Rui Abreu: A cabeça na Lua e os pés na
soja
Lula assumiu a presidência do Brasil em 2023 a meio de um conflito
global que coloca os Estados Unidos contra qualquer país que não assuma os sus
interesses como primordiais, a guerra que confronta o império norte americano
com a sua perda de hegemonia global.
Com a China a encabeçar o campo contra hegemônico e os BRICS como
instrumento de construção econômica de superação do domínio imperialista, o
estreitamento de relações dentro do Sul Global apresentava-se para o Brasil
como perspectiva alternativa ao destino de eterna colônia dos EUA e das
potências europeias. É neste contexto bipolarizado que o governo em disputa de
Lula começa sua governação tendo para responder os anseios da esquerda de
desenvolver e qualificar a economia; e o lucro confortável agroextrativista e
da finança defendido pela direita e extrema direita. Este binômio apresenta-se
determinante para as relações internacionais e o papel do Brasil no mundo.
A Casa Branca do Partido Democrata aproximou-se de Lula através dum
inimigo que tinha colocado em risco os governos de Biden e Lula e o pacto
liberal burguês que os sustentava. Mas nem o enfrentamento comum ao neofascismo
conseguiu apagar o rastro golpista da CIA que Snowden¹ e a vazajato
denunciaram e que tornou clara a participação dos EUA no golpe continuado de
2016, passagem que a consciência antiimperialista não esquece.
Já a China continuava (e continua) seu caminho de predominância
comercial, desembarcando em todos os continentes com sua pujante diplomacia
econômica. Com um modelo de negócio circular, em que domina todas as fases do
ciclo desde o projeto ao financiamento, estabeleceu-se como a maior força
econômica do mundo, sendo a principal parceira comercial de mais de 120 países.
Para tal serviu-se do projeto Cinturão e Rota, em que o Cinturão representa as
novas rotas terrestres que acessam a Europa, Sul e Sudeste Asiático e a Rota
representa a rede marítima que conecta a produção chinesa com os principais
portos da Ásia, América do Sul, África e a Europa. Os resultados já estão à
vista, com superávit de 1 trilhão de dólares na balança comercial chinesa em
2024. A maioria das infraestruturas foram e são projetadas, construídas e
financiadas pela China, colocando o esforço inicial sobre o gigante asiático,
mas também garantindo um total controle dos projetos.
·
Joe de um lado e Xi do
outro
Sob nova liderança o Brasil tentaria ocupar um lugar de destaque na nova
ordem mundial a construir, tentando recuperar a política externa ativa e altiva
que Celso Amorim ampliou e que promoveu o Brasil no mundo no início do século
XXI. Pelo menos essa era a expectativa, ainda mais inflada pelo discurso
(correto) de desdolarização do presidente Lula.
No entanto, desde o início do mandato os sinais do Executivo foram
contraditórios, recusando em janeiro o pedido de envio de armas e munições para
a Ucrânia feito pelos governos alemão e francês enquanto votava em fevereiro
nas Nações Unidas a resolução patrocinada pelos EUA que tentava isolar a Rússia
no cenário internacional.
Dava-se início a um percurso ziguezaguiante que projetava o Brasil como
um “não alinhado” de grande dimensão política e econômica, podendo colher
frutos de todos os lados. Um caminho trilhado no passado mas num contexto muito
diferente do atual, em que a pressão imperialista dos EUA vem bipolarizando o
mundo entre os submissos aos seus interesses e os que tentam um desenvolvimento
autônomo e soberano. Um contexto de bipolarização catalisado pela guerra na
Ucrânia, com o império instando os países a tomar posição no seu campo ou no campo
oposto, o anti imperialista, este último difuso e de países com sistemas
diferentes mas alinhados em superar a hegemonia norte americana no mundo.
Sobre a guerra na Ucrânia, a posição do governo Lula oscilou entre a
condenação da incursão russa em território ucraniano e a compreensão histórica
e política das razões da Rússia. Na prática acabou por não se alinhar com o
bloco ocidental na condenação e tentativa de isolamento econômico e político da
Rússia, não promovendo russofobia, não chancelando as sanções econômicas
impostas por Biden e seus lacaios europeus, não participando do esforço de
guerra que o império impõe a seus súditos e continuando suas relações
econômicas normais com a Rússia. E fez bem! Em 2024, pela primeira vez na
história a Rússia ascendeu ao top 10 dos parceiros comerciais do Brasil.
