EUA e OMS: impasse na saúde global
Desde os resultados da última eleição presidencial dos
Estados Unidos, experts têm refletido sobre os possíveis impactos de uma
eventual saída do país da Organização Mundial da Saúde (OMS). Nesta
segunda-feira (20/1), com o anúncio de uma ordem executiva de Donald
Trump que estabelece que “os Estados Unidos pretendem deixar a OMS”, esse
debate ganhou destaque na mídia.
Quais são as implicações disso para os EUA, para a OMS
e para o mundo? Esse é um debate em aberto, e analistas têm apresentado
diferentes perspectivas. Um ponto crucial a destacar é que o verbo “pretender”,
usado na ordem executiva — e também em uma nota pública da agência
das Nações Unidas, emitida em resposta — é chave aqui: uma eventual saída não
pode ser imediata.
Para muitos, a saída dos Estados Unidos seria uma
situação de perde-perde: perdem os EUA, perde a OMS – e, com isso, perde o
mundo e as pessoas. Por um lado, a OMS poderia enfrentar impactos financeiros
significativos, pois os EUA são um dos maiores contribuintes, tanto em
contribuições obrigatórias quanto voluntárias – estas últimas representando o
maior desafio. Também seriam comprometidos esforços globais pela saúde que vão
desde segurança sanitária até o acesso a serviços básicos em nações que dependem
quase exclusivamente da OMS.
Mas os EUA também têm a perder. Deixar a OMS significa
significaria abrir mão de ser parte de redes globais de vigilância em saúde.
Agências como os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em
inglês), que colaboram com a OMS em pesquisas e emergências, perderiam acesso a
dados globais com que a agência das Nações Unidas trabalha e que são cruciais
para orientar decisões nacionais de saúde pública. O mesmo impacto recairia
sobre a Administração de Alimentos e Medicamentos (FDA), que também mantém
parcerias estreitas com a OMS. Além disso, há os Centros Colaboradores que, ao
colaborarem com a OMS, se beneficiam dessa relação – caberia manter centros em
um país que não é membro da organização?
Publicada no dia seguinte ao anúncio da medida de
Trump, a nota da OMS “lamenta o anúncio de que os Estados Unidos da América
pretendem se retirar da Organização”. A agência relembrou que “os Estados
Unidos foram um membro fundador da OMS em 1948 e têm participado da formação e
governança do trabalho da OMS desde então, ao lado de outros 193
Estados-membros, inclusive por meio de sua participação ativa na Assembleia
Mundial da Saúde e no Conselho Executivo”, assinalando que “as instituições
americanas contribuíram e se beneficiaram da filiação à OMS”.
Destacando os problemas que a decisão pode acarretar
para os EUA, o jornal The New York
Times, por exemplo, publicou que
a “saída da OMS prejudicaria a posição da nação como líder global em saúde e
tornaria mais difícil combater a próxima pandemia”. De fato, participar da
agência significa integrar esforços globais para ampliar o acesso à saúde para
todos. Além disso, a presença na organização permite aos países influenciar
debates globais, participar de respostas conjuntas e beneficiar-se de trocas
estratégicas, como acesso a informações de primeira linha e pesquisas
científicas avançadas essenciais para a saúde pública. Em resumo, estar na OMS
traz ganhos globais e nacionais diretos.
Já considerando os problemas que a decisão pode
representar para o mundo, vale lembrar que a decisão sobre pretensão de saída
da OMS foi anunciada junto de um pacote de ordens executivas, incluindo uma que
estabelece uma pausa na assistência ao
desenvolvimento de outros países por 90 dias – o que, na prática,
pode levar à interrupção de tratamentos em saúde por todo o mundo. No Quênia,
por exemplo, cerca de 1,3 milhão de pessoas que vivem com HIV têm acesso a
tratamento adequado por meio de programas sustentados pelo fundo global de
saúde e por agências da ONU.
Para completar, debate-se que a retirada da OMS teria
potencial impacto sobre a liderança global dos EUA em saúde, que poderia ser
enfraquecida.
Por isso tudo, há quem argumente que a ordem executiva
é negociável e revogável. E há espaço real para isso. Retomando o texto da
ordem, ela afirma que os “os Estados Unidos pretendem se
retirar da OMS”. Por que o verbo “pretender”?
Conforme a legislação dos EUA, a saída de um
tratado internacional exige que o país informe sua intenção com um ano de
antecedência e quite suas obrigações financeiras com a organização no atual ano
fiscal – pagamentos geralmente realizados em janeiro. Isso implica que a ordem
executiva é, na prática, um aviso inicial.
Em entrevista à DW, Lawrence Gostin,
professor de legislação em saúde global e diretor do WHO Collaborating Center
on Public Health Law and Human Rights na Universidade de Georgetown, argumentou
que o presidente Trump é conhecido como um “negociador” e poderia usar essa
medida como ferramenta para pressionar por mudanças na OMS – apesar de a
organização já ter implementado reformas importantes nos últimos sete anos.
