A miragem das tecnologias opressoras
As transformações tecnológicas ligadas ao
avanço da economia digital estão reconfigurando o capitalismo. O advento do
chamado “capitalismo de plataforma” – um modelo econômico em que as empresas
empregam tecnologia e infraestruturas digitais para produzir e explorar dados –
vem alterando as relações de emprego, os padrões de produção/consumo e os
comportamentos sociopolíticos, trazendo importantes desafios para os Estados
nacionais.
Apesar dos paralelos com ondas passadas de
mudança tecnológica, a onda atual é sem precedentes em sua velocidade e caráter
exponencial. As inovações tecnológicas em diferentes áreas, como robótica,
inteligência artificial e tecnologias da informação e comunicação reforçam-se
continuamente impulsionando o ritmo da mudança. Atualmente, a velocidade das
transformações que imprimem obsolescência a uma série de empregos é inédita se
comparada aos períodos anteriores de “destruição criativa”. É certo que o
desemprego sempre caracterizou os períodos de transição das economias
capitalistas gerados pelas inovações produtivas; e várias economias políticas
presenciaram, após esses períodos de transição, um círculo virtuoso entre
aumento da produtividade, crescimento dos salários e expansão do consumo das
famílias. Hoje a situação é bastante distinta: a produtividade cresce puxada
pelas inovações tecnológicas, mas o mesmo não pode ser dito dos salários e do
consumo das famílias (cada vez mais endividadas) e do próprio emprego.
Deve-se destacar, todavia, que a difusão
global da economia digital ocorreu concomitantemente ao processo de
liberalização das economias políticas, culminando na retração do Estado de
Bem-Estar e no enfraquecimento dos sindicatos. A digitalização das economias
vem suscitando importantes debates sobre o futuro do trabalho e dos sistemas de
proteção social. Pairam dúvidas sobre quais aspectos da mudança tecnológica são
realmente preocupantes e benéficos para o trabalho e a proteção social. As
investigações sobre essas questões ainda são bastante incipientes. Grande parte
da literatura está preocupada com a dimensão “quantitativa” do emprego, ou
seja, em apontar quantos empregos são perdidos e ganhos em setores específicos
da economia sob os efeitos da automação. Embora tal dimensão seja relevante,
chamando a atenção para o fenômeno da rápida obsolescência de alguns postos de
trabalho, é inegável que precisamos procurar explicações empíricas mais
convincentes. A automação é parte de um problema mais geral decorrente não
apenas da estagnação, mas da supressão dos salários: um resultado ativamente
buscado e projetado por formuladores de políticas que, desde o final da década
de 1970, convidaram e permitiram que proprietários de capital e gerentes de
negócios atacassem a alavancagem e o poder de barganha dos trabalhadores, com o
resultado inevitável de que aqueles no topo passaram a reivindicar uma parcela
maior da renda.1
·
Crescente Poder das Big
Techs e Enfraquecimento do Trabalho
É necessário apontar que a digitalização
das economias não apenas acirra as tendências de desigualdade já estabelecidas,
mas também cria novos riscos sociais ao reforçar a transmissão desigual das
vantagens obtidas em termos de capital humano. Um fator crucial que influencia
a associação entre mudança tecnológica e desigualdade é se o sistema
educacional é capaz de neutralizar os impactos desiguais da mudança
tecnológica. O atual crescimento das disparidades em distribuição de
competências para enfrentar os desafios da digitalização (ocasionadas por investimentos
educacionais extremamente desiguais, por exemplo) está reduzindo as aspirações
dos indivíduos relativas ao seu status e inserção profissional. O fato é que se
elevaram os custos de acesso às novas tecnologias e aos serviços que no
passado, em decorrência da expansão das políticas nacionais de bem-estar,
proporcionavam canais de mobilidade ascendente para os grupos em desvantagem –
os serviços de cidadania, como educação, qualificação profissional e seguridade
social–, levando a um fechamento de oportunidades.
As mudanças tecnológicas afetaram de um
modo bastante desigual os diferentes grupos de trabalhadores. O risco de
possuir um trabalho mal remunerado e obsoleto cresceu enormemente devido ao
intenso processo de desindustrialização e automação do trabalho. No capitalismo
digital do início do século XXI, as relações de emprego vêm se tornando cada
vez menos rotineiras, mais desiguais e menos remuneradas, se comparadas ao
padrão clássico de emprego. Não por acaso, os riscos relacionados à automação
do trabalho também estão se constituindo em elementos de ativação da recente
onda de crescimento do conservadorismo social e político. O surgimento das
forças da direita radical, em vários países, está relacionado a declínios reais
e percebidos no status entre grupos da classe trabalhadora tradicional cujas
perspectivas de mobilidade ascendente são fortemente condicionadas pelas forças
da mudança tecnológica.
Além disso, diferentemente da “economia
material”, as formas de emprego no espaço digital também têm obscurecido os
limites fixados pela regulação do trabalho.Entre os novos empregos que surgiram
com os avanços tecnológicos, estão os chamados empregos intermediados por
plataformas digitais – em que todo o processo de trabalho é projetado para
atender ao objetivo de não empregar diretamente nenhum trabalhador. Essas
plataformas conseguiram minimizar sua dependência de obrigações legais para
garantir que os trabalhadores desempenhassem suas funções conforme o fluxo da
demanda por determinados serviços. Em parte, isso é alcançado por meio da
inovação tecnológica, incluindo monitoramento próximo e a incorporação dentro
de aplicativos de um sistema de classificação que transfere o poder arbitrário
sobre os trabalhadores dos gerentes para os consumidores. Em suma, a emergência
dessas novas modalidades de trabalho, além de ofuscar os vínculos de emprego e
complicar a organização sindical, implicou uma mudança de paradigma das
relações laborais não contemplada nos marcos tradicionais da regulação do
trabalho, provocando um vazio jurídico em termos de proteção.
