segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Liliane Rocha: O inimigo dos EUA já foi o comunismo, o nazismo, o terrorismo. Agora é a Diversidade?

Ao longo da história, os Estados Unidos já tiveram muitos inimigos e já declararam muitas guerras. Fictícias ou não, é como se cada governo precisasse colocar um alvo bem grande nas costas de algo ou alguém. Uma forma de unir o povo, de desviar a atenção para a eficácia da gestão pública, de justificar com facilidade qualquer equívoco ou atrocidade, de fazer milhões com a indústria armamentista, por exemplo.

O inimigo já foi o Comunismo, o Nazismo, o Terrorismo. O comunismo foi visto como um grande adversário durante a Guerra Fria (1947–1991), tido como uma ameaça à democracia e ao capitalismo. A União Soviética e seus aliados eram o símbolo dessa ideologia, e os EUA reagiram com políticas de contenção, guerras e ações internas.

Já o nazismo foi o inimigo principal durante a Segunda Guerra Mundial (1939–1945). Liderados por Adolf Hitler, os nazistas representavam um regime autoritário e expansionista. Após o ataque japonês a Pearl Harbor, os EUA entraram na guerra em 1941 e desempenharam um papel decisivo na derrota das potências do Eixo.

O terrorismo, por sua vez, tornou-se o principal inimigo após os ataques de 11 de setembro de 2001, perpetrados pela Al-Qaeda. Esses eventos levaram os Estados Unidos a lançar a “Guerra ao Terror”, com intervenções militares no Afeganistão e no Iraque, além de ações globais para combater grupos extremistas, como o Estado Islâmico. A justificativa foi sempre a proteção da segurança nacional e da ordem internacional.

Recentemente, em uma conversa entre mim e a Dra. Fernanda Macedo, ela concluiu e eu concordei, que a guerra do momento, inicialmente simbólica e não bélica, instaurada por Trump, mesmo antes da posse, é contra a Diversidade. Ao que tudo indica, a luta por direitos e a igualdade para mulheres, negros, pessoas com deficiência, LGBTQPIAN+, imigrantes, entre tantos outros, é a grande bandeira do presidente norte-americano e a nova inimiga da nação. 

Durante o seu discurso de posse em 20 de janeiro de 2025, o presidente Donald Trump anunciou medidas que impactam diretamente as políticas de Diversidade nos Estados Unidos. Ele declarou que seu “governo reconheceria oficialmente apenas dois gêneros: masculino e feminino”. 

Além disso, Trump afirmou que tomaria ações executivas para eliminar os mandatos federais de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI), argumentando que tais políticas fomentam discriminação e incompetência. Ele ordenou a remoção de referências a DEI em comunicações governamentais e enfatizou a contratação baseada exclusivamente no mérito, sem considerar fatores como raça, sexo ou religião. 

O movimento é ostensivo, grandes empresas americanas como Meta, Microsoft, McDonald’s e Toyota já afirmaram, em certa medida, um refreamento em suas políticas de Diversidade. Hoje, ao entrar no site da Casa Branca, me deparo com um banner em letras garrafais que dizem “Acabar com a Discriminação Ilegal e restaurar a oportunidade baseada no mérito”. O que é mérito? Me pergunto. O mérito dos homens brancos que já ocupam mais de 70% dos postos de tomada de decisão no primeiro, segundo e terceiro setor em todo o mundo? O mérito que desconsidera ponto de partida, atrocidades históricas, algumas delas inclusive incentivadas e exercidas pelo próprio governo dos Estados Unidos?

Me parece que querer uma sociedade justa e equânime deveria ser uma premissa básica de todo e qualquer líder global, sobretudo em uma das maiores nações do planeta. Neste sentido, o inimigo escolhido pelo governo Trump diz muito mais sobre ele, do que sobre nós, latinos, negros, LGBTQPIAN+, e todos os outros sob ataque.

Mais uma vez, me pergunto: onde falhamos? O que podemos aprender com isso? Precisamos nos antecipar para evitar que, no futuro, tenhamos um presidente que tenha a coragem de afirmar abertamente ser contra a Diversidade e a Inclusão, utilizando até mesmo a máquina pública para promover retrocessos. É crucial fortalecer as redes de apoio, criando alianças estratégicas entre diferentes setores da sociedade, como a academia, o empresariado e os líderes comunitários, para garantir que as políticas públicas de inclusão se mantenham firmes e eficazes, independentemente das mudanças no cenário político.

 

¨         A primeira-dama saída do Conto de Aia. Por Camila Galetti e Jéssica M. Rivetti

A primeira-dama imigrante, reservada e conhecida por sua brevidade ao emitir opiniões, ganhou grande destaque na posse de seu marido, Donald Trump, comunicando-se através da moda.

Em 2017, na primeira posse presidencial, Melania Trump optou por trajar um conjunto de design clássico, azul-claro, da grife Ralph Lauren, composto por um vestido e um casaco de cashmere com gola alta e mangas três quartos, acrescido por luvas e sapatos no mesmo tom. O look evocou, na época, comparações imediatas com o estilo icônico de Jacqueline Kennedy na posse de John F. Kennedy em 1961, sugerindo uma intenção de Melania em associar-se à elegância clássica e à sofisticação da popular ex-primeira-dama. Ou seja, um dos objetivos era transmitir uma imagem nostálgica do passado e, ao mesmo tempo, de respeito pelas tradições democráticas e de primeiro damismo, ambas arraigadas na cultura norte-americana.

