Erradicar trabalho
infantil: Missão Impossível?
Erradicar o trabalho infantil, em todas as suas formas:
esse é o desafio do Brasil até o final deste ano de 2025 que se inicia.
Trata-se de um dos compromissos firmados há uma década, quando o país se tornou
signatário dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030,
um plano de ação da Organização das Nações Unidas (ONU) adotado por 193 países
em setembro de 2015.
Mas números recentes divulgados pela Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílio Contínua (Pnad Contínua) do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, apesar de o número de crianças e
adolescentes em situação de trabalho infantil ter voltado a cair em 2023 após
um crescimento durante a pandemia de covid-19, os dados ainda são preocupantes.
E, segundo as instituições brasileiras envolvidas nesse enfrentamento, tornam a
missão de acabar com o trabalho infantil até o final deste ano uma missão muito
difícil.
·
Objetivo ousado
Essa é uma das 169 metas distribuídas em 17 Objetivos
de Desenvolvimento Sustentável da ONU, que envolvem desde a erradicação da
pobreza e da fome até a garantia do acesso à Saúde e Educação, passando pela
proteção ao meio ambiente e o combate às mudanças climáticas e pela promoção do
trabalho decente, que é o oitavo objetivo. A meta 8.7 é a que cobra “medidas
imediatas e eficazes” para erradicar não só o trabalho infantil, mas também o
trabalho forçado, a escravidão moderna e o tráfico de pessoas. Para o trabalho
infantil, no entanto, foi estabelecido um prazo mais curto que para as demais
metas, que podem ser cumpridas até 2030. “É das poucas metas em que isso acontece.
Havia na época uma grande expectativa de que isso seria possível”, explica
Maria Claudia Falcão, coordenadora do Programa de Princípios e Direitos
Fundamentais do Trabalho da Organização Internacional do Trabalho (OIT). “Essa
meta é muito importante, especialmente nessa agenda global, em que pela
primeira vez aparece o tema do trabalho, ausente, por exemplo, dos Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio, do início dos anos 2000”, completa. Só que no meio
do caminho havia uma pandemia, diz ela. “Acabou dificultando o que já era
um grande desafio, em razão do aumento global do desemprego e o fechamento das
escolas, fatores que catalisam o trabalho infantil. Dificilmente o Brasil e o
mundo conseguirão alcançar essa meta em 2025”, lamenta a representante da OIT.
Na verdade, a organização identificou um aumento do trabalho infantil em nível
global: em 2021 havia 160 milhões de jovens entre 5 e 17 anos em situação de
trabalho infantil em todo o mundo, 8,4 milhões a mais do que os dados da
estimativa anterior produzida pela OIT, de 2016.
·
Retrocessos
No Brasil não foi diferente. Por aqui, a legislação
considera trabalho infantil aquele realizado por crianças e adolescentes abaixo
da idade mínima permitida pela Constituição Federal, que é de 16 anos, sendo
autorizado o trabalho de adolescentes a partir de 14 anos na condição de
aprendiz. No caso do trabalho noturno, perigoso, em condições insalubres ou em
atividades que constam da chamada lista TIP, as Piores Formas de Trabalho Infantil, a proibição se
estende aos 18 anos incompletos. O número de crianças e adolescentes em
situação de trabalho infantil no Brasil vinha caindo desde 1992, ano em que
bateu 7,8 milhões, de acordo com a Pnad.
Vinte e sete anos depois, esse número era de 1,76
milhão, uma redução de 77%. Com a crise sanitária provocada pela covid-19, os
números voltaram a crescer, chegando a 1,88 milhão em 2022, um aumento de 7%.
Uma em cada 20 pessoas entre 5 e 17 anos estavam em situação de trabalho
infantil no país ao fim da pandemia.
