Crise climática é amplificadora de outras crises, alerta
pesquisadora
O ano de 2025 iniciou com chuvas intensas no Sul e Centro-Oeste do país
e estiagem no Nordeste, evidenciando, a cada ano mais, os efeitos da
mudança climática. Com a crise, desigualdades também são acentuadas e novos
desafios globais se impõem.
A urgência no enfrentamento à crise e a busca por soluções, temas
centrais da 30ª Conferência sobre Mudança do Clima (COP30), que será realizada
este ano no Brasil, são analisadas pela pesquisadora Mercedes Bustamante, da
Universidade de Brasília (UnB).
Em entrevista exclusiva à Agência Brasil, a colaboradora do Painel
Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da Organização das Nações
Unidas (ONU) afirma que a crise climática é uma amplificadora de outras
crises.
"Ela vai contribuir para o agravamento de outras crises que nós já
vivemos. Ela agrava a desigualdade, agrava o problema da fome, agrava o
problema dos recursos hídricos, das migrações humanas, dos conflitos
geopolíticos", destaca.
Na entrevista, ela aponta ainda alguns caminhos para amenizar as
instabilidades e afirma que a primeira e mais urgente ação é trabalhar nas
causas do aquecimento global.
<><> Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista com a
especialista:
·
Quais são os efeitos das mudanças
climáticas sobre os seres humanos?
Eu acho que a gente vai viver pior. O secretário-geral da ONU
[António Guterres] fala isso muito bem. A crise climática é uma amplificadora
de outras crises. Ela vai contribuir para o agravamento de outras crises que
nós já vivemos. Ela agrava a desigualdade, agrava o problema da fome, agrava o
problema dos recursos hídricos, das migrações humanas, dos conflitos
geopolíticos. Nós construímos as nossas sociedades nos últimos 10 mil anos em
um período em que o clima da terra tinha uma relativa estabilidade. Isso
significa que a gente se organizou para contar com essa estabilidade climática.
E agora que a gente entra nesse processo de transição, de instabilidade
climática, estamos percebendo as consequências que isso vai ter para a forma
como organizamos a nossa vida. Eu acho que o quadro mais crítico que a gente vê
hoje é o aumento da desigualdade. Uma concentração de renda cada vez mais na
mão de poucas pessoas. Isso nos torna ainda muito mais dependentes do fluxo de
recursos para combater as ações da mudança do clima, mas também para encaminhar
ações de adaptação, ou seja, como é que a gente pode fazer para reduzir os
impactos daquilo que vem por aí. O que vemos com muita preocupação é que se não
tiver uma vontade política, uma clareza, um engajamento de atores privados
também, sobretudo aqueles que têm um controle maior da economia, realmente
vamos entrar num período de muita instabilidade, muita insegurança.
·
O que é preciso ser feito para
amenizar essas instabilidades?
Eu acho que hoje precisamos contar com todas as soluções possíveis. É
claro que a primeira ação importante é trabalhar nas causas do aquecimento
global. Realmente é uma transição energética feita com seriedade, rapidez e
robustez, que diminua a nossa dependência dos combustíveis fósseis. Acho que
hoje realmente esse caminho de abrir mão das reservas de petróleo e investir
muito fortemente em outras fontes de energia que não causem o aquecimento
global é o dever de casa obrigatório para todas as economias, para todos os
setores. Depois, nós temos opções que também passam pelas escolhas individuais,
de consumo, de mobilidade, mas é o que eu sempre falo, o indivíduo, para que
ele possa fazer as melhores opções, ele precisa das políticas públicas que
pavimentem esse caminho. Quando a gente fala, por exemplo, de mobilidade
urbana, de as pessoas abrirem mão dos seus veículos particulares, é que elas
podem contar com um sistema público de qualidade, que funciona no horário, que
é limpo, que é acessível, e isso é política pública. Quando você olha a questão
de reduzir o risco pela construção de moradias em locais que são seguros ou que
não são apropriados, significa que a política pública tem que desenhar moradias
em locais que tenham atividade econômica ativa, porque não adianta você jogar
as pessoas para longe, onde não tem atividade econômica, onde elas não vão ter
emprego, saúde, trabalho. É necessário fazer esse planejamento das cidades. As
cidades concentram um grande número de pessoas, o que significa que elas
concentram problemas, mas podem ser também o foco de muitas das soluções. É
preciso realmente repensar todo esse planejamento. E eu acho que os indivíduos
fazem as opções a partir do momento em que veem alternativas que são viáveis e
que são colocadas pelo poder público. Novamente, eu repito, que é muito
importante, hoje, com a concentração de capital na mão de poucos, a
responsabilidade do setor financeiro de apoiar as iniciativas que reduzam a
crise climática. O mundo como um todo vai perder. A atmosfera é um bem comum
global. Todo mundo precisa dela. Então, existe espaço para que todos os setores
possam atuar. Agora, esse processo de coordenação, efetivamente tem que ser
feito pelos governos, e não de forma isolada. É por isso que acordos globais do
clima são tão importantes. Porque não adianta, por exemplo, o Brasil reduzir
suas emissões [de gases do efeito estufa], se outros países não o fazem. É
preciso que você olhe para o lado e a pessoa que está ao lado deve fazer o
mesmo esforço que eu estou fazendo dentro do seu contexto.
