sábado, 25 de janeiro de 2025

CONSERVADORISMO: J.D Vance e o reacionarismo judicial

Os tabloides globais ecoam incessantemente: Trump assume a presidência dos Estados Unidos. A democracia secular americana sofre duras investidas, refletidas nos inúmeros decretos assinados por Donald Trump, que afastam os EUA da comunidade internacional e impõem restrições rigorosas aos direitos civis e coletivos: aumento tarifário do fluxo comercial do Canadá e Méxicoretirada dos EUA da OMS;  deportações em massa de imigrantes com uso recursivo da força militarescaconcessão de perdão presidencial a mais de mil e quinhentos delinquentes do atentado ao Capitóliodesmantelamento de programas de igualdade racial e de igualdade transgênero. A cascata de retrocessos não cessa – e não cessará.

O foco destas medidas revogatórias é o projeto político e administrativo de Biden, que sofrerá um sem-número de modificações. Com esse discurso, Trump implementará uma agenda ainda mais reativa sobre direitos sob o pretexto de estar purgando o Estado das medidas políticas “bidenianas”. Para os seus olheiros ideológicos, a remoção dessa listagem de direitos seria aniquilar o que resta da gestão de Biden. Para os críticos atentos, é bravata para projeto reacionário.

Trump é um conservador reacionário de posicionamento claro. Não havia qualquer dúvida de que ele implementaria uma agenda ainda mais radical do que a de seu mandato anterior. Desde o início, os sinais indicavam que os rumos da democracia americana apontavam para um futuro de erosão e radicalização. Esse futuro, por sua vez, servirá de panteão para as direitas globais se aglutinarem e fortalecerem suas redes a longo prazo.

No entanto, o ponto cego dessa discussão é que o retorno triunfal de Trump não é apenas o regresso de um lobo solitário, mas um retorno amplamente apadrinhado — que diz mais sobre as alianças que mantém do que sobre sua própria identidade. A sobrevivência do trumpismo como um movimento político resiliente só foi possível graças às redes subterrâneas de intelectuais conservadores, que impulsionaram mobilizações na Suprema Corte dos Estados Unidos (SCOTUS) e nas políticas congressionais.

Nesses interlinks, algum tributo parece ser prestado a James David Vance, ex-senador e atual Vice-presidente de Trump, que é rosto ascendente na política e figurinha repetida nas redes reacionárias estadunidenses mais profundas. Para os críticos políticos estadunidenses, Vance está repaginando o trumpismo desde o início da campanha eleitoral do presidente.

Suas mobilizações foram tão polpudas que o trumpismo passou a coabitar uma espécie de “conservadorismo combativo” radicalmente violento: fake news sobre o devoro de cães por imigrantes; racialização do debate imigratório por meio da panaceia nacionalista; críticas à agenda de direitos sexuais e reprodutivos e outros, além do repertório reacionário de defesa contra o globalismo e a revolução cultural. O projeto é encarnar o conservadorismo combativo como principal canal do movimento Make America Great Again (MAGA) – movimento do qual Vance é herdeiro.

Em dezembro de 2023, Vance participou de um evento para o lançamento do livro Up from Conservatism, obra em que defendia, com veemência, a revogação da Lei dos Direitos Civis. Entre as propostas apresentadas, destacavam-se a sugestão de que os políticos realizassem “investigações profundas sobre os impactos do estilo de vida gay na sociedade”, o desfinanciamento do ensino superior e dos programas de cuidado infantil, além da promoção, por parte de governos conservadores, de indústrias predominantemente masculinas, com o objetivo de desencorajar a presença feminina no mercado de trabalho.

A recepção de Vance foi celebrativa: “parabéns por ser um livro tão bom”. Entre os colaboradores – dentro das redes às quais Vance integrava – havia uma gama de autores pós-liberais que defendiam uma ordem de Estado católica assomada a um Estado corporativo, cuja finalidade era pôr termo ao descalabro restaurador e renovatório das forças políticas progressistas. Para garantir a ordem desse novo comboio societário caberia à Ordem Fraternal da Polícia assegurar a proteção do nacionalismo americano.

O atual Vice-presidente oferece uma nova centelha em meio ao cenário já desgastado do estoque retórico de Trump, e há razões claras para isso. O presidente serve como um canal corporativo e financeiro estratégico para impulsionar ideias neoconservadoras. De acordo com Bourdieu[1], o capital atua como um gatilho para projetos políticos e intelectuais dentro do campo que o circunda. Seguindo essa lógica, enquanto Trump se mostra permeável a essas ideologias para consolidar sua base governista, a ascensão de Vance marca o início de um novo ciclo político, profundamente reacionário e influente, graças ao acesso privilegiado a um regime político ideologicamente alinhado.