Outro argumento recorrente é que Donald Trump
poderia usar essa situação como moeda de troca em negociações internas no
Congresso americano, como a aprovação de reformas em troca da revogação da
ordem executiva.
·
E o que pode mudar na saúde mental global?
Os impactos para a OMS da saída dos EUA seriam
abrangentes, em especial para a saúde mental. É parte do trabalho da OMS
fortalecer os sistemas de saúde mental, saúde cerebral e uso de substâncias em
todo o mundo.
Ao menos desde 2001, com o marco da publicação do
Relatório Mundial da Saúde intitulado “Saúde mental: nova concepção, nova
esperança”,
a OMS tem atuado para que a saúde mental seja reconhecida como um direito de
todos, assinalando que o caminho dos sistemas de saúde mental é de substituição
de hospitais psiquiátricos por serviços de saúde mental de base
comunitária.
Nos últimos 25 anos, a organização desempenhou um papel
central na transformação do paradigma de atenção em saúde mental, oferecendo
apoio técnico e institucional aos países para implementar mudanças necessárias
e promover o desenvolvimento de sistemas e políticas de saúde mental alinhado
aos direitos humanos, incluindo orientação para revogação de leis violadoras de
direitos e criação de leis garantidoras de direitos. Na América do Sul,
enquanto exemplo de países que transformaram seus sistemas de saúde mental com
apoio direto da OMS, estão o Chile e o Peru; se considerarmos as recentes
Iniciativas Especiais de Saúde Mental em curso, somam-se a eles a Argentina e o
Paraguai.
Nos últimos dez anos, a saúde mental global recebeu
reforços significativos, especialmente a partir da Resolução nº 32/18, liderada
por Brasil e Portugal e adotada no Conselho de Direitos Humanos da ONU em 2016.
A resolução reconhece que “todas as pessoas têm direito à vida, à liberdade, à
segurança pessoal, a viver de forma independente e a ser incluídas na
comunidade” e também que “ninguém deve ser submetido a torturas, penas ou
tratamentos cruéis, desumanos e degradantes”.
A partir desse diagnóstico, os Estados membros e outras
agências da ONU foram convocados a integrar plenamente uma perspectiva de
direitos humanos nos serviços de saúde mental e comunitários.
Olhando da perspectiva da história da reforma
psiquiátrica brasileira, que tem seu início no final dos anos 1970 enquanto
movimento social crítico, chama atenção que apenas em 2016 foi aprovada uma
resolução de grande peso afirmando os direitos das pessoas com problemas de
saúde mental e necessidade de cuidado em liberdade. O Brasil, de fato, é uma
liderança e referência mundial para a
transformação do modelo de atenção em saúde mental.
Ocorre que, mesmo com os esforços da OMS dos últimos 25
anos da OMS, muitos países ainda baseiam suas políticas de saúde mental em
hospitais psiquiátricos. A partir de 2016, com o impulso gerado pela resolução
e com base na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência, tornou-se imperativo para os países transformar suas políticas de
saúde mental, o que significa, na prática, promover liberdade e direitos para
as pessoas. O trabalho da OMS para que isso ocorra é fundamental.
Caso a OMS sofra impactos significativos em sua
capacidade de atuação, todos os seus programas – incluindo aqueles relacionados
à saúde mental – provavelmente serão afetados, em maior ou menor grau. Isso
retardaria as mudanças necessárias, o que impacta diretamente na vida de
pessoas que poderiam ser cuidadas em liberdade e, talvez, não serão.
·
O que é a OMS
Para refletir em profundidade sobre esse tema, também
vale conhecer mais sobre o que é a OMS – até porque
a alegação central da ordem executiva para retirada dos EUA baseia-se na
condução política e o financiamento da OMS.
Uma das principais agências da Organização das Nações
Unidas (ONU), ela foi fundada em 1948 e é responsável pela coordenação de ações
e respostas em saúde global, com o objetivo geral de assegurar o mais alto
nível de saúde para todas as pessoas do mundo. Esse papel envolve diversas
frentes de trabalho: fomentar políticas de saúde com vistas a garantir a saúde
universal, coordenar respostas em emergências de saúde, apoiar a assistência em
saúde nos países, erradicar doenças transmissíveis, desenvolver estratégias
para enfrentar doenças crônicas, e promover pesquisas de relevância global,
entre outras iniciativas.
A história da OMS inclui inúmeras conquistas
importantes, desde a promoção da garantia de saúde para todos até a erradicação
de doenças, como a varíola. A pandemia de covid-19 tornou conhecido o
papel da agência na coordenação de respostas às emergências, merecendo destaque
o Fundo para Resposta Solidária e o programa COVAX: ação da OMS para garantir
acesso justo e equitativo às vacinas deveria ser motivo suficiente para
reconhecer a importância da organização.
·
Como a OMS é conduzida
A OMS é, essencialmente, governada pela Assembleia
Mundial da Saúde, composta por 194 países membros, incluindo os EUA — um número
impressionante, considerando que a ONU reconhece 195 países no mundo. A
Assembleia Mundial da Saúde, o mais alto órgão político de saúde global,
realiza reuniões anuais nas quais são deliberados o programa de trabalho e o
orçamento da organização. Além disso, a cada cinco anos, é eleito o
Diretor-Geral da OMS.
