WikiFavelas: Saídas à cidade (e vidas)
militarizadas
A cada início de ano, para além dos planejamentos e
metas individuais, é claro, passamos a nos orientar também a partir das
expectativas e promessas dos novos (ou já velhos) governos para lidar com as
questões que envolvem as particularidades – e diferentes necessidades – de cada
território e sua população. No caso da cidade do Rio de Janeiro, por exemplo,
Eduardo Paes foi reeleito prefeito e, diante dos aspectos principais de sua
campanha, promete algumas mudanças nas formas de fazer a cidade de acordo com
os seus interesses. Por exemplo, em um dos setores que mais afeta a população
metropolitana, o setor de transportes, a prefeitura anunciou, desde
pronto, o aumento das tarifas de ônibus para R$4,70, recorrendo, inclusive, a
uma nova modalidade de inscrição, o cartão “Jaé!”, que passará a ser obrigatório a
partir de junho deste ano em todos os transportes municipais. No entanto, a
obrigatoriedade se limita apenas ao município carioca, já que o “Jaé” não será aceito em linhas
intermunicipais, tampouco nos metrôs, trens e barcas, que continuam a operar
apenas com o Riocard,
sistema de bilhetagem administrado pelos empresários de ônibus.
Em uma cidade que se pretende global e conectada, os
acessos e pertencimentos têm sido cada vez mais minados a partir de diferentes
formas de segregação – e violência. Em outubro do último ano, inclusive, um
episódio que ficou amplamente conhecido aponta para essa questão. A Avenida
Brasil, uma das principais avenidas de acesso da cidade, ficou por horas
paralisada em razão de uma operação realizada pela Polícia
Militar no Complexo de Israel, na Zona Norte do Rio, afetando milhares
de rotinas. Nesta ocasião, três civis foram mortos e mais três ficaram feridos.
Os mortos foram Paulo Roberto de Souza, 60 anos, motorista de aplicativo;
Renato Oliveira, 48 anos, funcionário de um frigorífico que estava em um ônibus
da linha 493B (Ponto Chic-Central); e Geneilson Eustáquio Ribeiro, 49 anos,
motorista de caminhão. Este caso aponta para duas inflexões importantes que
serão melhor trabalhadas no decorrer desse texto: a sensação de segurança e o
combate à violência armada nas cidades e, em especial, as disputas entre as diferentes
esferas de governo em torno às formas de se fazer política e cidade.
As promessas em torno da segurança pública
Como parte das promessas deste ano, a “PEC da Segurança Pública” é uma das
novidades. Apresentada ao final do ano de 2024 pelo governo federal, a PEC se
propõe a enquadrar a questão da segurança pública de uma maneira diferente,
alterando a Constituição ao propor uma coordenação federal das políticas de
segurança. A primeira e mais importante mudança será que, a partir dela, o
governo federal passa a ser responsável pela segurança pública tanto quanto os
estados que hoje são os entes federativos responsáveis pela gestão de políticas
nesta área. De acordo com a Constituição Federal de 1988 até então, a grosso
modo, a Polícia Federal exerce, com exclusividade, as funções de polícia
judiciária da União e atua sob a prevenção do tráfico internacional; a Polícia
Rodoviária Federal atua no patrulhamento ostensivo das rodovias; a Polícia
Civil cumpre a função de polícia judiciária e de apuração de infrações penais
(exceto as militares); e a Polícia Militar, administrada pelos governos
estaduais, atua de maneira ostensiva na preservação da ordem pública em seu
território, cumprindo a função de polícia local. Com a nova PEC, as políticas
de segurança passam a estar organizadas em torno do SUSP (Sistema Único de
Segurança Pública) – que, tal como o SUS (Sistema Único de Saúde),
representaria um grande avanço para a implementação e avaliação das políticas
públicas.
