Gestão Trump marca agravamento da disputa com a China,
e tempo joga contra núcleo ocidental
Em
entrevista à Sputnik Brasil, analistas apontam que as ameaças do novo
presidente dos EUA à China apontam para o acirramento da guerra comercial entre
os países, que reflete uma disputa pela liderança global, econômica, política e
tecnológica.
O
novo presidente dos EUA, Donald Trump, tomou posse nesta semana com um
discurso fortemente protecionista e expansionista, que tinha
como principais alvos o BRICS e a China.
O
país asiático incomoda Trump por promover um tipo de relação entre Estados
baseada na cooperação, visando benefícios e prosperidade mútuos, apontada
como bem diferente da abordagem exploratória e colonizadora de Washington.
Ademais, a influência chinesa se expandiu significativamente nas Américas
Latina e do Sul, região vista pelos EUA como sua zona de influência imediata.
Em
entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam se o novo mandato de
Trump será marcado pelo aprofundamento da disputa comercial entre EUA e China e
que impactos isso poderá ter na geopolítica e na economia global.
Renato
Ungaretti, doutorando em estudos estratégicos e especialista residente sênior
na Observa China, argumenta que a disputa comercial entre EUA e China não é
nova: ela se iniciou em 2017, no primeiro mandato de Trump, e foi
continuada no governo de Joe Biden, e não abrange apenas o comércio.
"A
gente percebe hoje um processo, que vem se arrastando, de uma disputa que é
comercial, tecnológica, sistêmica. Isso deve se aprofundar nos próximos anos,
com o novo governo [dos EUA]. Acho que [isso] indicaria com certeza e seria
reflexo dessas disputas que não são somente comerciais, mas também são por
liderança tecnológica, por liderança produtiva em novos setores e, em última
instância, pela liderança do próprio sistema internacional como um todo",
afirma.
Tradicionalmente
um país guiado pela diplomacia e pelo não intervencionismo, a China vem respondendo
às ameaças de Trump em
tom assertivo. A chancelaria de Pequim já saiu
em defesa do governo panamenho diante das ameaças de Washington de
ocupar o canal do Panamá, reafirmou que a China "sempre defenderá
seus interesses nacionais" e destacou que pretende ampliar a
cooperação econômica com parceiros do BRICS, apesar das ameaças de taxação dos
EUA.
Segundo
Ungaretti, essa postura assertiva da China é uma das marcas do governo do
presidente chinês, Xi Jinping.
"Desde
o início do governo Xi Jinping, a China tem uma transição importante nas suas
estratégias de inserção internacional. Por muitas décadas, desde o Deng
Xiaoping, a China preferia uma abordagem mais low profile, um perfil de
inserção internacional mais cauteloso e mais discreto. Isso se alterou
profundamente com o governo Xi Jinping. Então a gente vê a China já tendo uma
postura mais assertiva, e acho que não surpreende essa maior defesa e essa
rejeição com mais veemência e com mais contundência por parte da diplomacia
chinesa."
Entretanto,
ele descarta uma ação militar da China em resposta aos EUA em uma eventual
ocupação do canal do Panamá. Isso porque ele considera improvável que Trump concretize
a ameaça de ocupar a passagem, já que um dos motivos para a abertura da
rota foi justamente dinamizar o comércio entre EUA e China.
"Eu
vejo [a ameaça ao canal] como uma forma de mobilizar o público interno [dos
EUA] em relação a determinadas temáticas, e essa temática do comércio e da
proteção de empregos, ao lado da imigração, é um tema bastante explorado por
Trump em relação ao seu público interno, então não vejo grandes possibilidades
de isso se concretizar", avalia.
Ele
acrescenta que uma resposta de Pequim também não seria militar e que o mais
provável é que a China buscaria alternativas econômicas, comerciais e de
governança para superar possíveis interrupções no comércio decorrentes de uma
eventual ocupação militar dos EUA no canal do Panamá.