Também China e EUA aumentaram suas relações econômicas e comerciais com
o Brasil, sendo o primeiro e segundo parceiros respectivamente. Não obstante
fossem anunciados acordos de cooperação e desenvolvimento de setores da
economia quer com os EUA quer com a China, a balança comercial brasileira
continua ser maioritariamente preenchida nas exportações por:
·
Produtos agrícolas: café, soja,
açúcar, carne bovina, frutas e verduras;
- Produtos
minerais: minério de ferro e petróleo;
- Produtos
industriais: combustíveis de petróleo, petróleo bruto, café, celulose e
aeronaves.
Enquanto as importações são maioritariamente:
- Produtos
petrolíferos refinados, óleos combustíveis de petróleo ou de minerais
betuminosos; Produtos de tecnologia: equipamentos de informática,
equipamentos de telecomunicações, sistemas de energia e maquinário
industrial;
- Produtos
industriais: equipamentos médicos, produtos farmacêuticos e medicamentos.
Ambas as potências retiram da economia brasileira o que mais precisam e
o que o modelo econômico agroextrativista tem para colocar no mercado
internacional não se divisando nessas relações substantivos desenvolvimentos no
tecido industrial brasileiro, mas essa é uma encruzilhada a resolver dentro do Brasil.
Mas… em tempos de bipolarização global o caminho em cima do muro
torna-se estreito e de curta duração, havendo obstáculos impossíveis de
ultrapassar.
·
BRICS e o caso Venezuela
Primeiramente em 2009 com China, Rússia, Brasil e Índia, acompanhados em
2011 pela África do Sul, a criação dos BRICS viria a contribuir e destacar o
deslocamento do centro econômico atlantista para a Ásia/Pacífico e o que se
viria a convencionar como Sul Global. O patrocínio do Brasil ao projeto no
início da década passada e os discursos entusiásticos do presidente Lula em
2023 auguravam um aprofundamento do projeto, podendo vir a ser um caminho
alternativo às relações coloniais estabelecidas entre o império
estadunidense/europeu e o Brasil.
A incursão da Rússia na Ucrânia serviu de motivo para os EUA quebrarem
os circuitos econômicos globais que no seu pleno funcionamento só aumentam a
distância de crescimento e desenvolvimento da economia chinesa em relação à
estadunidense. Impuseram sanções, roubaram reservas financeiras russas no
exterior e estabeleceram fortes restrições no relacionamento com a Rússia.
Economia e dólar seriam agora instrumentos cada vez mais bélicos, com objetivos
muito mais destrutivos que construtivos, ameaças essas que o resto do mundo bem
compreendeu, havendo um movimento de abandono do dólar como unidade das
reservas de muitos países.
A pressão imposta pelas armas e pela ditadura do dólar no comércio
mundial levou muitos países a encarar os BRICS como um caminho econômico
alternativo às relações extorsionistas do (em declínio mas ainda) império com o
resto do mundo, mesmo sendo um grupo de países com modelos políticos e sociais
muito diferentes. Neste cenário dezenas de países tentam a adesão ao grupo,
tendo sido aprovada em 2024 a extensão para mais cinco países: Irã, Emirados
Árabes Unidos, Egito, Etiópia e a Arábia Saudita.
Foi neste ímpeto aglutinador que a Rússia propôs a Venezuela como novo
parceiro do grupo e o Brasil vetou, dando continuidade à pior falha que teve na
política externa. A mando não se sabe de quem (mas calcula-se), o Brasil
assumiu um papel de fiscalizador de eleições alheias, (mas só da Venezuela) não
reconhecendo a legalidade do ato mesmo quando a corte eleitoral venezuelana o
fez. Violando despudoradamente a soberania de um país vizinho, parceiro
econômico e indispensável para a integração sul americana, que ficou mais
fragilizada com esta atitude do governo brasileiro. Recordando que o projeto de
envolvimento dos países sul americanos pode ser mais um mecanismo de defesa e
emancipação do continente face às potências que sempre o colonizaram, em
particular do domínio do Tio Sam.
