sábado, 25 de janeiro de 2025

Gestão Trump marca agravamento da disputa com a China, e tempo joga contra núcleo ocidental

Em entrevista à Sputnik Brasil, analistas apontam que as ameaças do novo presidente dos EUA à China apontam para o acirramento da guerra comercial entre os países, que reflete uma disputa pela liderança global, econômica, política e tecnológica.

O novo presidente dos EUA, Donald Trump, tomou posse nesta semana com um discurso fortemente protecionista e expansionista, que tinha como principais alvos o BRICS e a China.

O país asiático incomoda Trump por promover um tipo de relação entre Estados baseada na cooperação, visando benefícios e prosperidade mútuos, apontada como bem diferente da abordagem exploratória e colonizadora de Washington. Ademais, a influência chinesa se expandiu significativamente nas Américas Latina e do Sul, região vista pelos EUA como sua zona de influência imediata.

Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam se o novo mandato de Trump será marcado pelo aprofundamento da disputa comercial entre EUA e China e que impactos isso poderá ter na geopolítica e na economia global.

Renato Ungaretti, doutorando em estudos estratégicos e especialista residente sênior na Observa China, argumenta que a disputa comercial entre EUA e China não é nova: ela se iniciou em 2017, no primeiro mandato de Trump, e foi continuada no governo de Joe Biden, e não abrange apenas o comércio.

"A gente percebe hoje um processo, que vem se arrastando, de uma disputa que é comercial, tecnológica, sistêmica. Isso deve se aprofundar nos próximos anos, com o novo governo [dos EUA]. Acho que [isso] indicaria com certeza e seria reflexo dessas disputas que não são somente comerciais, mas também são por liderança tecnológica, por liderança produtiva em novos setores e, em última instância, pela liderança do próprio sistema internacional como um todo", afirma.

Tradicionalmente um país guiado pela diplomacia e pelo não intervencionismo, a China vem respondendo às ameaças de Trump em tom assertivo. A chancelaria de Pequim já saiu em defesa do governo panamenho diante das ameaças de Washington de ocupar o canal do Panamá, reafirmou que a China "sempre defenderá seus interesses nacionais" e destacou que pretende ampliar a cooperação econômica com parceiros do BRICS, apesar das ameaças de taxação dos EUA.

Segundo Ungaretti, essa postura assertiva da China é uma das marcas do governo do presidente chinês, Xi Jinping.

"Desde o início do governo Xi Jinping, a China tem uma transição importante nas suas estratégias de inserção internacional. Por muitas décadas, desde o Deng Xiaoping, a China preferia uma abordagem mais low profile, um perfil de inserção internacional mais cauteloso e mais discreto. Isso se alterou profundamente com o governo Xi Jinping. Então a gente vê a China já tendo uma postura mais assertiva, e acho que não surpreende essa maior defesa e essa rejeição com mais veemência e com mais contundência por parte da diplomacia chinesa."

Entretanto, ele descarta uma ação militar da China em resposta aos EUA em uma eventual ocupação do canal do Panamá. Isso porque ele considera improvável que Trump concretize a ameaça de ocupar a passagem, já que um dos motivos para a abertura da rota foi justamente dinamizar o comércio entre EUA e China.

"Eu vejo [a ameaça ao canal] como uma forma de mobilizar o público interno [dos EUA] em relação a determinadas temáticas, e essa temática do comércio e da proteção de empregos, ao lado da imigração, é um tema bastante explorado por Trump em relação ao seu público interno, então não vejo grandes possibilidades de isso se concretizar", avalia.

Ele acrescenta que uma resposta de Pequim também não seria militar e que o mais provável é que a China buscaria alternativas econômicas, comerciais e de governança para superar possíveis interrupções no comércio decorrentes de uma eventual ocupação militar dos EUA no canal do Panamá.

Segundo Ungaretti, "é muito importante lembrar que EUA e China ainda nutrem uma interdependência comercial, econômica e financeira bastante grande, parcela relevante do comércio, inclusive, que trafega pelo canal do Panamá".

"Ele [o canal] é destinado ao comércio entre China e EUA, o comércio em uma rota Nova York-Xangai, então não seria do interesse dos EUA, dos negócios, das indústrias americanas também, ter uma interrupção nesse fluxo de comércio via uma ação mais drástica no canal do Panamá."

Diego Pautasso, doutor em relações internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autor do livro "A China e a Nova Rota da Seda", afirma que o acirramento das políticas antichinesas dos EUA tem como raiz a política externa chamada "pivô asiático", implementada na gestão de Barack Obama (2009–2017), que reorientou as prioridades de Washington para a Ásia visando ampliar acordos com países da região para conter e limitar a influência da China e sua Iniciativa Cinturão e Rota.

"De lá para cá, a política de Washington tem escalado no sentido da contenção da China. Ou seja, a tendência [atual] é tanto de aprofundamento da guerra comercial quanto de cerco militar contra a China", afirma o especialista.

Para Pautasso, a possibilidade de Washington converter a narrativa expansionista de Trump em escalada militar e ocupação territorial é real.