Segundo
Ungaretti, "é muito importante lembrar que EUA e China ainda nutrem uma
interdependência comercial, econômica e financeira bastante grande, parcela
relevante do comércio, inclusive, que trafega pelo canal do Panamá".
"Ele
[o canal] é destinado ao comércio entre China e EUA, o comércio em uma rota
Nova York-Xangai, então não seria do interesse dos EUA, dos negócios, das
indústrias americanas também, ter uma interrupção nesse fluxo de comércio via
uma ação mais drástica no canal do Panamá."
Diego
Pautasso, doutor em relações internacionais pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS) e autor do livro "A China e a Nova Rota da
Seda", afirma que o acirramento das políticas antichinesas dos EUA tem
como raiz a política externa chamada "pivô asiático",
implementada na gestão de Barack Obama (2009–2017), que reorientou as
prioridades de Washington para a Ásia visando ampliar acordos com países da
região para conter e limitar a influência da China e sua Iniciativa Cinturão e
Rota.
"De
lá para cá, a política de Washington tem escalado no sentido da contenção da
China. Ou seja, a tendência [atual] é tanto de aprofundamento da guerra
comercial quanto de cerco militar contra a China", afirma o especialista.
Para
Pautasso, a possibilidade de Washington converter a narrativa
expansionista de Trump em escalada militar e ocupação territorial é real.
"Para
além da forma midiatizada de fazer política, inflando seu eleitor, o fato é que
a guerra e a projeção de poder estão no DNA dos EUA. Sua história é atravessada
por intervenções de vários tipos em todos os quadrantes. Em uma situação de
esgarçamento do tecido social interno e de percepção de progressiva perda de
poder relativo, a postura dos EUA tem sido (e tenderá a ser mais)
errática", afirma.
Porém,
segundo ele, em uma eventual tomada de controle do canal pelos EUA, a
China não teria condição nem necessidade de intervir.
"Certamente
as respostas [de Pequim] seriam duras e indiretas, pois a economia
estadunidense é profundamente entrelaçada à chinesa", observa.
Que
impactos o embate comercial EUA-China pode ter na economia global?
China
e EUA são hoje as maiores economias do mundo em disputa de liderança. Nesse
contexto, Ungaretti afirma que o acirramento da disputa comercial entre os
países pode impactar no crescimento global de curto e médio prazo, além de
afetar cadeias de suprimento de indústrias importantes.
"A
gente tem experienciado um movimento, que também não é de hoje, de
desglobalização, de reterritorialização de indústrias. Isso também foi algo buscado
pelo governo Biden e acaba gerando distorções, medidas protecionistas que
prejudicam países em desenvolvimento. Inclusive, no comércio da América do Sul
com a União Europeia, a gente teve todo esse debate ano passado, sobre esse
protecionismo ambiental. Então há hoje no comércio internacional uma série de
desafios aos países em desenvolvimento, e isso também impacta o crescimento da
economia global como um todo, e as possibilidades de crescimento e
desenvolvimento dos países mais pobres."
Pautasso,
por sua vez, enfatiza que o declínio do antigo núcleo do sistema
internacional, formado por EUA e Europa Ocidental, é visível em todos os
âmbitos, da economia ao comércio, passando pela demografia e até mesmo pelo
peso geopolítico.
"Cada
vez mais o Sul Global tem uma existência e dinâmica próprias, enquanto aumentam
seu peso relativo. O tempo joga contra o núcleo ocidental, e suas ações [do Sul
Global] têm servido para acelerar respostas anti-hegemônicas em vez de
consolidar sua primazia. Nesse sentido, o governo Trump, com o que já foi
sinalizado em discursos e primeiros decretos, tem tudo para recrudescer os
conflitos internacionais e precipitar o isolamento dos EUA e seus
aliados", conclui o especialista.
¨ 'Made in China?': os produtos endossados por Trump fabricados
fora dos EUA
Em fevereiro de
2024, um dia depois de ter sido condenado por um juiz
em Nova York a pagar US$ 355 milhões no caso de fraude contábil em que fora
acusado de inflar ilegalmente o tamanho de seu patrimônio, Donald Trump lançou um par
de tênis dourados com seu nome.