No entanto, o nosso modelo de polícia e,
consequentemente, o nosso modelo de segurança pública, tem sido, em sua
estrutura, fortemente militarizado, priorizando o seu viés repressivo,
patrimonialista, classista e racista desde os primórdios de criação da Guarda
Nacional. Apesar dos papéis constitucionais estarem direcionados às diferentes
polícias, as formas de ação das práticas militarizadas têm desprestigiado, por
exemplo, a prevenção e a investigação como aspectos importantes para o combate
à violência e ao crime nos territórios. Na contramão de debates sobre a alta
letalidade policial (como nas chacinas policiais) e sobre as novas
estratégias de corrupção policial (como nas milícias), o governo
federal propõe a criação de uma polícia ostensiva federal, assim fortalecendo a
militarização como marca das políticas de segurança. A preferência por criar
uma nova política ostensiva no âmbito federal faz com que a pasta também receba
mais recursos a partir de agora. Gabriel Feltran (2024) aponta,
inclusive, em artigo recentemente republicado
neste blog, que os lobbies da segurança privada e toda a
lógica da racionalidade neoliberal impregnada nos programas de governo têm
convencido os atores da burocracia governamental que este está sendo um passo
dado para frente, quando na verdade está se dando vários passos para trás.
Concomitante a isso, na cidade do Rio de Janeiro –
considerada pela representação social como uma das cidades mais violentas do
país -, o prefeito se prepara para o seu quarto mandato assinando, logo em sua
posse, uma série de decretos. O de maior destaque nesta questão é o decreto 5.5584/2025, prevendo a
criação de uma Força Municipal de Segurança, que deverá atuar complementando a
ação das polícias Civil e Militar e da Guarda Municipal. Neste sentido, foi
criado um grupo de trabalho para sua elaboração, contando com o apoio da
Central de Inteligência, Vigilância e Tecnologia (Civitas), criada em 2024 e
que será, assim, ampliada. O objetivo é a elaboração de estratégias de combate
ao crime que contem com o apoio de uma força municipal dentro do que,
supostamente, a Constituição permite à cidade. Ainda dentro do plano de
fortalecer as ações de segurança dentro da prefeitura, o poder municipal
publicou o programa de “refundação” da Guarda Municipal, com o objetivo de a
modernizar, de acordo com o texto do D.O., considerando o seu armamento.
É importante pontuar que a luta popular contra uma
Guarda Municipal armada existe há anos. Em 2020, trabalhadores informais e, em
sua maioria, periféricos, representados pelo Movimento Unido dos Camelôs (MUCA), em parceria com o
Meu Rio, lançou a campanha “Guarda Armada Não”, diante da
intensidade em que o debate ocorria na época em referência ao projeto de lei
orgânica 23/2018. Em sua denúncia, além de expor os mais variados casos de
abuso de poder e violência por parte da Guarda atualmente, sem a posse de armas
de fogo, apontam também a falta de estrutura adequada para o armazenamento
seguro e o treinamento efetivo dos agentes, o que os leva a temer que esse
armamento possa acabar abastecendo diretamente o crime organizado – como tem sido
desviado o armamento investido das polícias.
Refutando a existência de um grupamento civil armado, a
Constituição, em seu artigo 144 destinado à segurança pública, não considera a
Guarda Municipal como força policial. Apenas em 2014, com o Estatuto Geral das
Guardas Municipais, sua função ficou melhor determinada: zelar pelos bens
públicos e atuar preventivamente para a proteção das populações, cooperando com
os demais órgãos e suas competências. Desde então, discute-se a respeito do
armamento da Guarda, tendo sido deliberado que cidades com mais de 500 mil
habitantes podem armar a sua força de segurança municipal, desde que se
tratando de um grupo especial tático treinado para determinadas circunstâncias.
Na cidade do Rio de Janeiro, porém, este armamento nunca foi aprovado pela
Câmara de Vereadores – e, por isso, outras estratégias têm sido mobilizadas no
âmbito da maior integração das forças na área da segurança pública para
fortalecer seus aspectos ostensivos.
