Games
e Bets - entenda a diferença e os impactos na saúde mental
O maior surto
epidemiológico dos últimos 100 anos, a pandemia de COVID-19 trouxe efeitos que
vão muito além dos já conhecidos. O enorme impacto na economia e a perda de
mais de 700 mil vidas em solo brasileiro (segundo os dados oficiais do governo)
são a parte visível de uma profunda mudança que impactou diversos setores da
sociedade, dentre os quais o consumo de produtos digitais.
A Associação Brasileira
de Comércio Eletrônico (ABCom) relatou aumento de vendas de mais de 50% naquele
período. O mercado de consumo de jogos eletrônicos cresceu 140% no Brasil,
segundo estudo publicado pela operadora de cartões Visa. Com mais tempo
(necessariamente) em casa, as pessoas passaram a estar mais online, como
revelou a Pesquisa sobre o uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nos
domicílios brasileiros (TIC Domicílios). E isso não veio, necessariamente, só
para o bem.
O excesso de tempo
online foi observado por uma série de agentes. A Organização Pan-Americana de
Saúde fala em uma explosão de casos de ansiedade e depressão. A Universidade de
São Paulo (USP) publicou pesquisa demonstrando que os brasileiros passam mais
da metade do dia em frente aos computadores e redes sociais.
Não bastassem dados
como estes, casos extremos tem tomado os noticiários. Crianças que gastam
dezenas de milhares de reais em jogos eletrônicos nos cartões de crédito que
seus pais cadastram nos jogos e a avalanche de jogos de aposta, bets e afins
que tem se alastrado pela mídia, contratando inclusive influenciadores mirins,
causando prejuízos à economia brasileira como um todo tem chamado atenção para
o comportamento online e os mecanismo de estímulo utilizados por essas
plataformas.
No entanto, é
fundamental não confundir as coisas. Jogos eletrônicos (videogames) são uma
coisa. Bets, apostas e afins, outra coisa completamente distinta, ainda que
atores deste segmento tenham tentando se imiscuir na lei que definiu o Marco
Legal dos Games (lei federal 14852/2024). Como diz a lei:
Art. 5º Para os efeitos
desta Lei, considera-se jogo eletrônico:
I – a obra audiovisual
interativa desenvolvida como programa de computador, conforme definido na Lei
nº 9.609, de 19 de fevereiro de 1998, em que as imagens são alteradas em tempo
real a partir de ações e interações do jogador com a interface;
II – o dispositivo
central e acessórios, para uso privado ou comercial, especialmente dedicados a
executar jogos eletrônicos;
III – o software para
uso como aplicativo de celular e/ou página de internet, jogos de console de
videogames e jogos em realidade virtual, realidade aumentada, realidade mista e
realidade estendida, consumidos por download ou por streaming.
Parágrafo único. As
promoções comerciais ou as modalidades lotéricas regulamentadas pelas Leis nºs
13.756, de 12 de dezembro de 2018, e 14.790, de 29 de dezembro de 2023, ou
qualquer tipo de jogo que ofereça algum tipo de aposta, com prêmios em ativos
reais ou virtuais, ou que envolva resultado aleatório ou de prognóstico, não
são considerados jogo eletrônico, vedado às empresas e aos profissionais
envolvidos na produção ou na distribuição dessas atividades beneficiar-se de
alguma vantagem definida nesta Lei.
Entendidas como coisas
diferentes, é fundamental portanto tratarmos destas coisas com medidas que
também sejam distintas entre si. Destarte, não confundir jogo do tigrinho com
Super Mario ou qualquer outra personagem famosa por ser controlada no apertar
de botões de um controle.
A menção ao Marco Legal
dos Games, aliás, é reveladora das intenções e da funcionalidade do setor de
jogos eletrônicos do país. No mesmo dispositivo legal há claro regramento sobre
a responsabilidade dos fornecedores de jogos eletrônicos que atuem em
território nacional em não fornecerem coisas que possam ir contra o “superior
interesse de crianças e adolescentes” (art. 15), bem como gera a obrigação da
chamada “transparência social” (art. 16) para que possamos acompanhar os
efeitos desse uso entre crianças e adolescentes, especialmente.
Aliás, é mesmo sobre
acompanhar os efeitos de jogos que devemos falar quando pensamos na relação
entre videogames e saúde. Enquanto as bets e outros tipos de apostas (que não
são videogames / jogos eletrônicos, vale reforçar) seguem demonstrando enorme potencial
destrutivo, o que temos visto com os jogos eletrônicos é justamente o oposto.
Um estudo publicado na
Nature Human Behaviour sugere que jogar videogames pode melhorar a saúde mental
e aumentar os níveis de satisfação com a vida, após acompanhar mais de 100 mil
pessoas no Japão durante dois anos, tendo revelado que possuir e jogar consoles
como o Nintendo Switch e o PlayStation 5 reduziu o estresse psicológico.
Aqui mesmo no Brasil há
várias pesquisas publicadas relatando os efeitos positivos no uso moderado de
jogos eletrônicos. Uma pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) revelou que jogos digitais podem melhorar, de forma significativa, a
cognição em idosos brasileiros, com efeitos que perduram por muitos meses mesmo
após parar de jogar.