Em um artigo intitulado Melania Trump e o primeiro-damismo nos EUA (2020), já havíamos destacado o fato de que Melania não havia conquistado a simpatia da população, preferindo manter-se discreta e o mais distante possível das polêmicas e holofotes – o que pode soar até contraditório, uma vez que é casada com a própria representação da extrema direita estridente. Contudo, eis aqui o combo perfeito do neoconservadorismo: a mulher mais jovem, silenciosa e dentro dos padrões hegemônicos de beleza, performando a feminilidade aceitável no espaço público, ao lado de um homem considerado “bem-sucedido”, poderoso, destemido e que fala tudo aquilo o que lhe vem à cabeça.

Se nas eleições de 2020 os Estados Unidos deram a oportunidade para uma mulher negra e asiático-americana ocupar a posição de vice-presidenta (second best), foi também nesse momento em que se começou a gestar um imenso ressentimento no seio da extrema direita – extravasado na invasão do Capitólio quatro anos atrás. Nesse período, o discurso de Trump se radicalizou ainda mais nos mais diversos níveis, pontuado por ataques aos direitos da população LGBTQIA+ e de imigrantes e pela ambição imperialista de incorporação de diversos territórios ao Estado norte-americano.

Essas mudanças puderam ser vistas efetivamente na estética da posse de 2025. Melania novamente jogou água no moinho da narrativa trumpista, ainda que de modo ofuscado. Agora, trajando um conjunto preto composto por casaco e saia de lã – assinado pelo estilista norte-americano Adam Lippes –, acompanhado por uma blusa de seda marfim. O grande destaque do visual foi o chapéu de Eric Javits, com aba larga azul-marinho e faixa branca – o acessório cobria parte de seu rosto, rendendo-lhe um ar enigmático, quase autoritário. Melania era uma mulher inacessível aos nossos olhos. A mulher que não vê e que tampouco é vista.

A escolha da primeira-dama por um designer americano independente, em contraste com as grifes europeias preferidas anteriormente, reforçou um discurso tão caro à extrema direita que é o nacionalismo. Em outras palavras, é inegável que a moda é política, e se não escutamos a voz de Melania, podemos perceber que ela certamente se comunica com a Nação de outra maneira, de uma forma mais simbólica.

Ao portar um traje mais sóbrio (ou sombio?), quase como se estivesse de luto, com um chapéu ocultando parcialmente o seu rosto, Melania roubou a cena em diversos momentos, suscitando indagações acerca de tal escolha estética ou, então, pelo fato de o presidente recém-eleito não conseguir sequer dar um beijo em sua esposa, uma vez que o chapéu também a afastava de qualquer contato físico mais íntimo, mantendo-a em uma “redoma”. Há, portanto, uma distância que é simbólica, mas também material e que faz com que ela seja inacessível aos nossos olhos e a quaisquer pessoas que estivessem por perto.

Se em momentos anteriores a primeira-dama era uma esposa troféu, exibida publicamente como uma conquista do presidente masculinista, será que, agora, ela chega a ser considerada uma mulher, uma esposa? Ou, melhor, será que é interpretada como uma pessoa, portadora de vontades, desejos, voz e identidade própria?

Especialistas de moda sugerem que a escolha visual da posse pode simbolizar uma certa submissão ou discrição de Melania. No entanto, é inevitável pensarmos também na figura das aias da obra O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale) de Margaret Atwood, em que mulheres são obrigadas a se despirem de seus nomes próprios, além de terem que usar vestimentas que ocultam sua individualidade. Essa comparação levanta questões sobre o papel e a autonomia da primeira-dama e sugere que suas deliberações estéticas refletem mensagens sobre sua posição social em relação ao ambiente – hostil à sua presença – que a cerca.

No universo narrado por Atwood, a semiótica é fundamental para a construção da narrativa, tanto que as vestimentas femininas demonstram o controle exercido pela teocracia totalitária de Gilead. São múltiplos os simbolismos da distopia que reforçam a hierarquia de poder e as definições rígidas dos papeis de gênero, de modo que cada grupo de mulheres representa uma cor e um estilo específico, definidos de acordo com sua função social e reprodutiva, com a anulação total das individualidades para a manutenção do sistema de dominação. Não é de se estranhar que a única exceção se aplique aos comandantes, pertencentes ao mais alto grau da hierarquia social e dotados de nomes próprios, status simbólico e distinção social.

As aias, encarregadas de aumentarem a taxa de natalidade via reprodução, vestem túnicas vermelhas longas e mantos, simbolizando fertilidade e sacrifício, além de chapéus ou “asas” brancas que limitam sua visão periférica – tal como outrora faziam-se com os animais usados como força de trabalho. Essa estética se traduz em submissão e isolamento social. Por outro lado, as esposas dos comandantes usam vestidos azuis que demonstram pureza e status elevado, ao passo que as Martas, empregadas domésticas, trajam tons neutros, como cinza ou verde oliva, indicando uma posição servil. Essa codificação visual reflete uma forma de desumanização que reduz as mulheres a meros estereótipos, baseados em sua função social desempenhada no regime.

Além disso, as roupas, neste caso, são lembretes materiais constantes da vigilância e do controle estatal. As mulheres não têm liberdade de escolha (com quem casarão, o que podem vestir, qual lugar gostariam de ocupar, onde querem morar) e qualquer tentativa de subversão, como ajustar o uniforme ou usar cores proibidas, é severamente punida. Assim, a estética é um símbolo poderoso tanto de opressão quanto, em alguns momentos, de resistência silenciosa, como quando as personagens encontram pequenas maneiras de recuperar sua identidade ou expressar rebeldia, mesmo sob um regime tão rígido.

Melania Trump, em sua aparição na posse de 2025, deixou claro um distanciamento que ia além do físico e resvalava no simbólico. Seu traje carregava uma narrativa que parecia inspirada no universo de O Conto da Aia, com forte inspiração na discreta submissão de Serena Joy, reforçando e complementando o autoritarismo e o controle frio de Fred Waterford.

 

Fonte: Le Monde

 

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