Vendido por US$ 399
(aproximadamente R$ 2.370), o Trump sneakers foi o primeiro de uma
lista de produtos endossados no ano passado pelo agora presidente
dos Estados Unidos,
que inclui um medalhão de prata estampado com seu rosto comercializado por US$
100 (R$ 596) e uma Bíblia de US$ 60 (R$ 360).
A memorabília tem
feito sucesso entre apoiadores — a primeira edição dos tênis dourados, por
exemplo, já está esgotada — e causado burburinho fora do universo trumpista,
que chama atenção para o fato de que parte desses produtos é feita na China.
A Bíblia de US$ 60
é um deles, conforme revelou uma investigação da agência de notícias Associated
Press, que apurou que o custo por unidade seria de US$ 3.
Outro produto são
os bonés vermelhos bordados com Make America Great Again ("faça
a América grande de novo", em tradução literal) que viralizaram nesta
semana da posse de Trump porque tinham uma etiqueta informando que o design era
americano e outra que deixava claro que a peça em si tinha sido fabricada bem
longe dali: "made in China" (fabricado na China).
A China é um dos
inimigos declarados dos Estados Unidos na retórica trumpista.
A ideia de que a
importação de produtos chineses é uma das forças por trás da decadência da
indústria americana motivou o republicano em seu primeiro mandato a impor uma
enxurrada de tarifas e travar uma guerra comercial com a China, movimento que
deve ter continuidade com seu retorno à Casa Branca.
Nos comícios
durante a campanha, Trump prometeu reiteradamente revitalizar a indústria
americana.
Essa é uma das
ideias centrais expressas pelo slogan Make America Great Again.
No mais recente
lançamento, pouco depois de ter sido eleito, Trump emprestou seu nome a uma
coleção de guitarras estampadas
com uma águia e a bandeira dos Estados Unidos no corpo e o
slogan Make America Great
Again em
maiúsculas no braço.
A comunidade
musical reagiu imediatamente ao lançamento. Ao design, muito parecido com o da
icônica Les Paul da marca Gibson — que imediatamente enviou uma notificação
extrajudicial para a Trump Guitars alertando sobre a cópia — e especialmente à
sua origem.
"Será que ela
é feita na China? Eu estava me perguntando a mesma coisa", disse o músico
e YouTuber americano Taylor Danley em uma transmissão ao vivo no Discord,
respondendo a um seguidor, enquanto olhava as especificações no site da marca.
·
Quem
fabrica as Trump Guitars?
O site da Trump
Guitars é vago em relação ao local de fabricação dos modelos.
A seção de
perguntas frequentes descreve que todas as guitarras "são desenhadas e
desenvolvidas por uma empresa de um veterano das Forças Armadas com a ajuda de
um mestre luthier".
E informa que foram
"produzidas por diferentes fornecedores que são tanto domésticos quanto
internacionais".
Isso, como aponta à
BBC News Brasil Silas Fernandes, guitarrista e produtor musical brasileiro que
mora nos Estados Unidos, é um forte indicativo de que o instrumento não é
produzido em solo americano.
"Não existe
uma empresa que fabrique nos Estados Unidos e não tenha uma seção dentro do
site com as guitarras 'made in USA' anunciadas em letras garrafais",
argumenta Fernandes, que também é um técnico de guitarras, profissional que
acompanha bandas para fazer manutenção e regulagem do instrumento.
"É um ativo,
um marketing muito poderoso o fato de ser americano."
Isso porque boa
parte das guitarras vendidas no mundo são produzidas, por questões de custo, na
Ásia.
Cerca de 70%,
estima o músico, que tem mais de 30 anos de experiência e já chegou a visitar
na China uma das maiores fabricantes, que distribui para diversas marcas.
Fernandes afirma
que hoje há guitarras chinesas com diferentes níveis de qualidade e preço, a
depender da madeira usada como matéria-prima e de peças como as tarraxas e a
ponte.
