Mutações do Trabalho no Brasil: da fábrica ao aplicativo
Uma transformação profunda ocorreu no mercado de
trabalho brasileiro nas últimas décadas, alterando fundamentalmente a relação
entre trabalhadores, capital e Estado. Esta metamorfose exige uma análise
cuidadosa através de lentes tanto históricas quanto contemporâneas,
particularmente quando observamos o surgimento do que alguns estudiosos
denominaram como uma “nova classe trabalhadora”. A complexidade desta
transformação torna-se especialmente evidente ao examinarmos o período entre
2003 e 2024, durante o qual o Brasil experimentou mudanças políticas e
econômicas significativas que redefiniram as relações trabalhistas e a
composição de classes.
O mercado de trabalho brasileiro contemporâneo
apresenta um cenário paradoxal onde o emprego formal coexiste com uma crescente
precarização. Esta dualidade manifesta-se mais claramente na expansão do
trabalho por plataformas e da economia dos aplicativos, criando o que Ricardo
Antunes caracteriza como “novas morfologias do trabalho”. Essas mudanças
produziram não apenas efeitos econômicos, mas também consequências sociais e
políticas profundas, particularmente visíveis nos padrões de votação e nas
afiliações políticas de diferentes segmentos da classe trabalhadora.
A fragmentação das estruturas tradicionais de trabalho
levou ao que Singer identifica como um realinhamento fundamental na política
brasileira, particularmente evidente na relação entre o Partido dos
Trabalhadores (PT) e sua base tradicional. Esta transformação reflete mudanças
mais amplas no sistema capitalista global, onde o avanço tecnológico e a
liberalização do mercado remodelaram as relações tradicionais de emprego. A
dinâmica social resultante criou novas formas de consciência de classe que
frequentemente divergem das orientações políticas tradicionalmente associadas à
esquerda.
Dados recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios Contínua (PNAD Contínua) do IBGE revelam que aproximadamente 39,1%
dos trabalhadores brasileiros encontram-se agora em relações de trabalho
informais, representando uma mudança significativa do modelo tradicional de
emprego formal que caracterizou o período de industrialização do país. Esta
transformação tem implicações profundas para a compreensão da formação de
classe e do comportamento político no Brasil contemporâneo.
A pesquisa de Braga e Santana demonstra como essas
mudanças afetaram a capacidade de organização coletiva dos trabalhadores,
mostrando que a filiação sindical tradicional diminuiu de 16,1% em 2012 para
11,2% em 2023. Este declínio coincide com o surgimento de novas formas de
organização dos trabalhadores, particularmente entre os trabalhadores de plataforma,
embora essas novas formações frequentemente careçam da força institucional dos
sindicatos tradicionais.
A configuração atual do mercado de trabalho brasileiro
reflete o que Francisco de Oliveira denomina como o “avesso do avesso”, onde
processos aparentes de modernização na verdade reforçam padrões históricos de
desigualdade e precariedade. Este fenômeno torna-se particularmente evidente ao
examinar a expansão do trabalho por plataforma e do empreendedorismo informal
nos centros urbanos.
Ao examinar a relação entre as transformações do
mercado de trabalho e o comportamento político, a análise de Singer fornece
contribuições cruciais sobre como a precariedade econômica influencia as
escolhas eleitorais. Sua pesquisa demonstra que os trabalhadores que ganham
entre dois e cinco salários mínimos – precisamente aqueles mais afetados pelas
recentes transformações do mercado de trabalho – têm demonstrado crescente
volatilidade política.
Em um estudo abrangente das relações trabalhistas
brasileiras, Márcia de Paula Leite, José Ricardo Ramalho e Roberto Véras de
Oliveira demonstram como a reestruturação das cadeias produtivas afetou a
organização e representação dos trabalhadores. Essa pesquisa indica que a
fragmentação dos processos produtivos criou novos desafios para a ação
coletiva, particularmente nos setores mais afetados pela mudança tecnológica.
O surgimento do que tem sido denominado “uberização”
representa talvez a manifestação mais visível dessas transformações. Estudos
recentes de Ludmila Costhek Abílio mostram como o trabalho por plataforma criou
novas formas de controle e exploração, enquanto simultaneamente promove uma
ideologia do empreendedorismo que mascara a natureza precária dessas relações
de trabalho.
A dimensão espacial dessas transformações torna-se
particularmente evidente ao examinar as regiões metropolitanas brasileiras.