Até mesmo o combate à
ansiedade pode contar com os games como aliados quando eles são usados de
maneira responsável. Foi o que revelou um experimento que comparou os
resultados de jogar o popular “Plants vs. Zombies” com o uso de medicamentos em
pessoas com ansiedade, que apontou que aqueles que se dedicaram ao jogo por
pelo menos meia hora por sessão, quatro vezes por semana, experimentaram
melhorias significativas na saúde mental em comparação aos que seguiram o
tratamento convencional com remédios.
Por óbvio, não se trata
de uma panaceia: jogos eletrônicos usados em excesso podem causar desde o
aumento da obesidade e sedentarismo até problemas psicológicos graves - havendo
até mesmo um código próprio para este tipo de doença na OMS.
A sociedade precisa
tomar uma série de cuidados para evitar que os padrões que geram prazer e
engajamento no universo dos jogos eletrônicos não sejam usados para criação de
padrões sombrios em ambientes que pretendem gerar vício e compulsão. Precisamos
estar atentos à ética e a valores que nos façam pensar no ser humano que usa
nossas ferramentas, mais do que em tirar recursos de um consumidor fazendo com
que ele clique sem saber nem bem porque está clicando, apenas direcionado por
estímulos gerados por manipulação de gatilhos mentais / comportamentais.
Nesse jogo há vilões e
mocinhos, mas muitas vezes os vilões se disfarçam de mocinhos para enganar toda
a sociedade. É bom ficarmos de olho para não dar em game over.
¨ As redes sociais afetam o seu cérebro; entenda como
Diversas pesquisas
já apontaram que a utilização das redes sociais estimula a produção
de dopamina, neurotransmissor responsável por sentimentos de
recompensa e realização. É ela a responsável por criar uma sensação de prazer
que faz com que as pessoas retornem às plataformas para buscar ter mais
uma vez a mesma sensação. Porém, estudos em andamento apontam que a
dependência dessas "novas doses" pode levar a mudanças duradouras no
cérebro.
Uma equipe de
pesquisadores da London Southbank University está investigando quais
regiões e conexões cerebrais mudam devido ao maior engajamento nas mídias
sociais.
"Usar mídias
sociais ativa as mesmas partes do seu cérebro que outros vícios, como drogas,
álcool e jogos de azar. Cientistas descobriram que toda vez que você
recebe uma notificação, um 'curtir' ou até mesmo assiste a um vídeo que
você gosta, o sistema de recompensa do seu cérebro (o nucleus accumbens) é
ativado. Este é o mesmo sistema que faz as pessoas sentirem prazer quando
ganham dinheiro ou comem seu lanche favorito", explica a
professora em Neurociências e Neurorreabilitação da universidade londrina,
Laura Elin Pigott, no The Conversation.
·
Cérebro
'podado'
Um dos fatores que
faz com que as redes sociais sejam tão viciantes é que o cérebro
começa a "podar" neurônios. Como explica a professora, é como
cortar galhos extras em uma árvore para tornar o “caminho de recompensa”
mais rápido.
"Isso parece
eficiente, mas não é ótimo. O caminho mais curto significa que seu cérebro pode
'sentir' recompensas mais rápido, mas sabemos por pesquisas que isso
também pode torná-lo mais impulsivo e menos capaz de parar de rolar a tela. Com
o tempo, essa poda pode diminuir o tamanho de certas áreas do cérebro, como a
amígdala e o núcleo accumbens, que são essenciais para controlar as
emoções e tomar decisões", diz Pigott.
A amígdala possui
funções variadas, e a principal, segundo pesquisadores, é relacionada às
emoções de medo e fuga, além de processamento de informações olfatórias e
controle do comportamento sexual. Já o núcleo accumbens tem
funções emocionais, motivacionais e psicomotoras.
·
Efeitos
na saúde mental
Diversos
estudos mostram que usuários que passam muito tempo nas redes sociais têm
mais probabilidade de se sentirem estressados, ansiosos ou até mesmo
deprimidos, já que estas mídias são projetadas para fazer a
pessoa buscar validação de outras.
"A mídia
social é projetada para mantê-lo fisgado, assim como jogar ou beber. Cada notificação,
curtida e comentário ativa dopamina, tornando mais difícil parar", detalha
Pigott, ressaltando que as pessoas são estimuladas a escolherem a
recompensa imediata (rolagem de postagens) em vez de algo importante, como
estudar, dormir ou até mesmo sair com amigos na vida real.
O próximo passo na
pesquisa é aprofundar os estudos sobre como as mídias sociais interrompem
a “rede de modo padrão” (DMN, Default Mode Network) que reflete
o estado do cérebro durante o repouso, em um ambiente livre de tarefas. "Usando
EEG (um método que rastreia a atividade cerebral), minha equipe e eu estamos
examinando se o uso pesado de mídia social interfere nessa rede", diz a
professora.
"Por que isso
importa? O DMN desempenha um grande papel em como processamos nosso senso de
identidade, tomamos decisões e até mesmo regulamos nossas emoções. Se for
interrompido, pode explicar por que alguns usuários de mídia social lutam com
atenção, controle emocional e manutenção de hábitos mentais saudáveis",
pontua.
Fonte: Márcio Filho,
em Fórum
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