O ponto fundamental aqui é: a política da organização e
seu programa orçamentário são resultado de negociações e deliberações conjuntas
de todos os delegados que representam os países membros. na Assembleia Mundial
da Saúde que os desafios globais em saúde são debatidos, e as formas de
enfrentá-los são definidas, estabelecendo a agenda política, os objetivos de
saúde e as estratégias que orientarão a OMS em sua missão de promover a saúde
pública e alcançar o mais alto nível de saúde para todos. É também nesse fórum
que se monitora o progresso dos programas aprovados e em andamento. Ou seja, a
condução política da organização está intrinsecamente vinculada aos seus
Estados membros.
O mesmo se aplica ao orçamento. Nesse espaço de
deliberação conjunta, os Estados membros aprovam o plano orçamentário que
sustenta as operações da OMS.
E como a OMS é financiada? A OMS conta com duas principais fontes de
financiamento:
- Contribuições obrigatórias anuais dos
Estados membros: chamadas de “contribuições avaliadas”,
correspondem a menos de 20% do orçamento da organização.
- Contribuições voluntárias: realizadas
por Estados membros, organizações internacionais, entidades filantrópicas
e outras partes, essas contribuições representam mais de 80% do orçamento
total da OMS
A definição das contribuições obrigatórias de cada
Estado membro da OMS baseia-se no Produto Interno Bruto (PIB) de cada país.
Essas contribuições, calculadas como uma porcentagem do PIB, seguem uma escala
de avaliação (por isso o nome “contribuições avaliadas”), que é previamente
acordada pela Assembleia Geral das Nações Unidas e aprovada na Assembleia
Mundial da Saúde.
E como é definida qual é a contribuição obrigatória de
cada Estado Membro da OMS? Com base no Produto Interno Bruto (PIB) de cada
país. As contribuições obrigatórias são uma porcentagem do PIB do país e tem
como base uma escala de avaliação (por isso o nome “contribuições avaliadas”),
sendo a porcentagem acordada pela Assembleia Geral das Nações Unidas e aprovada
na Assembleia Mundial de Saúde.
Na prática, isso significa que países com maior PIB
pagam contribuições mais altas, enquanto países com menor PIB pagam valores
proporcionais à sua capacidade econômica. Essas contribuições são realizadas
anualmente, sempre no mês de janeiro.
·
O que fazer?
É desejável para o mundo uma possível negociação sobre
a situação. A nota apresentada pela OMS é acertada ao se encerrar afirmando: “esperamos
que os Estados Unidos reconsiderem e estamos ansiosos para nos engajar em um
diálogo construtivo para manter a parceria entre os EUA e a OMS, para o
benefício da saúde e bem-estar de milhões de pessoas ao redor do mundo.”
Ministros de Saúde de outros países, como o da
Alemanha, e grupos de advocacy já
estão mobilizados para tentar reverter essa decisão em esforços diplomáticos.
Esse é um esforço que vale a pena. Muito se discute –
com razão – sobre o impacto financeiro que uma saída dos EUA causaria na OMS.
Mas não é apenas por isso que empreender esforços para reverter essa decisão
vale a pena. Os sistemas de saúde do mundo são mais fortes com colaboração
global e com compartilhamento de informações e dados. Para garantir sistemas de
saúde mais fortes e o direito à saúde para todos vale usar todo argumento
possível, vale promover toda boa negociação e vale todo diálogo eficaz porque
essa decisão impacta pessoas e vidas – e pessoas e vidas têm valor.
Vale a pena porque tem valor todo esforço para
construir um mundo em que as pessoas não morram de doenças preveníveis e com
tratamentos acessíveis em razão de iniquidade social; porque tem valor todo
esforço para que todas as pessoas em todos os países tenham acesso a
vacinas, programas e serviços de saúde de qualidade; porque tem valor o cuidado
em saúde mental em liberdade; porque tem valor todo esforço para que as pessoas
simplesmente vivam melhor, e isso envolve todas as pessoas.
São necessários esforços coletivos e ampliados para
afirmar o multilateralismo e cooperações internacionais. É preciso uma ampla
defesa da ciência e da democratização da informação. É preciso fortalecer as
instituições e pactuações coletivas que priorizem e defendam o bem comum.
Para encerrar, falamos sempre, no Brasil, da
necessidade de defender o SUS. Mesmo sendo evidente a sua importância para
promoção e garantia do direito à saúde e seu papel civilizatório, precisamos
cotidianamente e com unhas e dentes defender o SUS porque, entre outras tantas
disputas, está em jogo uma disputa de valores sociais.
No cenário da saúde global não é diferente. É preciso
empreender todos os esforços para defender o mais alto nível de saúde de todas
as pessoas do mundo, sem distinções, porque os princípios da equidade,
universalidade e direitos humanos são valores pelos quais vale a pena continuar
lutando.
Fonte:
Por Claudia Braga, em sua coluna para Outra Saúde
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