Desde 2017, em especial, sob a anterior gestão
municipal, a prefeitura do Rio já vem construindo seu espaço na disputa pela
segurança pública. Tal integração pode ser analisada, como bem apontam Daniel
Hirata e Bruno Cardoso (2016), a partir da coordenação como técnica de governo
da ordem urbana e da segurança pública na cidade, ou seja, a partir da
centralidade da coordenação, entre diversas agências, atores ou níveis de
atuação, na composição das políticas e programas de governo. Estas iniciativas
demonstram um acúmulo de políticas, até então ineficientes, que se pretendem em
novos arranjos e parcerias para lidar com o problema da (in)segurança nas
cidades. O Programa Rio Mais Seguro, por exemplo,
integrado ao planejamento estratégico do governo municipal em 2017-2020, já
criou o Fundo Especial de Ordem Pública (FEOP) visando o apoio a programas
municipais e estaduais, como o Programa Segurança Presente, criado em 2015,
que conta com a participação de policiais militares da ativa e da reserva e
agentes civis egressos das Forças Armadas atuando em contraturno.
No programa municipal, implementado em bairros como
Copacabana, Leme, Jacarepaguá, Taquara e Anil, ao invés de policiais militares
e reservistas, atuam guardas municipais e PMs de folga, por meio do Programa
Estadual de Integração na Segurança (PROEIS). Contando com uma série de órgãos
municipais em sua coordenação, o objetivo do programa é o combate à
criminalidade, a pequenos furtos e delitos, o acolhimento dos moradores de rua
e o ordenamento urbano, atuando diretamente com os órgãos públicos municipais,
estaduais e com organizações da sociedade civil no policiamento ostensivo e diário
dos bairros e da orla (Polycarpo, 2021; 2022). No entanto, parece que o
“ex-atual” prefeito não considera as estratégias até então aventadas, dentro
das competências municipais, no que seria a participação do município na área
da segurança pública. Ou, neste caso, parece que essa é mais uma forma de
agravamento da crise sobre a qual ninguém quer ter competência – mas todo mundo
quer uma boquinha.
Na aparente disputa e hierarquização internas das
instituições policiais no Brasil, há uma tendência centralizadora de reforço ao
papel ostensivo e repressivo das Polícias Militares, principalmente pelo seu
caráter militarizado e sua trajetória de atuação no regime ditatorial. Apesar
das recentes tentativas de democratização das polícias e de maior aproximação com
a ideia de um “policiamento comunitário”, há uma certa
rejeição dos agentes militares por práticas que têm como foco a administração
de conflitos, tendendo a priorizarem o confronto frente à prevenção. As Guardas
Municipais, por sua vez, enquanto grupamento civil, se propõem a atuar em
atividade comunitária de segurança urbana, guardando e protegendo o patrimônio
público municipal, e apoiando os órgãos policiais quando solicitadas, em
proximidade com a sociedade civil, utilizando, assim, o poder de polícia
delegado pelo município e suas leis complementares. Armar os civis da Guarda
seria mais um passo rumo à militarização de todos os aspectos da vida urbana em
suas rotinas mais cotidianas.
Tal coordenação e integração de polícias traz novas
redes e novas concepções sobre o papel das instituições, em reorganização
interna e operacionalização externa com os(as) moradores(as) e suas demandas.
Estas novas redes são a atual base das políticas públicas de segurança no
município e representam – bem como constroem – novos conflitos na disputa pela
cidade. Em agosto de 2024, por exemplo, acompanhamos toda a movimentação das
autoridades públicas, municipais e estaduais, junto ao aparato repressivo da
polícia, para realizar a derrubada de 40 prédios no Parque
União,
uma das 16 favelas do Complexo da Maré, na Zona Norte. Famílias foram sendo
retiradas sem a menor assistência, em versão atualizada da tradicional remoção que as
favelas conhecem, principalmente, desde o século passado. Nesta atuação, a
Secretaria de Ordem Pública (SEOP), da prefeitura, mobilizou o poder policial
da Polícia Militar para expulsar e violar direitos dos(as) moradores(as),
demonstrando a articulação dos interesses e a integração das políticas nos
diferentes níveis.