Luísa Rodrigues, procuradora e coordenadora nacional de
Combate ao Trabalho Infantil e de Promoção e Defesa dos Direitos de Crianças e
Adolescentes do Ministério Público do Trabalho (Coordinfância/MPT), argumenta
que, além da pandemia, o retrocesso também se deu devido a um desmonte de
estruturas que contribuíram para a queda na taxa de trabalho infantil ao longo
das últimas décadas, como a Conaeti, a Comissão Nacional de Erradicação do
Trabalho Infantil. Criada em 2003 com o objetivo de implementar as convenções
da OIT que tratam do trabalho infantil e coordenar a implementação do Plano
Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil, a comissão foi extinta pelo
decreto 9.759 em 2019, junto com dezenas de outros colegiados ligados à
administração pública federal, sendo recriada em 2020 por um decreto do então
presidente Jair Bolsonaro, que excluiu de sua composição entidades como o MPT e
a OIT. “Foi uma recriação ‘para inglês ver’”, critica Rodrigues. “Ela foi
recriada como uma comissão temática dentro do Conselho Nacional do Trabalho.
Não contava com a participação da sociedade civil, do sistema de justiça. Não
era autônoma nem democrática”, completa. Em 2023 a comissão voltou a contar com
representantes da sociedade civil, como o Fórum Nacional de Prevenção e
Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), e também do MPT e da OIT. “O Brasil
tem boas políticas públicas e espaços de diálogo para enfrentamento ao trabalho
infantil. Nem sempre são tidas como políticas de Estado, e com as mudanças de
governo sofrem retrocessos ou avanços, a depender da importância que se dá a
essa pauta”, pondera Rodrigues.
Movimentações recentes parecem indicar que a pauta
voltou a ganhar importância. No início de dezembro, o MTE foi à Itália
representar o governo brasileiro em uma reunião da OIT referente a uma campanha
lançada pela entidade para mobilizar esforços para o cumprimento da meta 8.7
dos ODS. A campanha inclui a seleção de “países pioneiros”, que se candidatam
voluntariamente para reforçar o compromisso com essa pauta em âmbito global.
Para serem aceitos, os países precisam submeter à OIT um plano de como acelerar
a erradicação do trabalho infantil, definindo prioridades e indicadores
nacionais para medir o progresso. “O Brasil foi aceito como pioneiro, e agora
tem que implementar o plano, monitorar e prestar contas anualmente”, explica
Maria Cláudia Falcão.
A assessoria do MTE informou à Poli que a Inspeção do
Trabalho, que capitaneia o combate ao trabalho infantil no ministério, vem
intensificando suas ações de fiscalização e planeja, para 2025, a retirada de
2.450 crianças e adolescentes de situações de trabalho infantil, a maior meta
dos últimos anos, segundo o órgão. Além disso, a Inspeção do Trabalho projeta
que, com a entrada, em 2025, dos novos Auditores Fiscais do Trabalho aprovados
no Concurso Nacional Unificado realizado em 2024, as Coordenações Regionais de
Fiscalização do Trabalho Infantil serão fortalecidas tanto na fiscalização
quanto na sensibilização para prevenção do trabalho infantil e articulação com
os demais órgãos envolvidos com essa agenda. O ministério também informou que,
a partir de 2025, o Grupo Especial Móvel de Combate ao Trabalho Infantil (GMTI)
da Inspeção do Trabalho passará a contar com equipes permanentes de Auditores
Fiscais do Trabalho, “para realizar, de forma periódica e em todo o território
nacional, operações em graves focos de trabalho infantil que apresentem maior
complexidade técnica, operacional, socioeconômica ou de articulação interinstitucional,
inclusive as que envolvam áreas geográficas isoladas e atividades classificadas
entre as piores formas de trabalho infantil”. Por fim, também estão previstas,
para 2025, no âmbito da Conaeti, coordenada pelo MTE por meio da Inspeção do Trabalho,
a conclusão e apresentação do 4º Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do
Trabalho Infantil e também dos Fluxos Nacionais de Atendimentos a Crianças e
Adolescentes Vítimas de Trabalho Infantil com explorador identificável, em
regime familiar e sem explorador identificável, além de um Fluxo Nacional de
Atendimento a Crianças e Adolescentes Vítimas de Exploração Sexual.
·
Números atuais
Dados da Pnad Contínua divulgados no final do ano
passado apontaram uma redução de 14,6% no número de crianças e adolescentes de
5 a 17 anos em situação de trabalho infantil no Brasil em 2023. Foram
identificados 1,607 milhões de crianças e adolescentes nessa situação naquele
ano (contra 1,881 milhão em 2022). Isso representa 4,2% da população total
entre 5 e 17 anos daquele momento (38,31 milhões). Quarenta e um por cento
delas realizavam atividades presentes na Lista das Piores Formas de Trabalho
Infantil (586 mil), uma queda de 22% em relação a 2022, quando 756 mil crianças
e adolescentes estavam nessa situação. O levantamento mostra ainda que a
redução em nível nacional não se deu de forma homogênea e linear. Em 22 dos 27
estados houve queda no trabalho infantil, indo de 51,6% no caso do Amapá e Rio
Grande do Norte para 6% no Maranhão. No Distrito Federal e em outros quatro
estados – Tocantins, Amazonas, Rio de Janeiro e Piauí – foi constatado um
aumento no período, chegando a 45% no Tocantins.
O maior contingente dos trabalhadores infantis estava
no Nordeste (506 mil pessoas), com Sudeste (478 mil), Norte (285 mil), Sul (193
mil) e Centro-Oeste (145 mil) vindo a seguir. O Norte tinha a maior proporção
de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil: 6,9% de sua
população de 5 a 17 anos de idade. O Centro-Oeste (4,6%) e Nordeste (4,5%)
também superavam a média nacional (4,2%), enquanto o Sudeste (3,3%) e o Sul
(3,8%) tinham as menores proporções.
Segundo a Pnad, quase dois terços desses jovens são
pretos e pardos (65,2%), acima do percentual de pretos e pardos na população
dessa faixa etária (59,3%). Quase metade dos casos de trabalho infantil se
deram no comércio e reparação de veículos (26,7%) e na agricultura, pecuária,
produção florestal, pesca e aquicultura (21,6%), com alojamento e alimentação
(12,6%), indústria geral (11,0%) e serviços domésticos (6,5%) vindo a seguir.
Desigualdades raciais e de gênero também podem ser constatadas entre os
trabalhadores infantis. O rendimento médio daqueles do sexo masculino era de R$
815, enquanto os do sexo feminino recebiam R$ 695. Entre os pretos ou pardos, o
rendimento médio era de R$ 707, aumentando para R$ 875 entre os brancos. Outro
dado da pesquisa mostra como o trabalho infantil afasta as crianças e
adolescentes da escola: enquanto 97,5% da população de 5 a 17 anos eram
estudantes em 2023, entre os trabalhadores infantis a taxa era menor, 88,4%. A
discrepância é maior entre as pessoas de 16 e 17 anos: 90% da população desse
grupo etário frequentava a escola, contra apenas 81,8% dos trabalhadores
infantis nesta faixa de idade.
·
Vácuos assistenciais e invisibilização
Katerina Volcov, secretária-executiva do FNPETI
– entidade que completou 30 anos em 2024, e que coordena a Rede Nacional
de Combate ao Trabalho Infantil – chama atenção para as enormes diferenças
regionais no Brasil, um grande desafio para a erradicação do trabalho infantil.
“Quem mora no eixo Brasília, Rio, São Paulo, acha que o Brasil é só isso, mas
não é. Tem muito de Norte, de Nordeste, de interior, de Centro-Oeste, onde tem
muito trabalho infantil doméstico super naturalizado. As meninas que saem do
Norte, do Nordeste, que vêm ao Sudeste ‘trabalhar’ em casas de família são um
exemplo. Muitas dessas mulheres hoje sendo resgatadas por trabalho análogo à
escravidão foram trabalhadoras infantis domésticas”, alerta Volcov. Ela cita
também a geografia amazônica como um complicador. “Um conselheiro tutelar que
recebe uma denúncia em Melgaço, no Pará [município com o pior IDH, o Índice de
Desenvolvimento Humano, do Brasil], depende de uma lancha. Ele vai levar às
vezes oito horas para chegar à comunidade onde teve a violação. Só que ele não
tem nem lancha nem diesel. Como é que faz para chegar?”, questiona. Segundo
ela, também acontece de eventuais denúncias serem negligenciadas por uma “falta
de política pública” que garanta que aquela criança não precise trabalhar. “Se
o menino trabalha na produção da farinha e eu o retiro de lá, que política
pública eu coloco no lugar para que ele não trabalhe e a família consiga ter
renda? Num lugar que não tem indústria, não tem uma rede de serviços, o que a
gente faz?É um problema sério”, diz. Ela lembra ainda que o Bolsa Família,
principal política pública de redistribuição de renda do país, paga às famílias
apenas R$ 50 para cada filho entre 7 e 18 anos incompletos, contra R$ 150 para
cada filho abaixo de 7 anos. “Vai fazer uma enorme diferença naquela família. E
a grande maioria das crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil
tem mais de 7 anos”, aponta Volcov.
