o seu sistema a qualquer parte deste hemisfério", disse Monroe aos congressistas.

Ele alertou que qualquer ação contra os países independentes da América “com o propósito de oprimi-los ou de outra forma controlar o seu destino" por qualquer potência europeia seria vista "como a manifestação de uma disposição hostil com os Estados Unidos”.

Para o professor Alex Bryne, esta declaração “na sua forma mais pura” é uma proclamação “afirmando que os Estados Unidos considerarão qualquer nova colonização dos subcontinentes americanos como uma ameaça aos seus interesses nacionais”.

Mas colocar em prática essa doutrina não foi fácil, pois naquela época os Estados Unidos não eram a potência que conhecemos hoje.

"Os EUA era um país independente havia anos (1776), mas ainda era um país fraco, limitado à costa leste do seu território", explica o historiador Veremundo Carrillo, especialista em relações pan-americanas do Colégio do México.

O verdadeiro efeito da Doutrina Monroe, apontam os especialistas, seria visto décadas mais tarde na forma como foi interpretada e implementada, especialmente no final do século XIX e durante a maior parte do século XX.

·        Os primórdios da doutrina

Entre os países latino-americanos, as palavras de Monroe foram bem recebidas.

As nações independentes buscaram o reconhecimento internacional e os Estados Unidos foram um dos primeiros países a concedê-lo. Por sua vez, o Reino Unido se tornou um “banco” que financiou as novas nações americanas, o que favoreceu o acesso de Londres ao rico comércio do continente.

O herói da independência sul-americana, Simón Bolívar, declarou em 1824: “A Inglaterra e os Estados Unidos nos protegem”.

Da mesma forma, o vice-presidente colombiano Francisco de Paula Santander garantiu que teriam aliados “no caso de a sua independência e liberdade serem ameaçadas pelas potências aliadas”. Chile e Argentina também expressaram gratidão.

No México, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Lucas Alamán, queria que os EUA fornecessem recursos de todos os tipos “para apoiar a independência e a liberdade”.

Mas a implementação inicial da Doutrina Monroe não foi o que os governos latino-americanos esperavam.

A tomada das Ilhas Malvinas/Falklands pelo Reino Unido ocorreu em 1833 sem intervenção dos EUA.

Os britânicos reforçaram então o seu controle sobre Belize, Jamaica e outros territórios caribenhos, também sem intervenção americana.

 “Houve várias ocasiões em que a Doutrina Monroe foi questionada, mas cabia aos políticos americanos determinar se o questionamento era realmente válido”, observa Bryne.

“Afinal, a Doutrina Monroe não comprometeu os Estados Unidos com nenhuma ação.”

·        A doutrina expansionista

Foi o presidente James K. Polk (1945-1849) quem fez a primeira reinterpretação da doutrina “como uma política de expansão dos EUA”, diz Carrillo.

Washington realizou a invasão do México, pela qual este país foi forçado a ceder 55% do seu território, em 1848. Também ocupou em vários momentos a República Dominicana e o Panamá.

O caso da intervenção francesa no México (1862-1867), através da qual Napoleão III estabeleceu um império efêmero com o apoio dos conservadores mexicanos, foi mais uma prova de que o espírito original da Doutrina Monroe não foi aplicado uniformemente.

Os Estados Unidos não mostraram mais oposição. O fato de esse período coincidir com a Guerra Civil Americana (1862-1865) limitou enormemente o apoio de Washington ao governo liberal de Benito Juárez.

 “Os Estados Unidos não tiveram poder para fazer cumprir a doutrina durante a maior parte do século XIX”, afirma Bryne.

O presidente Rutherford B. Hayes (1877-1881) também fez sua própria interpretação da Doutrina Monroe, ao declarar a América Central e o Caribe uma região de influência exclusiva dos Estados Unidos.

Nessa altura, o controle da Nicarágua e do Panamá já era fundamental como passos estratégicos para o comércio entre o Pacífico e o Atlântico.