·
A mudança climática já tem
efeitos efetivos, como o aumento da temperatura global. Quais as adaptações nas
cidades são mais necessárias e urgentes?
Eu acho que o Brasil tem um dever de casa novamente para fazer com as
suas áreas urbanas. A gente vem, desde 2011, sofrendo com esses eventos de
chuvas extremas, e a missão primeira sempre é salvar vidas. Efetivamente, como
é que a gente tira as pessoas dessas áreas de risco? Eu acho que esse é um
ponto importante. Todas essas cidades que sofreram impactos [das chuvas], como
o Rio Grande do Sul, que a gente vive ainda os efeitos, a Região Serrana do Rio
de Janeiro, lá em 2011, é necessário olhar o processo de reconstrução. Essa
reconstrução tem que ser nova. Vai reconstruir, mas vai reconstruir de uma
outra forma talvez em outros lugares. É onde eu acho que ainda estamos
precisando avançar muito mais no planejamento. Primeiro, tem que pensar, e se não
acontecesse? Depois, acontecendo, como é que a gente vai lidar com essa
situação? E pensar que se as pessoas retornam para os locais onde elas, e
sucessivas gerações, vêm sofrendo com o mesmo tipo de catástrofe, é porque não
têm alternativa. Eu acho que é preciso pensar muito rapidamente nisso. E outro
ponto que eu acho que se precisa olhar, como no Brasil, é o setor que mais
emite gases de efeito estufa, o setor da agricultura, que envolve o
desmatamento de florestas. É pensar que na conservação dos recursos naturais, o
Brasil tem uma dupla oportunidade de olhar o problema da mitigação, de reduzir
as emissões de gases de efeito estufa e aumentar o sequestro desse gás. Ao
mesmo tempo, a recuperação dessas áreas verdes, sejam elas urbanas, sejam na
parte do campo, seja a conservação de áreas naturais, é também uma ação de
adaptação. Então, a gente ganha pelos dois lados, se fizer uma gestão ambiental
correta.
·
Olhando para a política climática
global, como você acha que as decisões de outros países, como a eleição do
presidente dos Estados Unidos, influencia no enfrentamento a essas crises?
Com certeza era muito melhor você ter o país que é o segundo emissor
global de gases de efeito estufa junto nessa pauta. Reduzindo as emissões e
combatendo os impactos da mudança climática. Agora, os Estados Unidos já saíram
num outro momento do Acordo de Paris. É óbvio que esse segundo mandato de
Donald Trump tem aspectos que são diferentes, mas hoje muitos aspectos da
transição energética, iniciativas de empresas, que as companhias já fizeram,
não vão voltar para trás. A gente ainda vai precisar entender o que realmente
vai significar esse novo mandato do presidente [Donald] Trump. Mas, que isso
não seja uma carta branca para que os demais países também deixem de fazer os seus
esforços, porque, novamente, os impactos vão ser distribuídos por todos os
países, e vão afetar as populações mais vulneráveis desses países também. O que
significa também mais combustível para conflitos sociais, para desgastes da
classe política, para dificuldades que a gente já vem enfrentando. É preciso
ter muita atenção a esse tema, como um tema que veio para ficar. Ele pode ter
impulsos, onde você tem governantes que estão mais afeitos a essa agenda e
outros menos, em outro momento, mas essa é uma agenda que não vai sumir. Ela
está aí para nos acompanhar até o final do século ou mais.
·
Tem mais algum ponto que você
considera importante a gente destacar em relação à questão da mudança
climática?
Eu acho que o tempo joga muito contra a gente nessa questão. Eu falo que
essa é uma pauta que não vai sumir, mas é óbvio que quanto mais cedo tratarmos
dela, melhor. Se o problema tivesse sido abordado 30 anos atrás, e não o foi
porque as forças negacionistas se organizaram muito rapidamente, talvez a gente
hoje estivesse em um outro patamar dessa discussão. Vamos esperar que as
pessoas percebam que o senso de urgência é primordial para discutir essa
questão também.
Fonte: Agência Brasil
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