'Latinos são mais
felizes do que o esperado dada a riqueza de seus países'
Você conseguiria
avaliar sua própria felicidade nas últimas 24
horas, todas as noites? É o que fez o espanhol Alejandro Cencerrado por 20
anos. Ele começou preocupado com sua própria felicidade e, depois, passou a
estudar este sentimento como analista do Instituto da Felicidade de Copenhague,
na Dinamarca.
Cencerrado usou sua
formação metodológica, obtida com sua licenciatura em física, para classificar
a felicidade de cada um dos seus dias em uma escala de 0 a 10. Os intervalos
dentro desta pontuação permitiram que ele avaliasse melhor seu estado de
espírito. A partir desta experiência e dos seus estudos sobre a felicidade ao
longo dos anos, ele escreveu o livro En Defensa da la Infelicidad ("Em
defesa da infelicidade", em tradução livre), publicado em 2022. Nele, o
autor destaca as virtudes dos sentimentos negativos e fala sobre
a importância da autoestima no nosso dia a dia. Para Cencerrado, a solidão é o fator que mais
influencia o bem-estar individual e coletivo. Ele detalha suas conclusões na
entrevista abaixo, concedida à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.
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Leia a entrevista:
·
Por
que a felicidade é uma utopia?
Alejandro
Cencerrado - Porque, na nossa sociedade, nós interpretamos erroneamente a
infelicidade como algo negativo, uma falha do sistema, que o nosso direito
constitucional é de sermos felizes – e não é assim. Quando você analisa, todas
as emoções negativas (a vergonha, a culpa, a tristeza, a solidão) têm uma
função e a maioria delas é social. Elas nos ajudam a detectar quais amigos são
confiáveis e quais não são, quais parceiros são tóxicos e quais não são.
Elas nos ajudam a
nos conduzirmos no difícil mundo das relações sociais. Se não tivéssemos as
emoções negativas, se não existisse a infelicidade, ficaríamos muito perdidos. Nós
vivemos em meio a um mundo no qual só observamos a fotografia do melhor momento
daquela viagem, do melhor momento daquela festa. Isso afeta muito os idosos,
mas sobretudo os jovens. Eles pensam que são os únicos que não gostam quando se
veem no espelho, os únicos que se sentem sozinhos de vez em quando. É não é
assim. É muito importante para nós, como sociedade, pressionarmos na direção
contrária à das redes sociais, fazendo ver aos jovens que os restantes de nós
estamos perdidos, exatamente como eles.
·
Você
mencionou as redes sociais e, em uma parte do seu livro, você fala no culto ao
corpo, que é observado nas redes. Como isso influencia a felicidade das
pessoas?
Cencerrado
- No mundo moderno, sobretudo nos países ricos, a autoestima depende
principalmente de como as pessoas se observam. Existem pessoas gordas, outras
que poderíamos considerar feias, que saem um pouco do normal, e não têm
autoestima baixa. E existem pessoas que se encaixam nos padrões de beleza e têm
baixa autoestima. Ao pesquisar este tema, descobri que nossa autoestima
depende, é claro, das redes sociais e dos padrões de beleza um tanto
inatingíveis. Mas o fator que mais diferencia as pessoas que se consideram bem
fisicamente é o apoio emocional recebido dos pais. Isso é muito importante. Como
pais, precisamos perceber que o mais importante que podemos fazer pela
autoestima dos nossos filhos é oferecer apoio emocional, o que é muito
complicado.
Tenho dois filhos
e, apesar de tudo o que já li sobre o assunto, não sei muito bem por onde
preciso ir, pois dar apoio emocional aos seus filhos não é permitir que eles
façam tudo o que quiserem.
Acredito que nós,
pais de hoje em dia, melhoramos um pouco ao nos colocarmos no lugar dos nossos
filhos, oferecendo apoio quando eles estiverem bem, mas também quando estiverem
mal.
·
Qual
é o período fundamental que influencia nossa futura felicidade ou infelicidade?
Cencerrado - A
infância. Mas isso não significa que, depois de ter sido educado de uma forma,
você não possa mudar nada e será feliz ou infeliz para sempre.
Um passo muito
importante ao chegar à idade adulta é perceber o efeito que seus pais causaram
sobre a sua autoestima.
Sempre nos fica a
lembrança dos nossos pais como pessoas respeitáveis que detinham a verdade
absoluta. E perceber que eles também eram imperfeitos quando criaram você é o
primeiro passo para começar a desfazer todos aqueles nós que ficam na nossa
cabeça, depois de uma educação não muito avançada em termos de emoções.