Em um outro momento chave da sua política expansionista, em 1898 os Estados Unidos intervieram na independência de Cuba e Porto Rico, colocando as ilhas das Caraíbas sob a sua tutela.

·        A 'polícia' da América

Os Estados Unidos também mediaram, no final do século XIX, o conflito entre a Venezuela e o Reino Unido pela colônia britânica da Guiana (atual Guiana).

E em 1903 Washington mediou novamente para acabar com o bloqueio naval que os britânicos impuseram à Venezuela para o pagamento de dívidas.

Foi então que o presidente Theodore Roosevelt (1901-1909) estabeleceu um novo termo à Doutrina Monroe: os Estados Unidos poderiam intervir nos assuntos internos de uma nação latino-americana se esta cometesse crimes flagrantes.

Nas décadas seguintes, com um poderio militar e econômico que os tornou uma potência mundial, os Estados Unidos se estabeleceram como “a polícia americana com o pretexto de proteger o continente”, diz Carrillo.

E Washington realizaria trinta intervenções em países latino-americanos.

Nas duas Guerras Mundiais, os Estados Unidos exerceram maior controle do continente para evitar a influência das potências inimigas. E durante a Guerra Fria, diferentes presidentes dos EUA “invocaram o perigo comunista” para justificar as suas numerosas intervenções na América Latina.

“Se fala de muitas doutrinas: a Truman, a Kennedy, a Johnson. Mas numa leitura mais panorâmica, são todas reinterpretações da Doutrina Monroe”, considera Carrillo.

·        Ainda é válida?

A Doutrina Monroe ainda é válida hoje?

“Acredito que a Doutrina Monroe não pode ser aplicada hoje da mesma forma que no passado. A mensagem original de Monroe era fortemente contra o colonialismo, o que não é relevante hoje”, acredita Brynes.

“Pessoalmente, acredito que a Doutrina Monroe não faz mais sentido, é um significante vazio ao qual muitos significados diferentes foram atribuídos ao longo do tempo.”

No entanto, Carrillo considera que “a ideia que deu origem à Doutrina Monroe continua válida: os EUA continuam tendo um papel preponderante no que diz respeito aos seus vizinhos”.

“Um dos paradoxos que os Estados Unidos têm é ser uma república imperial, com valores do republicanismo democrático, que muitas vezes tem agido com base no imperialismo mais clássico, com interesses puramente comerciais”, conclui.

 

¨      O corajoso 'não' que deu origem ao movimento pelos direitos civis nos EUA

Na noite de 1º de dezembro de 1955, uma mulher afro-americana de 42 anos, cansada depois de um longo dia de trabalho como costureira, embarcou em um ônibus na cidade de Montgomery, no Alabama (EUA), para ir para casa. Ela pagou a passagem e ocupou um assento vazio na parte do ônibus reservada para "pessoas de cor".

Seu nome era Rosa Parks (1913-2005).

Cinquenta e cinco anos antes, Montgomery havia aprovado uma lei que segregava os passageiros dos ônibus por raça. A frente do ônibus era reservada para cidadãos brancos e os assentos do fundo se destinavam aos cidadãos negros.

E também havia o costume entre os motoristas dos ônibus de instruir os passageiros negros a ceder o seu assento se não houvesse lugares "só para brancos" vazios.

Quando o ônibus ficou lotado naquela noite de inverno, o motorista James Blake exigiu que Rosa Parks e três outros passageiros negros cedessem seus assentos. Mas ela se recusou.

"Fiz isso porque me senti desrespeitada como ser humano", contou ela mais tarde, em entrevista à BBC.

"Eu havia tido um dia difícil no trabalho, [estava] fisicamente cansada e mentalmente irritada. Eu estava farta desse tipo de coisa que precisava enfrentar como pessoa devido à nossa raça."

A recusa de Parks teve rápida repercussão. O ônibus parou e ela foi imediatamente presa pela polícia local.