No sentido dessas disputas, nos propomos a considerar
que as inúmeras iniciativas de reorganização e/ou refundação das polícias no
Brasil fazem parte de um processo de acumulação social do fracasso das
políticas de segurança pública, em que o próprio fracasso se faz produtivo como
forma de gestão da crise permanente da segurança nas cidades e no país –
abrindo novas possibilidades de agenciamento de diferentes setores em sua
produção. Este é um dos argumentos principais da tese de Doutorado da
pesquisadora do Dicionário de Favelas Marielle Franco, Clara Polycarpo,
que também assina este artigo, intitulada “Casos de polícia e redes de política:
uma análise das políticas de segurança pública a partir da Zona Sul do Rio de
Janeiro”
e defendida em 2022 no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. Aqui, pretendemos trazer alguns desses elementos
para discussão.
O que é a acumulação social do fracasso das políticas de
segurança pública?
A violência, como categoria mobilizada para representar
variadas práticas e conflitos sociais urbanos muito complexos, é utilizada
muitas vezes de forma descritiva, sendo relacionada ao uso legítimo (ou não) da
força em uma determinada relação social. Por outro lado, considerar a violência em sua circularidade
causal acumulativa,
tal como proposto por Michel Misse (2008), nos abre espaço para pensar as
próprias políticas de segurança, e os acúmulos de inúmeros programas
supostamente ineficientes (e fracassados), na chave desta acumulação social.
Se, neste caso, a acumulação social da violência foi capaz de estruturar um
padrão de sociabilidade que Luiz Antonio Machado da Silva (2010)
denominou sociabilidade violenta, no qual a força
física, com ou sem instrumentos e tecnologias, deixa de ser um meio de ação
para se transformar em um regime de ação, com o passar dos anos podemos dizer
que a acumulação social do fracasso das políticas de segurança tem sido capaz
de produzir um novo padrão de sociabilidade, o qual denominamos sociabilidade gerencial-policial (Polycarpo,
2022), que traz à tona a crise permanente das políticas de segurança pública e
aprofunda as disputas em torno dos territórios da cidade, operacionalizando
novas práticas de se fazer cidade e de se fazer política a partir da
racionalidade neoliberal.
A realidade da violência urbana no Brasil hoje perpassa
atores antigos, mas que se atualizam sob novas práticas. Nas últimas décadas,
há diferentes formas de expansão e atuação dos grupos armados na cidade e
em sua região metropolitana. De acordo com o Mapa Histórico dos Grupos Armados, produzido pelo
Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI-UFF), em parceria com o Instituto
Fogo Cruzado, a capital fluminense é uma região marcada pelo predomínio das
milícias. Dos 155,33 km² de área da cidade dominada por algum grupo armado em
2023, 66.2% estavam sob influência das milícias em 2023. Comando Vermelho,
Terceiro Comando Puro e Amigos dos Amigos concentraram 20,7%, 9,3% e 2,4%,
respectivamente. Apesar do forte domínio, as milícias perderam território na
cidade, registrando uma queda de 15,4%. O Terceiro Comando Puro reduziu 9,6% de
seu território e o ADA, 16%. E essas mudanças têm acontecido através das
diferentes formas de acordos e agenciamentos, contribuindo para a atualização
de algumas práticas criminais – como, por exemplo, a expansão territorial por meio
da construção ilegal de moradias, a apropriação ilegal de terras e o mercado
ilegal de proteção.
