Liliane Rocha: O inimigo dos EUA já foi o
comunismo, o nazismo, o terrorismo. Agora é a Diversidade?
Ao longo da história, os Estados Unidos já tiveram
muitos inimigos e já declararam muitas guerras. Fictícias ou não, é como se
cada governo precisasse colocar um alvo bem grande nas costas de algo ou
alguém. Uma forma de unir o povo, de desviar a atenção para a eficácia da
gestão pública, de justificar com facilidade qualquer equívoco ou atrocidade,
de fazer milhões com a indústria armamentista, por exemplo.
O inimigo já foi o Comunismo, o Nazismo, o Terrorismo.
O comunismo foi visto como um grande adversário durante a Guerra Fria
(1947–1991), tido como uma ameaça à democracia e ao capitalismo. A União
Soviética e seus aliados eram o símbolo dessa ideologia, e os EUA reagiram com
políticas de contenção, guerras e ações internas.
Já o nazismo foi o inimigo principal durante a Segunda
Guerra Mundial (1939–1945). Liderados por Adolf Hitler, os nazistas
representavam um regime autoritário e expansionista. Após o ataque japonês a Pearl
Harbor, os EUA entraram na guerra em 1941 e desempenharam um papel decisivo na
derrota das potências do Eixo.
O terrorismo, por sua vez, tornou-se o principal
inimigo após os ataques de 11 de setembro de 2001, perpetrados pela Al-Qaeda.
Esses eventos levaram os Estados Unidos a lançar a “Guerra ao Terror”, com
intervenções militares no Afeganistão e no Iraque, além de ações globais para
combater grupos extremistas, como o Estado Islâmico. A justificativa foi sempre
a proteção da segurança nacional e da ordem internacional.
Recentemente, em uma conversa entre mim e a Dra.
Fernanda Macedo, ela concluiu e eu concordei, que a guerra do momento,
inicialmente simbólica e não bélica, instaurada por Trump, mesmo antes da
posse, é contra a Diversidade. Ao que tudo indica, a luta por direitos e a
igualdade para mulheres, negros, pessoas com deficiência, LGBTQPIAN+,
imigrantes, entre tantos outros, é a grande bandeira do presidente
norte-americano e a nova inimiga da nação.
Durante o seu discurso de posse em 20 de janeiro de
2025, o presidente Donald Trump anunciou medidas que impactam diretamente as
políticas de Diversidade nos Estados Unidos. Ele declarou que seu “governo
reconheceria oficialmente apenas dois gêneros: masculino e feminino”.
Além disso, Trump afirmou que tomaria ações executivas
para eliminar os mandatos federais de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI),
argumentando que tais políticas fomentam discriminação e incompetência. Ele
ordenou a remoção de referências a DEI em comunicações governamentais e
enfatizou a contratação baseada exclusivamente no mérito, sem considerar
fatores como raça, sexo ou religião.
O movimento é ostensivo, grandes empresas americanas
como Meta, Microsoft, McDonald’s e Toyota já afirmaram, em certa medida, um
refreamento em suas políticas de Diversidade. Hoje, ao entrar no site da Casa Branca, me deparo com um
banner em letras garrafais que dizem “Acabar com a Discriminação Ilegal e
restaurar a oportunidade baseada no mérito”. O que é mérito? Me pergunto. O
mérito dos homens brancos que já ocupam mais de 70% dos postos de tomada de
decisão no primeiro, segundo e terceiro setor em todo o mundo? O mérito que
desconsidera ponto de partida, atrocidades históricas, algumas delas inclusive
incentivadas e exercidas pelo próprio governo dos Estados Unidos?
Me parece que querer uma sociedade justa e equânime
deveria ser uma premissa básica de todo e qualquer líder global, sobretudo em
uma das maiores nações do planeta. Neste sentido, o inimigo escolhido pelo
governo Trump diz muito mais sobre ele, do que sobre nós, latinos, negros,
LGBTQPIAN+, e todos os outros sob ataque.