"Para além da forma midiatizada de fazer política, inflando seu eleitor, o fato é que a guerra e a projeção de poder estão no DNA dos EUA. Sua história é atravessada por intervenções de vários tipos em todos os quadrantes. Em uma situação de esgarçamento do tecido social interno e de percepção de progressiva perda de poder relativo, a postura dos EUA tem sido (e tenderá a ser mais) errática", afirma.

Porém, segundo ele, em uma eventual tomada de controle do canal pelos EUA, a China não teria condição nem necessidade de intervir.

"Certamente as respostas [de Pequim] seriam duras e indiretas, pois a economia estadunidense é profundamente entrelaçada à chinesa", observa.

Que impactos o embate comercial EUA-China pode ter na economia global?

China e EUA são hoje as maiores economias do mundo em disputa de liderança. Nesse contexto, Ungaretti afirma que o acirramento da disputa comercial entre os países pode impactar no crescimento global de curto e médio prazo, além de afetar cadeias de suprimento de indústrias importantes.

"A gente tem experienciado um movimento, que também não é de hoje, de desglobalização, de reterritorialização de indústrias. Isso também foi algo buscado pelo governo Biden e acaba gerando distorções, medidas protecionistas que prejudicam países em desenvolvimento. Inclusive, no comércio da América do Sul com a União Europeia, a gente teve todo esse debate ano passado, sobre esse protecionismo ambiental. Então há hoje no comércio internacional uma série de desafios aos países em desenvolvimento, e isso também impacta o crescimento da economia global como um todo, e as possibilidades de crescimento e desenvolvimento dos países mais pobres."

Pautasso, por sua vez, enfatiza que o declínio do antigo núcleo do sistema internacional, formado por EUA e Europa Ocidental, é visível em todos os âmbitos, da economia ao comércio, passando pela demografia e até mesmo pelo peso geopolítico.

"Cada vez mais o Sul Global tem uma existência e dinâmica próprias, enquanto aumentam seu peso relativo. O tempo joga contra o núcleo ocidental, e suas ações [do Sul Global] têm servido para acelerar respostas anti-hegemônicas em vez de consolidar sua primazia. Nesse sentido, o governo Trump, com o que já foi sinalizado em discursos e primeiros decretos, tem tudo para recrudescer os conflitos internacionais e precipitar o isolamento dos EUA e seus aliados", conclui o especialista.

 

¨      'Made in China?': os produtos endossados por Trump fabricados fora dos EUA

Em fevereiro de 2024, um dia depois de ter sido condenado por um juiz em Nova York a pagar US$ 355 milhões no caso de fraude contábil em que fora acusado de inflar ilegalmente o tamanho de seu patrimônioDonald Trump lançou um par de tênis dourados com seu nome.

Vendido por US$ 399 (aproximadamente R$ 2.370), o Trump sneakers foi o primeiro de uma lista de produtos endossados no ano passado pelo agora presidente dos Estados Unidos, que inclui um medalhão de prata estampado com seu rosto comercializado por US$ 100 (R$ 596) e uma Bíblia de US$ 60 (R$ 360).

A memorabília tem feito sucesso entre apoiadores — a primeira edição dos tênis dourados, por exemplo, já está esgotada — e causado burburinho fora do universo trumpista, que chama atenção para o fato de que parte desses produtos é feita na China.

A Bíblia de US$ 60 é um deles, conforme revelou uma investigação da agência de notícias Associated Press, que apurou que o custo por unidade seria de US$ 3.

Outro produto são os bonés vermelhos bordados com Make America Great Again ("faça a América grande de novo", em tradução literal) que viralizaram nesta semana da posse de Trump porque tinham uma etiqueta informando que o design era americano e outra que deixava claro que a peça em si tinha sido fabricada bem longe dali: "made in China" (fabricado na China).

A China é um dos inimigos declarados dos Estados Unidos na retórica trumpista.

A ideia de que a importação de produtos chineses é uma das forças por trás da decadência da indústria americana motivou o republicano em seu primeiro mandato a impor uma enxurrada de tarifas e travar uma guerra comercial com a China, movimento que deve ter continuidade com seu retorno à Casa Branca.

Nos comícios durante a campanha, Trump prometeu reiteradamente revitalizar a indústria americana.

Essa é uma das ideias centrais expressas pelo slogan Make America Great Again.

No mais recente lançamento, pouco depois de ter sido eleito, Trump emprestou seu nome a uma coleção de guitarras estampadas com uma águia e a bandeira dos Estados Unidos no corpo e o slogan Make America Great Again em maiúsculas no braço.

A comunidade musical reagiu imediatamente ao lançamento. Ao design, muito parecido com o da icônica Les Paul da marca Gibson — que imediatamente enviou uma notificação extrajudicial para a Trump Guitars alertando sobre a cópia — e especialmente à sua origem.

"Será que ela é feita na China? Eu estava me perguntando a mesma coisa", disse o músico e YouTuber americano Taylor Danley em uma transmissão ao vivo no Discord, respondendo a um seguidor, enquanto olhava as especificações no site da marca.

·        Quem fabrica as Trump Guitars?

O site da Trump Guitars é vago em relação ao local de fabricação dos modelos.