Os grupos armados, compostos por facções do tráfico e por milícias, em seus mais
diversos imbricamentos entre si e entre setores dos governos, atuam a partir do
domínio dos territórios em torno não apenas do tráfico de drogas ou de armas,
mas também da extorsão e da privatização de serviços públicos e privados –
sejam eles o acesso à internet ou
até mesmo o acesso à moradia. Por outro lado, as polícias atuam em torno da
estatização das mortes das populações negras, pobres e faveladas ao promover,
não apenas os próprios negócios ilícitos, como também uma série de ilegalismos,
como chacinas e desaparecimentos nos territórios sob o domínio de grupos
armados rivais, representando o braço armado do Estado responsável por produzir
vidas (e mortes) precárias. Aqui, nos interessa refletir sobre as formas de operacionalização
da disputa pela segurança pública diante desse emaranhado de atores – e redes –
no Rio de Janeiro.
Para refletir sobre isso, a autora defende que a
percepção do crescimento da violência urbana tem sido capaz de reordenar as
políticas de segurança pública nos âmbitos federal, estadual, municipal e local
e reorganizar as formas de se produzir cidade e sociabilidade a partir de uma
lógica de gestão orientada pelos sucessivos fracassos e descontinuidades dos
programas anteriormente implementados. A produção do fracasso da política cria,
a cada momento, como justificativa, uma “nova” política de segurança e, com
ela, traz novos atores e novos dispositivos para operacionalização da
segurança, da violência e da própria polícia em cada diferente território –
abrindo espaço para reorganizações dos domínios territoriais a partir dessa
lógica. Isto se dá pois o modelo gerencial militarizado das políticas de
segurança pública transfere para as polícias a solução para todos os males
sociais através da implementação de formas cada vez mais agressivas, invasivas
e restritivas de policiamento, e, com isso, uma rede de novos atores resolve
por participar deste gerenciamento operando as ações de controle e fiscalização
a partir de seus próprios meios.
Por militarização, consideramos o
emprego de estratégias militares de confronto e guerra, em que o monopólio
legítimo da força física e policial é reivindicado contra residentes das
cidades assim definidos/classificados como “inimigos” – sejam os moralmente
avaliados como “bandidos” ou até mesmo os considerados “vagabundos”, (Misse,
2006). Em torno dessas práticas militarizadas, territórios são ocupados e
corpos são reprimidos e, dessa maneira, a resolução de conflitos é naturalizada
a partir do uso da força e da violência, fazendo com que a presença militar
seja considerada a única forma de manutenção da ordem – em reprodução de sua
“metáfora de guerra” (Leite, 2012). É o que narrativamente justifica o emprego
cada vez maior das polícias nas favelas e periferias, mas também nas principais
áreas de interesse da cidade, sitiando territórios e populações sob um
urbanismo militar (Graham, 2010).
Por policialização, compreendemos o uso de práticas de
fiscalização e controle por meio do que se define como o “trabalho de polícia”
e que tem, sistematicamente, se espraiado para práticas civis e comunitárias em
razão do acesso a novas tecnologias de vigilância – como as câmeras, os drones,
os próprios celulares e/ou as mídias digitais. Ao tornar a continuidade das
rotinas cotidianas um caso de polícia, atores sem necessário envolvimento com
os regimes de militarização tornam o ato de policiar parte de um exercício de
cidadania pautado na tentativa de garantia de sua sensação de segurança – seja
por meio de câmeras de vigilância instaladas em casas e calçadas por empresas
privadas, seja no monitoramento constante das
atividades de vizinhos e transeuntes por celulares particulares, até o diálogo
direto com agentes de segurança oficiais (e não-oficiais) para atuar na
proteção de suas calçadas e estabelecimentos (Polycarpo, 2024).
A Prefeitura do Rio, por exemplo, em parceria com
setores do governo estadual, federal e da iniciativa privada, desde 2010, tem
investido em tecnologias de controle e vigilância para dar suporte às ações de
segurança pública. O Centro de Operações Rio (COR) é uma
instalação pública gerida pela Prefeitura cujo objetivo é integrar o
acompanhamento e gerenciamento de ocorrências de diversos tipos na cidade.