Ao final de dois anos de mandato vemos um Brasil pouco comprometido com
o aprofundamento dos BRICS, agora na sua versão PLUS, e com a integração sul
americana, dando o governo mais destaque nas suas relações com o bloco
imperialista, como no encontro do G20 e as negociações do acordo UE/Mercosul.
Esperemos que haja uma recondução na política externa brasileira, recuperando
fulgor dentro dos BRICSPLUS e normalizando suas relações com a Venezuela,
movimento racional e necessário.
·
Palestina viva e livre!
O mundo vai assistindo de forma plácida o genocídio em Gaza promovido
pelo governo sionista israelense e patrocinado pelos EUA acompanhados pela
maioria dos governos europeus. Também China e Rússia têm assobiado para o lado.
Lula acertou ao classificar por várias vezes como genocídio o que o é.
Embora sem sequência efetiva no campo diplomático e econômico, as falas
corajosas de Lula sobre o massacre em Gaza deram relevância e alento à causa
palestina e revelou ser o melhor contributo que o governo brasileiro deu nos
últimos dois anos. Esperemos que se desenvolvam novas formas de defesa e
solidariedade para com a Palestina entendendo que combater o sionismo é tarefa mundial
ao nível de cada país. Não só o sionismo está disseminado pelo globo como se
emparelha com movimentos/ideologias irmãs como o neofascismo e o neonazismo.
Combater o genocídio sionista também é combater a extrema direita dentro
de casa.
·
Com a cabeça na lua e os
pés na soja
Os programas espaciais são talvez a maior forma de afirmação como
potências que os países têm no cenário internacional. O século XXI viu
recrudescer a exploração espacial com vários novos atores a disputar o palco
estelar. O nosso astro inquilino ganhou particular atração nos últimos vinte
anos, tendo Israel, Rússia e Índia tentado alunagens com mais ou menos sucesso.
Mas são as duas superpotências que estão mais avançadas nos seus programas de
exploração espacial, revelando-se a China a que mais passo deu no seu projeto
de criação da Estação
Internacional de Investigação Lunar. Afinal tudo acompanha a economia…
Em resposta a este projeto, os EUA desenvolvem o programa Artemis que pretende recolocar
seres humanos na superfície do satélite terrestre.
Também estes programas refletem o posicionamento das potências e suas
diplomacias. Através da emenda Wolf, de 2011, o congresso norte americano
proibiu o financiamento de qualquer programa que tenha o envolvimento de
cientistas estadunidenses com projetos espaciais chineses e vice versa. Há mais
de uma década que o império encara como um problema vital a ascensão chinesa.
Por seu turno, o programa espacial chinês continua aberto à participação de
todos os países sem excepção, consolidando o gigante asiático como a potência
colaborativa sem medo de concorrência, segura de sua predominância econômica e
tecnológica, fazendo lembrar a segurança dos EUA quanto à globalização no
início deste milênio. Os astros rodam e a vida também.
O Brasil poderia estar neste grupo seleto de países com capacidade de
exploração espacial, aproveitando os projetos internacionais liderados pelas
superpotências. Mas uma breve consulta no site da Agência Espacial Brasileira ²
constatamos que na cooperação internacional com EUA e China o Brasil não tem
nenhuma atividade desde 2016. Seria coincidência? Claro que não. 2016 é o ano
do golpe que reconduziu o Brasil a um modelo exclusivo de agro extrativismo
financeirizado deixando o investimento em tecnologia e investigação no passado.
Como referido em abril de 2023 em “O magnetismo imperialista” ³, a
política de alianças, parcerias e enfrentamentos internacionais dependeria mais
da situação interna do Brasil que das suas relações com o exterior, constando
no capítulo “O amigo externo não faz milagres” que a China ou qualquer outro
país só vai comprar o que o Brasil tiver para vender e que não será nenhum
outro país a dar um rumo desenvolvimentista ao Brasil.
Portanto, a questão da política internacional brasileira prende-se com o
modelo de desenvolvimento econômico escolhido pelos/as brasileiros/as, sendo
certo que se a relação de forças for alterada e o Brasil optar por um caminho
de qualificação econômica e laboral, soberano e autônomo, sendo uma referência
de desenvolvimento econômico e social, saindo do papel de eterna colônia
exportadora de commodities, só um dos campos está disponível para o
acolher, e não é o campo do império.
Fonte: Outras
Palavras
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