Quando essa dinâmica se globaliza, as forças em jogo tornam-se mais evidentes e capazes de provocar transformações estruturais significativas. Se o trumpismo é uma força política em constante reinvenção, é essencial compreender a sua evolução. Antes de Trump, o trumpismo de Vance representava algo diferente: um movimento mais globalizado e adaptado às novas conjunturas.

·        Redes reacionárias globais?

O estudo etnográfico de Benjamin Teitelbaum[2] oferece uma perspectiva privilegiada como observador interno do campo ideológico do reacionarismo. Ao entrevistar Steve Bannon, uma figura central do conservadorismo contemporâneo, Teitelbaum capta as impressões que Bannon nutria sobre si mesmo e seus pares, que se viam como tradicionalistas. Essa autopercepção é marcada pelo repúdio à modernidade e ao progressismo, ambos considerados responsáveis pelo declínio da religião na esfera pública. A partir disso, Bannon esboça uma visão da história moderna profundamente fatalista, sombria e permeada por um pessimismo existencial.

Teitelbaum constrói seu relato tendo Steve Bannon como figura central, a partir de quem se irradiam, em escala global, conexões com diversas lideranças tradicionalistas. Personagens como Bannon, Aleksandr Dugin e Olavo de Carvalho evitam se identificar como reacionários, preferindo atribuir às suas ideias o rótulo de tradicionalistas. Quando essas ideias se traduzem em ações práticas, assumem um tom combativo, funcionando como uma estratégia para resistir e contornar mudanças culturais consideradas indesejáveis.

Um elemento central que une essas lideranças intelectuais é o papel de sustentação ideológica que desempenha para governos populistas de direita, oferecendo-lhes coerência e coesão como ferramentas para mobilizar as massas e orientar ações institucionais. Essa estratégia associativa revela que, por trás da aparente falácia do absurdismo e da irracionalidade reacionária, há uma base muito mais intelectualizada do que anti-intelectual. Além disso, evidencia como as redes globais de intelectuais conservadores operam ativamente em defesa de uma suposta preservação da ordem natural das coisas.

O argumento da globalização das redes conservadoras parece pertinir ao tipo de política empreendida por J.D. Vance, uma vez mais que ao entremear o discurso populista e conservador, possibilita que esses ideais ingressem no repertório político de um movimento de massas.

No contexto dessa rede que projeta um conservadorismo combativo em escala global, Vance encontra em Patrick Deneen seu guru intelectual. Deneen, um destacado pensador católico, notabiliza-se por sua sofisticação teórica, afastando-se do estereótipo simplista frequentemente atribuído a conspiracionistas ligados a líderes populistas como Viktor Orbán, na Hungria, ou Jair Bolsonaro, no Brasil.

Seu reconhecimento no campo conservador ganhou força em 2018, com o lançamento de Por que o liberalismo fracassou. Na obra, Deneen analisa as contradições internas do liberalismo, sistema ideológico que moldou o Ocidente desde a fundação dos Estados Unidos, em 1776. O livro chamou a atenção de figuras como Barack Obama, que o incluiu entre as leituras essenciais daquele ano, elogiando sua capacidade de provocar reflexões e diagnosticar a desilusão da classe operária americana, que viu empregos e valores tradicionais serem erodidos – fatores que contribuíram para a ascensão de Trump à presidência em 2017.

Embora Obama tenha deixado claro seu desacordo com as conclusões de Deneen, o autor propõe uma ruptura radical com a modernidade globalizada. Ele defende o retorno a um sistema baseado em tradições religiosas e no fortalecimento de comunidades locais, o chamado “localismo”, que, em sua visão, seria uma resposta à fragmentação e ao caos promovidos pela globalização.

Uma vez letrado por Deneen, o Vice-presidente demonstrou ser um virtuoso estrategista intelectual, capaz de transitar de crítico a aliado próximo de Trump enquanto ganhava notoriedade como analista da decadência americana. Essa capacidade de adaptar ideias e narrativas, selecionando-as conforme as demandas da conveniência política, tem se mostrado uma ferramenta eficaz em seu arsenal político.

As transformações profundas que estão por vir são inevitáveis e multifacetadas, impulsionadas pela dimensão intelectual que Vance atribuiu ao novo trumpismo. Contudo, o conservadorismo combativo do Vice-presidente não se limitou às bases intelectuais ou às conexões globais que sustenta. Nesse cenário, a dimensão jurídica emergiu como um elemento estratégico, reforçando a linguagem dos direitos e consolidando uma legitimidade reacionária para esse novo ciclo político. Entre os arquitetos desse caos, os juristas desempenham um papel central, utilizando a retórica do constitucionalismo como uma ferramenta poderosa para moldar as novas diretrizes do regime político trumpista e oferecer-lhe novas roupagens.