Mais uma vez, me pergunto: onde falhamos? O que podemos
aprender com isso? Precisamos nos antecipar para evitar que, no futuro,
tenhamos um presidente que tenha a coragem de afirmar abertamente ser contra a
Diversidade e a Inclusão, utilizando até mesmo a máquina pública para promover
retrocessos. É crucial fortalecer as redes de apoio, criando alianças
estratégicas entre diferentes setores da sociedade, como a academia, o
empresariado e os líderes comunitários, para garantir que as políticas públicas
de inclusão se mantenham firmes e eficazes, independentemente das mudanças no
cenário político.
¨
A primeira-dama saída do Conto
de Aia. Por Camila Galetti e Jéssica M. Rivetti
A primeira-dama imigrante, reservada e conhecida por
sua brevidade ao emitir opiniões, ganhou grande destaque na posse de seu marido,
Donald Trump, comunicando-se através da moda.
Em 2017, na primeira posse presidencial, Melania Trump
optou por trajar um conjunto de design clássico, azul-claro, da grife Ralph
Lauren, composto por um vestido e um casaco de cashmere com gola alta e
mangas três quartos, acrescido por luvas e sapatos no mesmo tom. O look evocou,
na época, comparações imediatas com o estilo icônico de Jacqueline Kennedy na
posse de John F. Kennedy em 1961, sugerindo uma intenção de Melania em
associar-se à elegância clássica e à sofisticação da popular ex-primeira-dama.
Ou seja, um dos objetivos era transmitir uma imagem nostálgica do passado e, ao
mesmo tempo, de respeito pelas tradições democráticas e de primeiro damismo,
ambas arraigadas na cultura norte-americana.
Em um artigo intitulado Melania Trump e o primeiro-damismo
nos EUA (2020),
já havíamos destacado o fato de que Melania não havia conquistado a simpatia da
população, preferindo manter-se discreta e o mais distante possível das
polêmicas e holofotes – o que pode soar até contraditório, uma vez que é casada
com a própria representação da extrema direita estridente. Contudo, eis aqui o
combo perfeito do neoconservadorismo: a mulher mais jovem, silenciosa e dentro
dos padrões hegemônicos de beleza, performando a feminilidade aceitável no
espaço público, ao lado de um homem considerado “bem-sucedido”, poderoso,
destemido e que fala tudo aquilo o que lhe vem à cabeça.
Se nas eleições de 2020 os Estados Unidos deram a
oportunidade para uma mulher negra e asiático-americana ocupar a posição de
vice-presidenta (second best), foi também nesse
momento em que se começou a gestar um imenso ressentimento no seio da extrema
direita – extravasado na invasão do Capitólio quatro anos atrás. Nesse período,
o discurso de Trump se radicalizou ainda mais nos mais diversos níveis,
pontuado por ataques aos direitos da população LGBTQIA+ e de imigrantes e pela
ambição imperialista de incorporação de diversos territórios ao Estado
norte-americano.
Essas mudanças puderam ser vistas efetivamente na
estética da posse de 2025. Melania novamente jogou água no moinho da narrativa
trumpista, ainda que de modo ofuscado. Agora, trajando um conjunto preto
composto por casaco e saia de lã – assinado pelo estilista norte-americano Adam
Lippes –, acompanhado por uma blusa de seda marfim. O grande destaque do visual
foi o chapéu de Eric Javits, com aba larga azul-marinho e faixa branca – o
acessório cobria parte de seu rosto, rendendo-lhe um ar enigmático, quase
autoritário. Melania era uma mulher inacessível aos nossos olhos. A mulher que
não vê e que tampouco é vista.
A escolha da primeira-dama por um designer americano
independente, em contraste com as grifes europeias preferidas anteriormente,
reforçou um discurso tão caro à extrema direita que é o nacionalismo. Em outras
palavras, é inegável que a moda é política, e se não escutamos a voz de
Melania, podemos perceber que ela certamente se comunica com a Nação de outra
maneira, de uma forma mais simbólica.