Na maior parte dos
países, o gráfico que mostra a felicidade de acordo com a idade tem a forma de
"U".
Somos muito felizes
quando somos jovens. Quando chegamos aos 40 até os 50 anos, atingimos o ponto
mais baixo. Acredito que isso tenha muito a ver com a criação dos filhos, o
estresse do trabalho e tudo o mais. Depois, ela volta a subir quando nos
aposentamos.
·
Como avaliamos a felicidade?
Cencerrado
- Perguntando às pessoas, simplesmente isso. O que gera muitas dúvidas
porque é algo subjetivo.
É impossível saber
se, quando você coloca um 7, você está sentindo o mesmo que quando eu atribuo
nota 7. Mas, quando perguntamos a milhares de pessoas, chegamos a valores que
se repetem.
Isso me levou a
pensar que realmente existe algo de verdade nesta medida subjetiva, embora haja
pessoas que possam se confundir ou que nos enganem deliberadamente.
·
Para
cima ou para baixo?
Cencerrado
- Para cima, sempre para cima, especialmente na América Latina – onde, por
sinal, os índices de felicidade são geralmente superaltos.
Os
latino-americanos estão fora do que é estatisticamente normal, considerando a
riqueza dos seus países.
·
Por
que isso acontece?
Cencerrado
- Ainda não sabemos muito bem, mas existe um claro viés.
Na América Latina,
muitas pessoas colocam 10 na sua satisfação com a vida, em escala de 0 a 10.
Isso sai do normal porque as respostas geralmente seguem a curva de Gauss.
Provavelmente,
muitas pessoas tendem a exagerar como a sua vida vai bem.
Os
latino-americanos têm uma capacidade de se relacionar que não existe em outras
partes do mundo. É algo muito, muito próprio seu.
Esta é uma das
razões por que a economia vai mal porque, no fim das contas, quanto mais
próximas são as relações, maior a possibilidade de que o governo ou os chefes das
grandes instituições acabem contratando seus primos ou amigos.
Por fim, esta é a
fonte da corrupção, da desconfiança e de todo o mal que acontece em um país.
Mas o bom é que suas relações são muito, muito próximas.
·
Qual
é a relação entre riqueza e felicidade?
Cencerrado
- Se você não tiver o que comer, ter dinheiro para comer irá fazer você
feliz. Se você não tiver dinheiro para pagar os estudos do seu filho, ter
dinheiro para pagá-los irá fazer você feliz.
Agora, se estas
necessidades estiverem satisfeitas, mais dinheiro não irá fazer você mais
feliz.
De fato, chega um
momento em que a felicidade das pessoas que têm muito dinheiro começa a
diminuir. Os muito ricos são menos felizes do que os ricos.
Para chegar a este
nível de riqueza, você precisa ter desenvolvido uma certa obsessão por ser
rico, o que é muito negativo para a felicidade.
·
Por
que os países nórdicos estão normalmente em posição superior nas listas de
felicidade?
Cencerrado
- Nos países nórdicos, acontece exatamente o contrário da América Latina.
As pessoas são superfrias e é muito difícil fazer amigos.
Morei ali por nove
anos e me senti muito sozinho quase todo o tempo. É algo que também já foi
demonstrado.
Os estrangeiros que
viajam para os países nórdicos são os que dizem se sentir mais sozinhos, o que
contrasta muito com suas estatísticas sobre a felicidade.
O motivo por que
eles são tão felizes é porque têm um Estado de bem-estar muito forte, ao
contrário da América Latina. Existe muito pouca corrupção porque, como as
relações próximas não são tão fortes, as instituições são como uma grande
família.
As pessoas pagam
muitos impostos sem pensar 'por que vou pagar se os políticos vão roubar?'.
Isso faz com que não existam os bolsões de miséria que temos em outros países.
A América Latina e
a Espanha têm muito a aprender com eles.
·
Existem
diferentes tipos de felicidade?
Cencerrado
- Sim. Para mim, muitos anos atrás, ser feliz por um ano era ter 365 dias
felizes.
Com o tempo,
percebi que isso não é possível, pois a infelicidade é uma parte inevitável da
vida.
Daniel Kahneman
(1934-2024), vencedor do prêmio Nobel, pesquisou muito este tema. Ele falava
sobre essa dicotomia entre a felicidade vivida no momento e a felicidade
recordada ou cognitiva, que não se refere tanto às emoções, mas à cognição sobre
o que você pensa ser a sua vida.
O mesmo acontece
quando você sobe uma montanha. No final, vendo que você conseguiu, você pode se
sentir muito feliz, mesmo que a subida tenha sido um grande sacrifício.