Pesquisas conduzidas pelo Centro de Estudos da Metrópole (CEM) indicam que a
precarização do mercado de trabalho apresenta padrões distintos em diferentes
territórios urbanos, com áreas periféricas experimentando processos mais
intensos de informalização e precarização.
As discussões contemporâneas sobre o futuro do trabalho
no Brasil devem necessariamente envolver o que Ruy Braga identifica como o
“precariado”, um segmento crescente de trabalhadores que, apesar de formalmente
integrados ao mercado de trabalho, experimentam insegurança e instabilidade
persistentes. Este fenômeno tem particular relevância para a compreensão dos
alinhamentos políticos e movimentos sociais atuais.
Observando as evidências empíricas, dados do Instituto
de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) mostram que, entre 2015 e 2023, a
proporção de trabalhadores em arranjos de emprego não-padrão aumentou 12,3
pontos percentuais. Esta tendência coincide com mudanças significativas nos
padrões de participação política e representação entre os eleitores da classe
trabalhadora.
Um aspecto crucial dessas transformações envolve a
relação entre mudança tecnológica e reestruturação do mercado de trabalho.
Estudos realizados pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos
Socioeconômicos (DIEESE) indicam que os setores mais afetados pela inovação
tecnológica experimentaram as mudanças mais significativas nas relações de
emprego, com impacto particular sobre os trabalhadores mais jovens.
As implicações políticas dessas transformações
tornam-se evidentes ao examinar os padrões de votação nas eleições recentes.
Pesquisas realizadas pela Fundação Perseu Abramo mostram que trabalhadores em
situações precárias de emprego demonstram comportamento político distinto
daqueles em empregos formais tradicionais, sugerindo uma correlação entre
posição no mercado de trabalho e orientação política.
O surgimento de novas formas de organização do trabalho
também afetou as estruturas tradicionais de solidariedade de classe. Nadya
Araujo Guimarães, em suas pesquisas, demonstra como as mudanças na organização
do trabalho criaram novos padrões de sociabilidade e ação política entre os
trabalhadores, particularmente em contextos urbanos.
As transformações observadas no mercado de trabalho
brasileiro nas últimas décadas são parte de um processo mais amplo de
reestruturação do capitalismo global, mas apresentam particularidades que
refletem a própria formação histórica do país. Enquanto a uberização, a
precarização e a fragmentação das relações de trabalho são fenômenos mundiais,
no Brasil eles se sobrepõem a estruturas históricas de desigualdade,
informalidade e exclusão social, criando um cenário ainda mais complexo. A
herança de um processo de industrialização tardio e incompleto, combinada com
persistentes disparidades regionais e educacionais, faz com que estas
transformações assumam contornos específicos no contexto nacional.
A forma como estas mudanças afetam a organização
política dos trabalhadores brasileiros também apresenta características
próprias. O enfraquecimento dos sindicatos tradicionais e a emergência de novas
formas de organização coletiva, como as associações de trabalhadores por
aplicativo, revelam não apenas uma mudança nas relações de trabalho, mas uma
profunda transformação na própria identidade de classe. A volatilidade política
observada entre os trabalhadores, especialmente aqueles que ganham entre dois e
cinco salários mínimos, sugere que as antigas formas de compreensão da
consciência de classe e do comportamento político precisam ser repensadas à luz
destas novas realidades.
Em um cenário onde as fronteiras entre trabalho formal
e informal se tornam cada vez mais fluidas, e onde a própria noção de emprego
estável se transforma rapidamente, torna-se necessário desenvolver novos
instrumentos teóricos e analíticos para compreender a formação de classe e a
ação política. A emergência de identidades híbridas – como o
trabalhador-empreendedor – e a crescente individualização das relações de
trabalho desafiam as categorias tradicionais de análise e exigem uma renovação
do pensamento social brasileiro.
Diante dos desafios impostos pela revolução tecnológica
e pela reestruturação econômica global, o Brasil encontra-se em um momento
crucial de redefinição das relações entre trabalho, capital e Estado. A
compreensão adequada destas transformações e de seus impactos na formação da
consciência política dos trabalhadores é fundamental não apenas para a análise
acadêmica, mas para o próprio futuro da democracia brasileira. As novas
configurações do trabalho e suas implicações para a organização política da
sociedade demandam um esforço renovado de interpretação, que considere tanto as
tendências globais quanto as especificidades locais na construção de novos
paradigmas de análise social.
Fonte: Por Erik Chiconelli Gomes, em Outras Palavras
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