Cabe ainda frisar que grande parte da
tendência de substituição do trabalho nas diversas economias não decorre da
inevitabilidade dos processos de automação, e sim das estratégias de
enxugamento dos custos trabalhistas das empresas, que não medem esforços para
terceirizar e permitir o trabalho digital. As grandes beneficiárias da
digitalização das economias políticas são as chamadas Big Techs. Assim, quanto mais
clientes/vendedores/compradores uma plataforma reúne, mais atraente ela se
torna, levando ao surgimento de monopólios digitais, cujo poder econômico é
cada vez mais refletido em influência política desproporcional. A ideia de
custos marginais zero que caracteriza o funcionamento dessas empresas significa
que uma vez que estas passam a superar os enormes custos para iniciar suas
operações (para se tornar uma plataforma predominante para venda de serviços,
por exemplo), sua expansão subsequente segue com poucos custos adicionais.
Facebook, Amazon e Uber são exemplos disso. Eventualmente, isso implica
economias de escala muito maiores na produção e novos níveis de desigualdade.
Ademais, a essência do capitalismo de plataforma, no qual se baseia o “modelo
de negócios” das Big Techs, é
vender previsões de comportamentos de compra. É importante salientar que essas
empresas adquiriram musculatura aproveitando-se das lacunas regulatórias
existentes na economia globalizada, burlando a legislação fiscal dos governos
nacionais e, em alguns casos, fechando acordos com esses governos para reduzir
seus compromissos tributários. A capacidade dos governos nacionais para
tributá-las tem sido muito limitada; e as implicações negativas para o
financiamento das políticas do Estado de Bem-Estar Social são evidentes.
·
Digitalização, individualização
da proteção e perda da capacidade de planejamento do Estado
Outra dimensão relevante a ser destacada
são os efeitos da digitalização das economias políticas para as políticas de
bem-estar social. Na área de educação, por exemplo, sistemas e fluxos de dados
interoperáveis e automatizados estão sendo implementados para
impulsionar uma série de mudanças nas práticas pedagógicas. As linhas de
produção de conhecimento entre as políticas públicas de educação e a gestão
escolar estão se tornando cada vez mais confusas, quando, por exemplo, dados de
sala de aula gerados por novas tecnologias digitais são reaproveitados para
definir as “melhores práticas” de aprendizagem. Em vez de simplesmente aumentar
a capacidade de resposta do sistema educacional a novas necessidades
emergentes, esses sistemas podem, a longo prazo, aumentar a dependência do
Estado em relação a produtos de hardware fornecidos
por atores com evidentes interesses comerciais.
Mercados de seguros de vida, previdência e
saúde também estão se utilizando das tecnologias digitais para criar
aplicativos de rastreamento remoto e compartilhar informações sobre o
comportamento dos indivíduos. As informações obtidas por meio desses canais
permitem que as empresas ofereçam planos de seguro direcionados
individualmente, com base em classificações detalhadas de risco. As gigantes
globais do setor de seguros, auxiliadas pela arquitetura algorítmica da rede
(fornecida pelas grandes Big Techs),
estão introduzindo apólices que calculam prêmios com base em dados coletados
por um “rastreador de atividades”, o qual é entregue a um segurado quando este
adquire um plano. Assim, indivíduos com riscos abaixo da média estão recebendo
incentivos financeiros para divulgarem informações pessoais e obterem prêmios
mais baratos. As grandes seguradoras, por sua vez, aproveitam-se dessas novas
tecnologias para aumentar sua eficiência e evitar os problemas de seleção
adversa, facilitando as opções de entrada de grupos com baixos riscos (e alto
potencial de pagamento) e de saída (expulsão) de grupos de alto risco. Cabe
destacar que o seguro social público surgiu não por razões de “eficiência”, e
sim para resolver problemas de coordenação relacionados ao compartilhamento
coletivo e solidário dos riscos. As implicações dessas novas tecnologias para
os sistemas de seguridade social não são nada desprezíveis; elas podem tornar
os sistemas públicos cada vez mais contestados ao ampliarem as alternativas
privadas e individuais de bem-estar, reduzindo assim a sensibilidade da
população aos riscos coletivos e à redistribuição.
Por fim, é necessário reconhecer os
interesses econômicos concorrentes e ambíguos que entraram no espaço digital do
Estado com as chamadas “estratégias de governo aberto”. A ausência de regulação
e controle dos governos permite que essas estratégias se transformem em
estímulos para alavancar empresas de tecnologia cujos interesses são
comercializar dados públicos e mercantilizar serviços sociais. As discussões
sobre a proteção pública de dados e a infraestrutura digital do Estado,
portanto, adquirem grande importância no atual cenário, visto que os riscos da
ausência de controle por parte dos governos são enormes e dizem respeito à
redução da informação para o setor público produzir políticas e, consequentemente,
à perda de capacidades estatais de planejamento e aprendizado em áreas
estratégicas da ação governamental.
Fonte:
Por Arnaldo Provasi Lanzara, em Outras Palavras
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