·
Muitas
vezes, pensamos que poderíamos estar em um lugar melhor, com um parceiro melhor
ou em melhores situações e isso nos deixaria mais felizes. Você diz que não é
assim. Por quê?
Cencerrado
- Pude observar no meu diário que as épocas em que eu pensava que havia
sido muito feliz não foram assim. Nosso cérebro tende a nos sabotar e as
recordações costumam criar vieses.
Este viés nos leva
a pensar que, naquela cidade que deixamos para trás, éramos muito mais felizes.
Observei muito em
Copenhague espanhóis que voltaram para a Espanha e latino-americanos que
retornaram para a Venezuela ou para a Argentina porque pensavam que eram mais
felizes naqueles lugares, devido às recordações que eles traziam.
Depois, você chega
lá e vê que não era mais feliz. O motivo é que nós nos adaptamos a tudo.
Ao tomar decisões para
sermos felizes, nunca consideramos que, graças ao contraste com as partes
negativas, nós sabemos desfrutar das positivas. E, se você eliminar o contraste
na sua vida, se eliminar todos os incômodos, você deixa de desfrutar dos
prazeres.
Para isso, é preciso
passar pela infelicidade de vez em quando.
·
O
que você acredita ter aprendido com o seu método de avaliação do seu dia a dia?
Cencerrado
- Ter mais consciência das minhas próprias emoções. Quando algo está me
afetando, eu observo rapidamente.
Um dia, por
exemplo, eu estava abrindo a porta da minha casa, onde há um espelho. Eu vi meu
reflexo e me achei muito feio.
Comecei a pensar em
como eu me via feio e imaginar se a minha parceira iria gostar de me ver assim.
E, quando entrei em casa, estava totalmente repleto de emoções negativas, de
baixa autoestima.
Ter sentido isso
muitas vezes e refletido a respeito me ajudou a perceber rapidamente.
"Olhe, você entrou naquela espiral. Saia dela."
Ter um diário e
anotar sua felicidade ajuda muito a perceber quando estão surgindo estas
fagulhas e tentar impedi-las a tempo.
Isso é muito
importante com a parceira, porque você solta um comentário quase sem perceber
e, pouco a pouco, vai se exaltando. Até que chega um momento em que você não
sabe mais por que está irritado.
·
Você
comenta no livro que hoje temos quase tudo e como isso também influencia a
nossa felicidade, nossa autoestima.
Cencerrado
- Da mesma forma que uma criança, quando você dá a ela tantos brinquedos
que ela não dá mais valor, nossa sociedade está neste momento. Nós temos tanto
que não sabemos mais desfrutar disso.
·
Qual o papel do trabalho nas nossas vidas?
Cencerrado
- Nós interpretamos mal a felicidade gerada pelo trabalho, que viria
apenas do salário. E que, com um salário alto, todos os problemas se acabam.
Pouco a pouco, as
empresas foram compreendendo, de forma um tanto torpe, que o salário não é
tudo, mas que há também os chefes e seus colegas. Sentir-se integrado e
valorizado.
Um dos melhores
aprendizados que trouxe da Dinamarca é que as pessoas não criticam, não
criticam pelas costas, o que é algo muito espanhol e muito latino.
De fato, o laço que
une as amizades latinas e espanholas se baseia na crítica aos demais –
basicamente, em ter um inimigo comum e criticá-lo.
Quando eu dava
palestras, quando dava entrevistas, eu ficava muito nervoso. Estes nervos foram
se diluindo porque, de alguma forma, eu sabia inconscientemente que, se eu
cometesse erros, as pessoas não estariam me criticando.
Mas, na Espanha, é
muito diferente. Mesmo que você não se equivoque, as pessoas irão criticar.
·
Por
que você define a solidão como a grande fonte de felicidade e infelicidade?
Cencerrado - A
forma de sobreviver do ser humano não é a do mais rápido, nem do mais forte,
mas daquele que sabe se manter dentro da tribo.
Quando vivíamos em
tribos pequenas, ficar fora da tribo era a morte certa. E, quando alguém começa
a se sentir sozinho, isso significa que ele não tem os contatos necessários
para ficar dentro da tribo.
A solidão, em todos
os experimentos que realizamos, é sempre o fator que mais prejudica a
felicidade. É pior do que as doenças mais graves.
O Parkinson, por
exemplo, reduz a felicidade em 11%. O diabetes, em 7%. E a solidão, em 25%.
Se tratássemos a
solidão como doença, todos os nossos recursos deveriam ser dedicados a
reduzi-la.
Fonte: BBC News Mundo
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