A seção de perguntas frequentes descreve que todas as guitarras "são desenhadas e desenvolvidas por uma empresa de um veterano das Forças Armadas com a ajuda de um mestre luthier".

E informa que foram "produzidas por diferentes fornecedores que são tanto domésticos quanto internacionais".

Isso, como aponta à BBC News Brasil Silas Fernandes, guitarrista e produtor musical brasileiro que mora nos Estados Unidos, é um forte indicativo de que o instrumento não é produzido em solo americano.

"Não existe uma empresa que fabrique nos Estados Unidos e não tenha uma seção dentro do site com as guitarras 'made in USA' anunciadas em letras garrafais", argumenta Fernandes, que também é um técnico de guitarras, profissional que acompanha bandas para fazer manutenção e regulagem do instrumento.

"É um ativo, um marketing muito poderoso o fato de ser americano."

Isso porque boa parte das guitarras vendidas no mundo são produzidas, por questões de custo, na Ásia.

Cerca de 70%, estima o músico, que tem mais de 30 anos de experiência e já chegou a visitar na China uma das maiores fabricantes, que distribui para diversas marcas.

Fernandes afirma que hoje há guitarras chinesas com diferentes níveis de qualidade e preço, a depender da madeira usada como matéria-prima e de peças como as tarraxas e a ponte.

Ainda assim, ele acrescenta, continua existindo um certo "fetiche" pelos modelos fabricados nos Estados Unidos, que costumam ser significativamente mais caros.

A veterana Jackson Guitars, por exemplo, anuncia os modelos da sua American Series como "made in California".

A reportagem questionou a Get Trump Guitars sobre o local de fabricação dos instrumentos vendidos no site, mas não teve retorno.

Com base nas características do modelo, Fernandes diz que ele "muito provavelmente" é fabricado na Ásia, mais precisamente na China, na Coreia do Sul ou na Indonésia.

A qualidade, em sua opinião, não é compatível com o preço, de US$ 1,5 mil (cerca de R$ 8.950) a US$ 11,5 mil (aproximadamente R$ 68,6 mil), nesse caso para as peças autografadas pelo agora presidente.

O custo de produção, segundo ele, "exagerando" chegaria a US$ 100 (R$ 596).

"Me parecem aquelas guitarras da linha mais barata da Epiphone", avalia, referindo-se às versões de menor custo da Les Paul, fabricadas fora dos Estados Unidos.

O braço da guitarra, ele exemplifica, é parafusado, algo que não se observa nas Les Paul originais.

"Toda a comunidade já sacou que é feita na Ásia… o que é muito irônico, vindo de um cara que fez uma campanha política calcada em trazer de volta a indústria americana", opina Fernandes.

O músico Taylor Danley chegou a comprar um dos modelos para ver de perto como ela é feita e ainda aguarda a entrega.

No vídeo em que registrou o processo em seu canal do YouTube, ele chamou atenção para o nome da empresa que aparece na cobrança no cartão de crédito: "God Bless the USA Bible".

·        Os negócios de Trump

A God Bless the USA Bible está ligada à God Bless the USA, uma plataforma de comércio eletrônico recheada de produtos endossados por Trump, de camisetas a uma jukebox.

O site começou a funcionar em março de 2024, conforme suas redes sociais.

O nome faz referência à música homônima lançada em 1984 pelo cantor Lee Greenwood, que é amigo pessoal de Trump e se apresentou durante a posse.

O site pessoal do artista é listado, junto com o site que vende as Trump Guitars, entre os "amigos e parceiros" da página do God Bless the USA.

Não está clara qual relação ele tem com a marca e qual participação tem na empresa.

Os negócios recentes se somam à longa lista de projetos em que Trump investiu antes de entrar na política, que inclui um império imobiliário com hotéis e campos de golfe.

Ele também já ganhou muito dinheiro emprestando seu nome a dezenas de produtos por meio de contratos de licenciamento durante sua carreira na televisão, quando foi apresentador do reality show O Aprendiz, e em empreitadas próprias, de roupas masculinas a água mineral.

Desde que deixou a Casa Branca, expandiu os investimentos e se aventurou em uma série de novos negócios.

Criou, por exemplo, um grupo de comunicação, batizado de Trump Media & Technology Group, responsável pelo lançamento da rede social Truth Social em 2022.

No mesmo ano, lançou sua marca própria de NFTs (ativos digitais conhecidos como "tokens não fungíveis" e considerados únicos, como uma obra de arte).

A primeira leva de 45 mil cards colecionáveis, vendidos a US$ 99 (R$ 590), estampava imagens do agora presidente jogando golfe, por exemplo, e como super-herói.

O rol de negócios de Trump inclui ainda uma plataforma para negociação de criptomoedas, a World Liberty Financial, lançada em 2024, e, desde a última semana, uma criptomoeda com seu nome.

As empreitadas têm despertado uma discussão sobre potencial conflito de interesses, já que, como presidente, Trump pode tomar medidas que afetam diretamente seus negócios.

 

Fonte: Sputnik Brasil/BBC News Mundo

 

Nenhum comentário: