CONSERVADORISMO:
J.D Vance e o reacionarismo
judicial
Os tabloides globais ecoam incessantemente: Trump
assume a presidência dos Estados Unidos. A democracia secular americana sofre
duras investidas, refletidas nos inúmeros decretos assinados por Donald Trump,
que afastam os EUA da comunidade internacional e impõem restrições rigorosas
aos direitos civis e coletivos: aumento tarifário do fluxo
comercial do Canadá e México; retirada dos EUA da OMS; deportações em massa de imigrantes
com uso recursivo da força militaresca; concessão de perdão
presidencial a mais de mil e quinhentos delinquentes do atentado ao Capitólio; desmantelamento de programas de
igualdade racial e de igualdade transgênero. A cascata de retrocessos não cessa
– e não cessará.
O foco destas medidas revogatórias é o projeto político
e administrativo de Biden, que sofrerá um sem-número de modificações. Com esse discurso, Trump
implementará uma agenda ainda mais reativa sobre direitos sob o pretexto de
estar purgando o Estado das medidas políticas “bidenianas”. Para os seus
olheiros ideológicos, a remoção dessa listagem de direitos seria aniquilar o
que resta da gestão de Biden. Para os críticos atentos, é bravata para projeto
reacionário.
Trump é um conservador reacionário de posicionamento
claro. Não havia qualquer dúvida de que ele implementaria uma agenda ainda mais
radical do que a de seu mandato anterior. Desde o início, os sinais indicavam
que os rumos da democracia americana apontavam para um futuro de erosão e
radicalização. Esse futuro, por sua vez, servirá de panteão para as direitas
globais se aglutinarem e fortalecerem suas redes a longo prazo.
No entanto, o ponto cego dessa discussão é que o
retorno triunfal de Trump não é apenas o regresso de um lobo solitário, mas um
retorno amplamente apadrinhado — que diz mais sobre as alianças que mantém do
que sobre sua própria identidade. A sobrevivência do trumpismo como um
movimento político resiliente só foi possível graças às redes subterrâneas de
intelectuais conservadores, que impulsionaram mobilizações na Suprema Corte dos
Estados Unidos (SCOTUS) e nas políticas congressionais.
Nesses interlinks, algum tributo parece ser prestado a
James David Vance, ex-senador e atual Vice-presidente de Trump, que é rosto
ascendente na política e figurinha repetida nas redes reacionárias
estadunidenses mais profundas. Para os críticos políticos estadunidenses, Vance
está repaginando o trumpismo desde o início da campanha eleitoral
do presidente.
Suas mobilizações foram tão polpudas que o trumpismo
passou a coabitar uma espécie de “conservadorismo combativo” radicalmente
violento: fake news sobre o devoro de cães por imigrantes;
racialização do debate imigratório por meio da panaceia nacionalista; críticas
à agenda de direitos sexuais e reprodutivos e outros, além do repertório
reacionário de defesa contra o globalismo e a revolução cultural. O projeto é
encarnar o conservadorismo combativo como principal canal do movimento Make
America Great Again (MAGA) – movimento do qual Vance é herdeiro.
Em dezembro de 2023, Vance participou de um evento
para o lançamento do livro Up
from Conservatism, obra em que defendia, com veemência, a revogação da
Lei dos Direitos Civis. Entre as propostas apresentadas, destacavam-se a
sugestão de que os políticos realizassem “investigações profundas sobre os
impactos do estilo de vida gay na sociedade”, o desfinanciamento do ensino
superior e dos programas de cuidado infantil, além da promoção, por parte de
governos conservadores, de indústrias predominantemente masculinas, com o objetivo
de desencorajar a presença feminina no mercado de trabalho.
A recepção de Vance foi celebrativa: “parabéns
por ser um livro tão bom”. Entre os colaboradores – dentro das redes
às quais Vance integrava – havia uma gama de autores pós-liberais que defendiam
uma ordem de Estado católica assomada a um Estado corporativo, cuja finalidade
era pôr termo ao descalabro restaurador e renovatório das forças políticas
progressistas. Para garantir a ordem desse novo comboio societário caberia à
Ordem Fraternal da Polícia assegurar a proteção do nacionalismo americano.
O atual Vice-presidente oferece uma nova centelha em
meio ao cenário já desgastado do estoque retórico de Trump, e há razões claras
para isso. O presidente serve como um canal corporativo e financeiro estratégico
para impulsionar ideias neoconservadoras. De acordo com Bourdieu[1], o capital
atua como um gatilho para projetos políticos e intelectuais dentro do campo que
o circunda. Seguindo essa lógica, enquanto Trump se mostra permeável a essas
ideologias para consolidar sua base governista, a ascensão de Vance marca o
início de um novo ciclo político, profundamente reacionário e influente, graças
ao acesso privilegiado a um regime político ideologicamente alinhado.
Quando essa dinâmica se globaliza, as forças em jogo
tornam-se mais evidentes e capazes de provocar transformações estruturais
significativas. Se o trumpismo é uma força política em constante reinvenção, é
essencial compreender a sua evolução. Antes de Trump, o trumpismo de Vance
representava algo diferente: um movimento mais globalizado e adaptado às novas
conjunturas.
·
Redes reacionárias globais?
O estudo etnográfico de Benjamin Teitelbaum[2] oferece
uma perspectiva privilegiada como observador interno do campo ideológico do
reacionarismo. Ao entrevistar Steve Bannon, uma figura central do
conservadorismo contemporâneo, Teitelbaum capta as impressões que Bannon nutria
sobre si mesmo e seus pares, que se viam como tradicionalistas. Essa
autopercepção é marcada pelo repúdio à modernidade e ao progressismo, ambos
considerados responsáveis pelo declínio da religião na esfera pública. A partir
disso, Bannon esboça uma visão da história moderna profundamente fatalista,
sombria e permeada por um pessimismo existencial.
Teitelbaum constrói seu relato tendo Steve Bannon como
figura central, a partir de quem se irradiam, em escala global, conexões com
diversas lideranças tradicionalistas. Personagens como Bannon, Aleksandr Dugin
e Olavo de Carvalho evitam se identificar como reacionários, preferindo
atribuir às suas ideias o rótulo de tradicionalistas. Quando essas ideias se traduzem
em ações práticas, assumem um tom combativo, funcionando como uma estratégia
para resistir e contornar mudanças culturais consideradas indesejáveis.
Um elemento central que une essas lideranças
intelectuais é o papel de sustentação ideológica que desempenha para governos
populistas de direita, oferecendo-lhes coerência e coesão como ferramentas para
mobilizar as massas e orientar ações institucionais. Essa estratégia
associativa revela que, por trás da aparente falácia do absurdismo e da
irracionalidade reacionária, há uma base muito mais intelectualizada do que
anti-intelectual. Além disso, evidencia como as redes globais de intelectuais
conservadores operam ativamente em defesa de uma suposta preservação da ordem
natural das coisas.
O argumento da globalização das redes conservadoras
parece pertinir ao tipo de política empreendida por J.D. Vance, uma vez mais
que ao entremear o discurso populista e conservador, possibilita que esses
ideais ingressem no repertório político de um movimento de massas.
No contexto dessa rede que projeta um conservadorismo
combativo em escala global, Vance encontra em Patrick
Deneen seu guru intelectual. Deneen, um destacado pensador católico, notabiliza-se
por sua sofisticação teórica, afastando-se do estereótipo simplista
frequentemente atribuído a conspiracionistas ligados a líderes populistas como
Viktor Orbán, na Hungria, ou Jair Bolsonaro, no Brasil.
Seu reconhecimento no campo conservador ganhou força em
2018, com o lançamento de Por que o liberalismo fracassou. Na
obra, Deneen analisa as contradições internas do liberalismo, sistema
ideológico que moldou o Ocidente desde a fundação dos Estados Unidos, em 1776.
O livro chamou a atenção de figuras como Barack Obama, que o incluiu entre as
leituras essenciais daquele ano, elogiando sua capacidade de provocar reflexões
e diagnosticar a desilusão da classe operária americana, que viu empregos e
valores tradicionais serem erodidos – fatores que contribuíram para a ascensão
de Trump à presidência em 2017.
Embora Obama tenha deixado claro seu desacordo com as
conclusões de Deneen, o autor propõe uma ruptura radical com a modernidade
globalizada. Ele defende o retorno a um sistema baseado em tradições religiosas
e no fortalecimento de comunidades locais, o chamado “localismo”, que, em sua
visão, seria uma resposta à fragmentação e ao caos promovidos pela
globalização.
Uma vez letrado por Deneen, o Vice-presidente
demonstrou ser um virtuoso estrategista intelectual, capaz de transitar de
crítico a aliado próximo de Trump enquanto ganhava notoriedade como analista da
decadência americana. Essa capacidade de adaptar ideias e narrativas,
selecionando-as conforme as demandas da conveniência política, tem se mostrado
uma ferramenta eficaz em seu arsenal político.
As transformações profundas que estão por vir são
inevitáveis e multifacetadas, impulsionadas pela dimensão intelectual que Vance
atribuiu ao novo trumpismo. Contudo, o conservadorismo combativo do
Vice-presidente não se limitou às bases intelectuais ou às conexões globais que
sustenta. Nesse cenário, a dimensão jurídica emergiu como um elemento
estratégico, reforçando a linguagem dos direitos e consolidando uma
legitimidade reacionária para esse novo ciclo político. Entre os arquitetos
desse caos, os juristas desempenham um papel central, utilizando a retórica do
constitucionalismo como uma ferramenta poderosa para moldar as novas diretrizes
do regime político trumpista e oferecer-lhe novas roupagens.