Dessa forma, há um grupo de trabalho constituído por pelo menos 30 órgãos
municipais que atuam conjuntamente para efetuar ações referentes à segurança
pública, eventos de natureza ambiental, ocorrências de trânsito, entre outros.
Articulado com o governo do estado por meio das polícias e, em especial, do Centro Integrado de Comando e
Controle (CICC),
esse monitoramento tem ganhado novas vestes nos últimos anos. A própria Central de Inteligência,
Vigilância e Tecnologia (Civitas), criada em 2024 pela prefeitura, se
pretende como uma iniciativa inovadora para apoio às forças de segurança no
combate a atividades irregulares ou ilegais de forma inteligente e coordenada.
Neste último ano, ganhou um incremento importante com milhares de novas câmeras
de segurança integradas ao sistema de monitoramento da Prefeitura através
da empresa de tecnologia de segurança “Gabriel” – tendo
inicialmente como seu cofundador, em 2020, o atual vice-prefeito Eduardo
Cavaliere.
Como parte desse fenômeno, novas práticas de proteção e
controle vão se desenvolvendo e atuando em diferentes territórios da cidade.
Por milicianização, consideramos o conjunto de práticas de militarização e
policialização não apenas produzidas a partir da ação das forças de segurança
do Estado, mas orientadas a partir da sociabilidade
gerencial-policial (Polycarpo, 2022) que personifica a “guerra
civil” urbana e define as dinâmicas de determinados grupos da sociedade para o
controle de territórios e condutas em uma lógica de proteção privada e
privatizada. A novidade está justamente na capacidade subjetiva de introjeção
destas práticas não apenas como aparato sociotécnico de um urbanismo militarizado,
mas, sim, como novas maneiras de pensar e de agir de um corpo de cidadãos que
fazem da cidade um espaço de conflito constante na construção de um tipo de
domínio militar, econômico e político com práticas totalitárias. Este fenômeno
representa a mutação, até mesmo, do que se tinha como consideração a respeito
das “milícias urbanas”, entendidas como organizações paramilitares que envolvem
diretamente agentes ligados ao Estado, pois que, como subjetivação, são
representadas por cidadãos comuns em suas formas de controle de rotinas e
corpos para manutenção de suas atividades econômicas cotidianas.
É claro que, diante de uma complexidade de fatores que
atuam e afetam as diferentes relações entre os ilegalismos e os associativismos
em cada um dos territórios da cidade, esta dinâmica está em constante
(re)produção e transformação. Por enquanto, pretendemos lançar o debate para
refletirmos sobre os novos paradigmas que têm estruturado a representação sobre
o crime e a violência nas cidades e, em especial, na cidade do Rio de Janeiro.
Assim, a partir de iniciativas já mobilizadas por diferentes movimentos
sociais, construir outras formas de fazer cidades e política, principalmente,
considerando a participação das populações mais vitimadas pela acumulação
social do fracasso das políticas de segurança pública: os(as) moradores(as) das
favelas e periferias.
Como as favelas e periferias podem contribuir para este
debate?
É preciso reconhecer, por exemplo, algumas novas formas
de estruturação do “problema” da segurança pública nas últimas décadas: da
delinquência ao crime organizado transnacional; do perfilamento racial, ao
encarceramento em massa; das mercadorias ilegais às mercadorias políticas
(Misse, 2006); da representação social sobre a violência à produção de dados de
violência pelos movimentos sociais de favelas e periferias (Fleury; Menezes,
2020); da defesa sobre o monopólio estatal da violência e das disputas e
hierarquias dentro das polícias a novas formas de se pensar a cidade e a
política. Como temos visto, a crise permanente da segurança pública (Vilarouca;
Ribeiro; Menezes, 2022) não perpassa por um problema de gestão, pois a agenda
propõe integração crescente de forças a vários níveis; nem mesmo será
solucionada por uma lógica de eficiência, visto que, sob o ponto de vista da
perpetuação do controle social racista, patrimonialista e classista, as
políticas de segurança têm sido efetivas e produtivas. Sem abordar, por
exemplo, a guerra às drogas, a militarização
do cotidiano ou o racismo por trás de todo policiamento, não é possível avaliar
a efetividade na política de segurança pública. Deve-se, portanto, torná-las
improdutivas no aspecto que mais as alimenta: o capital.