Luisa Rodrigues, do MPT, vê a erradicação do trabalho
infantil como algo distante. “Precisamos fazer muita coisa”, afirma. Ela cobra,
por exemplo, uma maior destinação orçamentária a órgãos como a Auditoria Fiscal
do Trabalho, área do MTE que segundo ela vem sofrendo um processo de
“precarização há muito tempo”. O sindicato nacional que representa a categoria,
o Sinait, tem denunciado um déficit de auditores no país, que ficou de 2013 a
2024 sem que fossem realizados concursos públicos para o cargo. Ano passado foi
realizado um concurso com 900 vagas para Auditores Fiscais do Trabalho no
Concurso Público Nacional Unificado, também chamado de ‘Enem dos concursos’. O
déficit, no entanto, pode ser de mais de 3,5 mil desses profissionais. A OIT
recomenda um auditor a cada 20 mil pessoas economicamente ativas, o que
significa que no Brasil seriam necessários 5,4 mil profissionais dessa área
para uma população economicamente ativa de 108,8 milhões. O país conta
atualmente com 1,9 mil auditores em atividade. Luisa Rodrigues complementa: “A
gente precisa de uma lista suja do trabalho infantil, como existe no trabalho
escravo. A gente precisa do estímulo à aprendizagem profissional. São aspectos
importantes que precisamos fortalecer com prioridade”.
Apesar dos avanços nas últimas décadas, o trabalho
infantil ainda é amplamente subnotificado no país. É o que alerta Katerina
Volcov. Segundo ela, isso faz com que boa parte dos casos permaneça ausente das
estatísticas oficiais e invisível aos olhares da fiscalização e das políticas
de prevenção e acolhimento aos jovens em situação de trabalho infantil. Além da
“naturalização” do trabalho infantil doméstico, ela cita ainda o exemplo do
trabalho de crianças e adolescentes no tráfico de drogas, que consta da Lista
das Piores Formas de Trabalho Infantil da OIT ratificada pelo Brasil. “Mas isso
é tratado como ato infracional. E não aparece na Pnad. Só que a gente observa,
quando escuta esse adolescente, que ele tem regras, horário, responsabilidades
e atividades para cumprir. É trabalho infantil”, pontua a secretária-executiva
do FNPETI. “São adolescentes que estão ali ‘no corre’ para sobreviver. Às vezes
são até obrigados. E não é algo circunscrito ao Rio de Janeiro ou a São Paulo.
Tem isso no Norte, no Nordeste”, reforça. O problema é que o Estado brasileiro
não entende a prática como trabalho infantil, o que gera um vácuo assistencial
para essa população. “O adolescente que está numa atividade como essa vai ser
visto como autor de ato infracional, vai ser julgado e receber uma medida
socioeducativa. Recai sobre ele um julgamento injusto. É uma contradição do
nosso sistema”, afirma Volcov. À subnotificação e fiscalização deficitária se
soma ainda uma falta de investimentos em áreas sociais, de acordo com a
secretária-executiva do FNPETI. “Diante do quadro de controle dos gastos nas
áreas sociais [a partir do Novo Arcabouço Fiscal], me parece que a gente não
tem como contar muito com a Assistência Social. Na área de Educação, não estou
vendo construção de escolas em tempo integral nas localidades que mais têm
trabalho infantil, por exemplo. Não estou vendo investimentos na ampliação de
escolas rurais ou em políticas de geração de renda para as famílias mais
pobres. Então, é muito improvável falar em erradicação do trabalho infantil”,
conclui.
Fonte: Por André Antunes, na EPSJV/Fiocruz
Nenhum comentário:
Postar um comentário