·
A nova linguagem do reacionarismo judicial
Há uma vasta literatura que denuncia as estratégias do
conservadorismo judicial estadunidense na mobilização do Direito[3]. Ann
Southworth[4], Stephen Teles[5] e Laura
Hatcher[6] escreveram
sobre as estratégias de contestação de profissionais do Direito afeitos ao
conservadorismo nos Estados Unidos. Seu repertório consiste em privilegiar a
mudança social ou a permanência do status quo através da (i)
remissão recursiva a outras ideologias como estoque argumentativo e a (ii) um
legalismo liberal preocupado em desenhar boas bases jurídicas para tanto.
Essas estratégias no campo da interpretação
constitucional são bem exploradas por Robin West[7], autor que
tensiona as tradições do constitucionalismo progressista e o conservador. As
digitais do constitucionalismo conservador impõem um desenho autocontido da
jurisdição constitucional e ferramentas originalistas na interpretação. Ocorre
que esse repertório jurídico, quando reimaginado a serviço do reacionarismo,
adquire uma forma limite responsável por nortear novos processos de mudança
regressiva nos direitos.
Obedecendo ao sistema ideológico do novo trumpismo
fundado por Vance, ao menos duas formas constitucionais são pensadas para
embasar a forma quimérica desse regime político que é a um só tempo corporativa
e reacionária: uma teoria constitucional de uma monarquia corporativa e/ou
constitucionalismo do bem comum altamente teocrático. As duas formas podem se
complementar ao mesmo ritmo que ocorrem autonomamente.
A teoria constitucional das monarquias corporativas,
associada à Idade Média e ao início da Modernidade, propõe que o poder político
não emana diretamente da vontade individual ou popular, mas sim das exigências
organizacionais impostas pelas corporações ou sociedades com fins específicos.
Essas corporações, ao desempenharem suas funções, estão moldadas por
finalidades que, segundo a teoria, são determinadas por uma ordem natural ou
divina, conhecida como Providência. Assim, o poder político se origina
indiretamente dessas finalidades organizacionais e diretamente das exigências
de funcionamento impostas por essas finalidades, refletindo uma visão de que o
poder e a organização social estão subordinados a uma ordem superior.
De maneira complementar, defensores do
constitucionalismo do bem comum[8], como Adrian
Vermeule, argumentam que a constituição de um Estado deve ser orientada por uma
visão teleológica do bem comum, entendido como o benefício coletivo da
sociedade em sua totalidade, de sobremodo que ela garanta a governabilidade no
lugar de proteger a liberdade como um fim em si mesma. Para Vermeule, a
constituição não deve se limitar a ser uma estrutura neutra que apenas organiza
o jogo político e protege os direitos dos cidadãos, mas deve estar ativamente
comprometida com uma noção de bem-estar coletivo. Trocando em miúdos,
pretensamente combate a legítima ameaça social do individualismo liberal
moderno e reintroduz o bem comum espiritual em nosso discurso político e
jurídico.
A constituição e as instituições políticas devem ser
lidas como instrumentos voltados à concretização do bem comum quando cotejadas
com princípios da ordem natural, que abrange não apenas o bem material, mas
também o moral, cultural e espiritual da comunidade. Isso se distancia
radicalmente de uma concepção secularizada e pluralista de Estado, sugerindo
que os valores tradicionais e as virtudes cívicas — como a moral cristã, em
determinados contextos — devem influenciar a interpretação constitucional e as
decisões políticas. O princípio fundamental é que o direito e a constituição
devem atuar como ferramentas para promover o bem coletivo e o florescimento
moral e social da comunidade.
A combinação desses dois elementos, um corporativismo
autoritário assomada a um reacionarismo constitucional pautado numa ordem
teocrática metafísica, atribui forma jurídica às ideias reacionárias difundidas
nas redes tradicionalistas globais. A primeira porque o governo de Trump
alcançará um mercantilismo autoritário radical fortemente societal; a segunda
porque, para adequar a sociedade à moldura dos bons costumes e combater o
progressismo judicial criativo, precisará justificar o retrocesso nas barreiras
da própria ordem natural à qual deverá estar filiado o constitucionalismo. O
novo trumpismo renovado por Vance orientará jurídica e ideologicamente o
governo nesse sentido de direitos.
Os ares da democracia estadunidense, que não eram tão
impolutos, sopram no sentido de direitos cada vez mais contrarrevolucionários e
estáticos. Talvez o argumento lançado por Ruti G. Teitel, constitucionalista
norte-americana, em 1993 sobre a potencial identidade reacionária da
Constituição dos EUA tenha alguma margem de verdade nesse cenário apocalíptico.
Em uma cena na qual a abordagem culturalista dos reacionários compreende que
Constituição, linguagem de direitos e ideologia conservadora precisam ter
alguma circularidade, a interpretação da Constituição pertence à identidade
cultural desse projeto de nação, na mesma medida em que essa nação entende
democracia como uma homogeneidade fortemente nacionalista e majoritária. A
mudança jurídica e constitucional ali sempre esteve pertencente a essa
circularidade, o problema é que os reacionários apropriaram-se intelectualmente
disso antes do triunfo democrata. E Vance será o responsável por instruir Trump
com poder de fogo total.
Fonte: Por Gabriel
de Moraes, no Le Monde
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