Ao portar um traje mais sóbrio (ou sombio?), quase como
se estivesse de luto, com um chapéu ocultando parcialmente o seu rosto, Melania
roubou a cena em diversos momentos, suscitando indagações acerca de tal escolha
estética ou, então, pelo fato de o presidente recém-eleito não conseguir sequer
dar um beijo em sua esposa, uma vez que o chapéu também a afastava de qualquer
contato físico mais íntimo, mantendo-a em uma “redoma”. Há, portanto, uma
distância que é simbólica, mas também material e que faz com que ela seja
inacessível aos nossos olhos e a quaisquer pessoas que estivessem por perto.
Se em momentos anteriores a primeira-dama era uma
esposa troféu, exibida publicamente como uma conquista do presidente
masculinista, será que, agora, ela chega a ser considerada uma mulher, uma
esposa? Ou, melhor, será que é interpretada como uma pessoa, portadora de
vontades, desejos, voz e identidade própria?
Especialistas de moda sugerem que a escolha visual da
posse pode simbolizar uma certa submissão ou discrição de Melania. No entanto,
é inevitável pensarmos também na figura das aias da obra O
Conto da Aia (The Handmaid’s Tale) de Margaret
Atwood, em que mulheres são obrigadas a se despirem de seus nomes próprios,
além de terem que usar vestimentas que ocultam sua individualidade. Essa
comparação levanta questões sobre o papel e a autonomia da primeira-dama e
sugere que suas deliberações estéticas refletem mensagens sobre sua posição
social em relação ao ambiente – hostil à sua presença – que a cerca.
No universo narrado por Atwood, a semiótica é
fundamental para a construção da narrativa, tanto que as vestimentas femininas
demonstram o controle exercido pela teocracia totalitária de Gilead. São
múltiplos os simbolismos da distopia que reforçam a hierarquia de poder e as
definições rígidas dos papeis de gênero, de modo que cada grupo de mulheres
representa uma cor e um estilo específico, definidos de acordo com sua função
social e reprodutiva, com a anulação total das individualidades para a
manutenção do sistema de dominação. Não é de se estranhar que a única exceção
se aplique aos comandantes, pertencentes ao mais alto grau da hierarquia social
e dotados de nomes próprios, status simbólico e distinção social.
As aias, encarregadas de aumentarem a taxa de
natalidade via reprodução, vestem túnicas vermelhas longas e mantos,
simbolizando fertilidade e sacrifício, além de chapéus ou “asas” brancas que
limitam sua visão periférica – tal como outrora faziam-se com os animais usados
como força de trabalho. Essa estética se traduz em submissão e isolamento
social. Por outro lado, as esposas dos comandantes usam vestidos azuis que
demonstram pureza e status elevado, ao passo que as Martas, empregadas
domésticas, trajam tons neutros, como cinza ou verde oliva, indicando uma posição
servil. Essa codificação visual reflete uma forma de desumanização que reduz as
mulheres a meros estereótipos, baseados em sua função social desempenhada no
regime.
Além disso, as roupas, neste caso, são lembretes
materiais constantes da vigilância e do controle estatal. As mulheres não têm
liberdade de escolha (com quem casarão, o que podem vestir, qual lugar
gostariam de ocupar, onde querem morar) e qualquer tentativa de subversão, como
ajustar o uniforme ou usar cores proibidas, é severamente punida. Assim, a
estética é um símbolo poderoso tanto de opressão quanto, em alguns momentos, de
resistência silenciosa, como quando as personagens encontram pequenas maneiras
de recuperar sua identidade ou expressar rebeldia, mesmo sob um regime tão
rígido.
Melania Trump, em sua aparição na posse de 2025, deixou
claro um distanciamento que ia além do físico e resvalava no simbólico. Seu
traje carregava uma narrativa que parecia inspirada no universo de O
Conto da Aia,
com forte inspiração na discreta submissão de Serena Joy, reforçando e
complementando o autoritarismo e o controle frio de Fred Waterford.
Fonte: Le Monde
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