Em 5 de dezembro, ela foi declarada culpada de violar as leis de segregação, teve a pena suspensa e foi multada em US$ 10, mais US$ 4 de custas judiciais. Em valores de hoje, o valor total de US$ 14 em 1955 corresponde a aproximadamente US$ 160, ou cerca de R$ 785.

A prisão de Rosa Parks não foi um caso isolado. Ela foi consequência das leis Jim Crow, que pretendiam legalizar o racismo e marginalizar os negros americanos.

As leis regiam quase todos os aspectos da vida diária, negando aos negros americanos o direito ao voto e ordenando a segregação de escolas, toaletes, transporte público e restaurantes.

Também não foi a primeira vez em que uma pessoa foi presa por se recusar a ceder o assento para um passageiro branco. Nove meses antes, Claudette Colvin, de apenas 15 anos, havia enfrentado a mesma situação.

Mas, desta vez, a tranquila ousadia de Rosa Parks acabaria sendo o catalisador das mudanças.

<><> Punida por sua coragem

A postura aparentemente calma de Rosa Parks contrastava com a experiente ativista que havia sido secretária da filial da Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor (NAACP, na sigla em inglês) na cidade de Montgomery.

Após sua prisão, a Associação para o Progresso de Montgomery organizou um boicote ao sistema de ônibus da cidade. O protesto foi encabeçado por um jovem pastor de 26 anos chamado Martin Luther King Jr. (1929-1968), que viria a liderar o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos.

O boicote durou mais de um ano e a perda de receita paralisou o sistema de transporte público da cidade. A situação chamou a atenção de todo o país para o racismo institucional que permeava as leis Jim Crow.

Paralelamente, o caso de Rosa Parks seguia seu trâmite no judiciário americano. O processo acabou chegando à Suprema Corte em dezembro de 1956, que decidiu que a segregação do ônibus era inconstitucional.

Mas Parks foi punida pela sua coragem. Ela perdeu o emprego na loja de departamentos durante o boicote dos ônibus e enfrentou ameaças de morte durante todo o processo judicial.

No ano seguinte à decisão da Suprema Corte, ela e seu marido (que também perdeu o emprego) se mudaram para Detroit, tentando escapar do contínuo assédio que sofriam.

O casal teve dificuldades para encontrar trabalho nos anos que se seguiram, devido à retaliação que se seguiu ao boicote. Ela também sofreu problemas de saúde, que trouxeram altas contas hospitalares.

Ainda assim, Rosa Parks manteve seu profundo envolvimento na luta pelos direitos civis, defendendo moradias dignas e direito ao voto em Detroit.

Ela se inscreveu como voluntária na campanha do candidato democrata local ao Congresso, John Conyers (1929-2019). Depois de eleito, Conyers a contratou como assistente no seu escritório em Detroit – cargo que ela ocupou até se aposentar.

<><> 'Mãe do movimento'

A prisão de Rosa Parks pôs fim à segregação racial no transporte público nos Estados Unidos, mas seu impacto foi muito maior.

Sua calma resistência frente ao racismo mobilizou a comunidade negra, formando as bases da campanha pelos direitos civis, que incluiu a histórica Marcha sobre Washington em 1963 e a aprovação da Lei dos Direitos Civis de 1964 e da Lei do Direito ao Voto de 1965.

"Acho que, se houve um momento, um evento no movimento pelos direitos civis que começou nos anos 1950, você pode indicar o boicote aos ônibus de Montgomery e a sra. Parks... que foi simbolizado por este tribunal e sua condenação...", afirmou o advogado de Rosa Parks, Fred Gray, na entrevista à BBC.

A recusa de Parks a ceder seu assento alimentou o entusiasmo por um movimento de massa que acabaria destruindo as políticas racistas de segregação. E ela se tornou um símbolo da luta por justiça e igualdade.

Em 1999, o Congresso americano concedeu a Rosa Parks sua mais alta homenagem, a Medalha de Ouro do Congresso, por ser considerada "a mãe do movimento pelos direitos civis".

 

Fonte: BBC News 

 

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