Ainda assim, ele
acrescenta, continua existindo um certo "fetiche" pelos modelos
fabricados nos Estados Unidos, que costumam ser significativamente mais caros.
A veterana Jackson
Guitars, por exemplo, anuncia os modelos da sua American Series como "made
in California".
A reportagem
questionou a Get Trump Guitars sobre o local de fabricação dos instrumentos
vendidos no site, mas não teve retorno.
Com base nas
características do modelo, Fernandes diz que ele "muito
provavelmente" é fabricado na Ásia, mais precisamente na China, na Coreia
do Sul ou na Indonésia.
A qualidade, em sua
opinião, não é compatível com o preço, de US$ 1,5 mil (cerca de R$ 8.950) a US$
11,5 mil (aproximadamente R$ 68,6 mil), nesse caso para as peças autografadas
pelo agora presidente.
O custo de
produção, segundo ele, "exagerando" chegaria a US$ 100 (R$ 596).
"Me parecem
aquelas guitarras da linha mais barata da Epiphone", avalia, referindo-se
às versões de menor custo da Les Paul, fabricadas fora dos Estados Unidos.
O braço da
guitarra, ele exemplifica, é parafusado, algo que não se observa nas Les Paul
originais.
"Toda a
comunidade já sacou que é feita na Ásia… o que é muito irônico, vindo de um
cara que fez uma campanha política calcada em trazer de volta a indústria
americana", opina Fernandes.
O músico Taylor
Danley chegou a comprar um dos modelos para ver de perto como ela é feita e
ainda aguarda a entrega.
No vídeo em que
registrou o processo em seu canal do YouTube, ele chamou atenção para o nome da
empresa que aparece na cobrança no cartão de crédito: "God Bless the USA
Bible".
·
Os
negócios de Trump
A God Bless the USA
Bible está ligada à God Bless the USA, uma plataforma de comércio eletrônico
recheada de produtos endossados por Trump, de camisetas a uma jukebox.
O site começou a
funcionar em março de 2024, conforme suas redes sociais.
O nome faz
referência à música homônima lançada em 1984 pelo cantor Lee Greenwood, que é
amigo pessoal de Trump e se apresentou durante a posse.
O site pessoal do
artista é listado, junto com o site que vende as Trump Guitars, entre os
"amigos e parceiros" da página do God Bless the USA.
Não está clara qual
relação ele tem com a marca e qual participação tem na empresa.
Os negócios
recentes se somam à longa lista de projetos em que Trump investiu antes de
entrar na política, que inclui um império imobiliário com hotéis e
campos de golfe.
Ele também já
ganhou muito dinheiro emprestando seu nome a dezenas de produtos por meio de
contratos de licenciamento durante sua carreira na televisão, quando foi
apresentador do reality show O Aprendiz, e em empreitadas próprias, de
roupas masculinas a água mineral.
Desde que deixou a
Casa Branca, expandiu os investimentos e se aventurou em uma série de novos
negócios.
Criou, por exemplo,
um grupo de comunicação, batizado de Trump Media & Technology Group,
responsável pelo lançamento da rede social Truth Social em 2022.
No mesmo ano,
lançou sua marca própria de NFTs (ativos digitais conhecidos como "tokens
não fungíveis" e considerados únicos, como uma obra de arte).
A primeira leva de
45 mil cards colecionáveis, vendidos a US$ 99 (R$ 590), estampava imagens do
agora presidente jogando golfe, por exemplo, e como super-herói.
O rol de negócios
de Trump inclui ainda uma plataforma para negociação de criptomoedas, a World
Liberty Financial, lançada em 2024, e, desde a última semana, uma criptomoeda com seu
nome.
As empreitadas têm
despertado uma discussão sobre potencial conflito de interesses, já que, como
presidente, Trump pode tomar medidas que afetam diretamente seus negócios.
Fonte: Sputnik
Brasil/BBC News Mundo
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