·        A nova linguagem do reacionarismo judicial

Há uma vasta literatura que denuncia as estratégias do conservadorismo judicial estadunidense na mobilização do Direito[3]. Ann Southworth[4], Stephen Teles[5] e Laura Hatcher[6] escreveram sobre as estratégias de contestação de profissionais do Direito afeitos ao conservadorismo nos Estados Unidos. Seu repertório consiste em privilegiar a mudança social ou a permanência do status quo através da (i) remissão recursiva a outras ideologias como estoque argumentativo e a (ii) um legalismo liberal preocupado em desenhar boas bases jurídicas para tanto.

Essas estratégias no campo da interpretação constitucional são bem exploradas por Robin West[7], autor que tensiona as tradições do constitucionalismo progressista e o conservador. As digitais do constitucionalismo conservador impõem um desenho autocontido da jurisdição constitucional e ferramentas originalistas na interpretação. Ocorre que esse repertório jurídico, quando reimaginado a serviço do reacionarismo, adquire uma forma limite responsável por nortear novos processos de mudança regressiva nos direitos.

Obedecendo ao sistema ideológico do novo trumpismo fundado por Vance, ao menos duas formas constitucionais são pensadas para embasar a forma quimérica desse regime político que é a um só tempo corporativa e reacionária: uma teoria constitucional de uma monarquia corporativa e/ou constitucionalismo do bem comum altamente teocrático. As duas formas podem se complementar ao mesmo ritmo que ocorrem autonomamente.

A teoria constitucional das monarquias corporativas, associada à Idade Média e ao início da Modernidade, propõe que o poder político não emana diretamente da vontade individual ou popular, mas sim das exigências organizacionais impostas pelas corporações ou sociedades com fins específicos. Essas corporações, ao desempenharem suas funções, estão moldadas por finalidades que, segundo a teoria, são determinadas por uma ordem natural ou divina, conhecida como Providência. Assim, o poder político se origina indiretamente dessas finalidades organizacionais e diretamente das exigências de funcionamento impostas por essas finalidades, refletindo uma visão de que o poder e a organização social estão subordinados a uma ordem superior.

De maneira complementar, defensores do constitucionalismo do bem comum[8], como Adrian Vermeule, argumentam que a constituição de um Estado deve ser orientada por uma visão teleológica do bem comum, entendido como o benefício coletivo da sociedade em sua totalidade, de sobremodo que ela garanta a governabilidade no lugar de proteger a liberdade como um fim em si mesma. Para Vermeule, a constituição não deve se limitar a ser uma estrutura neutra que apenas organiza o jogo político e protege os direitos dos cidadãos, mas deve estar ativamente comprometida com uma noção de bem-estar coletivo. Trocando em miúdos, pretensamente combate a legítima ameaça social do individualismo liberal moderno e reintroduz o bem comum espiritual em nosso discurso político e jurídico.

A constituição e as instituições políticas devem ser lidas como instrumentos voltados à concretização do bem comum quando cotejadas com princípios da ordem natural, que abrange não apenas o bem material, mas também o moral, cultural e espiritual da comunidade. Isso se distancia radicalmente de uma concepção secularizada e pluralista de Estado, sugerindo que os valores tradicionais e as virtudes cívicas — como a moral cristã, em determinados contextos — devem influenciar a interpretação constitucional e as decisões políticas. O princípio fundamental é que o direito e a constituição devem atuar como ferramentas para promover o bem coletivo e o florescimento moral e social da comunidade.

A combinação desses dois elementos, um corporativismo autoritário assomada a um reacionarismo constitucional pautado numa ordem teocrática metafísica, atribui forma jurídica às ideias reacionárias difundidas nas redes tradicionalistas globais. A primeira porque o governo de Trump alcançará um mercantilismo autoritário radical fortemente societal; a segunda porque, para adequar a sociedade à moldura dos bons costumes e combater o progressismo judicial criativo, precisará justificar o retrocesso nas barreiras da própria ordem natural à qual deverá estar filiado o constitucionalismo. O novo trumpismo renovado por Vance orientará jurídica e ideologicamente o governo nesse sentido de direitos.

Os ares da democracia estadunidense, que não eram tão impolutos, sopram no sentido de direitos cada vez mais contrarrevolucionários e estáticos. Talvez o argumento lançado por Ruti G. Teitel, constitucionalista norte-americana, em 1993 sobre a potencial identidade reacionária da Constituição dos EUA tenha alguma margem de verdade nesse cenário apocalíptico. Em uma cena na qual a abordagem culturalista dos reacionários compreende que Constituição, linguagem de direitos e ideologia conservadora precisam ter alguma circularidade, a interpretação da Constituição pertence à identidade cultural desse projeto de nação, na mesma medida em que essa nação entende democracia como uma homogeneidade fortemente nacionalista e majoritária. A mudança jurídica e constitucional ali sempre esteve pertencente a essa circularidade, o problema é que os reacionários apropriaram-se intelectualmente disso antes do triunfo democrata. E Vance será o responsável por instruir Trump com poder de fogo total.

 

Fonte: Por Gabriel de Moraes, no Le Monde

 

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