De fato, todas essas iniciativas (PEC, decretos e
programas de governo) representam o aspecto central do lugar em que a segurança
pública ocupa nos interesses do capital. O governo federal, em 2024, investiu
cerca de R$2,5 bilhões do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) nos
governos estaduais e no Distrito Federal. Segundo a Iniciativa Direito à Memória e
Justiça Racial,
a pasta orçamentária da segurança pública, no estado do Rio de Janeiro, é hoje
a segunda maior do governo estadual de Cláudio Castro; são mais de R$19 bilhões
de reais previstos na PLOA 2025 – Projeto de Lei Orçamentária Anual. R$19
bilhões investidos para o policiamento e militarização dos corpos, vidas e
territórios do Estado do Rio de Janeiro. A segurança pública sozinha representa
15% de todos os gastos do governo. A partir de articulações coletivas como da
Rede Abolicionista por uma Incidência Política Popular, desenvolvido nos
estados do Espírito Santo e São Paulo, e com a Rede Nenhuma Vida a Menos no
Paraná, observa-se que essa ampliação orçamentária vem acontecendo em todo o
Brasil. Ao mesmo tempo em que investe em segurança, neste sentido, o governo
estadual tem investido no genocídio da população negra, pobre e favelada. Só em seu governo, 3 das maiores chacinas
policiais das últimas décadas foram realizadas.
Por isso, a IDMJRacial lançou, em novembro de 2024, uma
campanha de mobilização para movimentos e organizações sociais em prol da
articulação para uma incidência política popular. Pensando em investir no “Desinvestimento das Polícias” como um
dispositivo de controle das polícias, visto que os ministérios públicos não vêm
exercendo seu papel constitucional de produzir o controle externo das polícias,
assim como outras instituições públicas – como as corregedorias de polícias –
que também não têm feito o controle das atividades policiais. Alinhado a
isso, o Fórum Popular de Segurança Pública
do Rio de Janeiro divulgou uma nota pública apontando o descumprimento e a
negligência do MP/RJ, especialmente no que diz respeito ao atendimento do
plantão de atendimento 24 horas, disponibilizado como sendo a maior iniciativa
do órgão no âmbito da ADPF 635. Neste sentido, o desinvestimento não está em
retirar dinheiro de salários e benefícios de policiais, mas retirar recursos
orçamentários da compra de caveirões, armas de guerra, de dispositivos de
controle de corpos e de toda ferramenta utilizada pela polícia para produzir a
morte do povo negro, pobre, favelado e periférico, remanejando esse recurso
para políticas sociais que produzam vida.
Desde 2019, com a Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF) 635 – a ADPF das Favelas -, em especial, movimentos sociais de
favelas e periferias têm conseguido ampliar o debate sobre a letalidade
policial e o compromisso com uma segurança pública que seja capaz de respeitar
e garantir direitos de cidadania. Em 2024, por exemplo, juntamente com o FPOPSEG, ampliou-se a
denúncia sobre os equipamentos de guerra importados do estado genocida de
Israel e foi possível diminuir a compra de caveirões e de um número elevado de
munições, que com certeza impactaram na produção de vida. Neste sentido,
desinvestir das polícias é investir na vida das populações negras, pobres e
faveladas, vítimas do braço armado do Estado sob seus mais diversos usos.
Fonte: por Clara Polycarpo e Juliana Pinho, em Outras
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