Mulheres
eram forçadas a engravidar em fazendas de reprodução de escravizados
Um dos aspectos menos
conhecidos da escravidão no Brasil é também um de seus lados mais sombrios: a
reprodução sistemática de pessoas escravizadas. Mulheres eram forçadas a
engravidar continuamente, enquanto homens (os mais fortes e saudáveis) eram
colocados na posição de “reprodutores”. Os bebês ficavam pouco tempo com a mãe
e logo eram negociados pelos senhores de escravos como mercadoria. Exatamente
como funciona hoje uma fazenda de criação de gado.
O tema é pouco conhecido no
país porque não há muitos documentos históricos – em parte por causa da destruição de arquivos ligados à escravidão no fim do regime, e em outra medida por ser uma atividade ilegal,
feita às escondidas. As informações que se tem sobre o assunto baseiam-se
principalmente em relatos orais e no que sobrou de censos e controles de
natalidade das fazendas.
O pesquisador e jornalista
Laurentino Gomes, autor de uma trilogia de livros sobre a escravidão
brasileira, encontrou ao menos duas fazendas que serviam como espaço de
reprodução de escravizados. Uma delas fica em Remígio, na Paraíba, e a outra em
Mangaratiba, no Rio de Janeiro. Ele acredita que havia muitas outras espalhadas
pelo interior do país, mas que acabaram desaparecendo aos olhos dos
historiadores. “Essa é uma prática muito camuflada no Brasil, muito
dissimulada, mas que permeou todo o sistema escravista”, afirma.
Localizada na região de
Campina Grande, a segunda maior cidade da Paraíba, a fazenda de Remígio é
conhecida até hoje pelos moradores do entorno como “a maternidade”. Lá era o
lugar em que as escravizadas de Francisco Jorge Torres, um português que se
mudou para o Brasil no início do século 19 e fez fortuna com a criação e venda
de pessoas, iam para dar à luz os bebês que depois seriam comercializados por
ele. Pelo menos cem crianças tiveram esse destino. Além de servir para a
reprodução de pessoas, o local funcionava também como fazenda de criação de
gado e curtume.
Ainda hoje é possível ver as
ruínas do que, naquela época, era uma casa de pedra com paredes grossas, apenas
uma porta de entrada e saída e uma janela gradeada, onde as escravizadas faziam
o parto e passavam os primeiros dias – o único momento em que podiam ficar
junto com os filhos. Pequenos buracos na parede serviam para os capitães do
mato ouvirem o que estava acontecendo dentro, para identificar quando um bebê
nascia e evitar que a mãe escondesse a criança para tentar fugir com ela
depois.
As escravizadas de Torres
moravam e trabalhavam no casarão da família no município vizinho de Areia, e
apenas as mais velhas permaneciam na fazenda para ajudar nos partos. A senzala
ficava nos fundos do casarão, com 12 quartos de quatro metros quadrados, sem
janelas, que recebiam até 12 pessoas por vez, enquanto aguardavam ser vendidas.
Em frente aos quartos ficava o tronco, onde ocorriam os açoites. Os quartos não
tinham portas, apenas grades de ferro, para que todos vissem os castigos.
Torres tentou ganhar
dinheiro plantando café, mas o clima da região não colaborou. Então focou os
negócios na venda de escravizados como mão de obra para as várias fazendas de
cana-de-açúcar vizinhas. Com o tempo, Areia se tornou um dos principais polos
de comércio de pessoas do Nordeste. O negócio era tão pujante que o historiador
Horácio de Almeida estimou que, em 1840, a cidade de 32 mil habitantes tinha
mais de quatro mil escravizados.
Tanto a fazenda “maternidade”
como a senzala urbana foram conservadas e estão abertas à visitação, com foco
na história da escravidão. Mas o tema da reprodução de pessoas para venda
geralmente é tratado pelos guias turísticos como uma curiosidade. Nas redes
sociais, fotos das ruínas de Remígio aparecem junto a frases motivacionais,
como “Veja a beleza em cada pequeno momento que a vida oferece”.
A fazenda e o casarão já apareceram em outra reportagem da Agência
Pública do projeto
Escravizadores.
Torres foi o primeiro do ramo familiar que ainda é um dos
mais influentes da Paraíba. Ele é o quinto avô do hoje senador Veneziano Vital
do Rêgo (MDB-PB), que, por sua vez, é filho da ex-senadora Nilda Gondim e do
ex-deputado Antônio Vital do Rêgo, irmão do ministro do Tribunal de Contas da
União (TCU) Vital do Rêgo Filho, neto do ex-governador Pedro Gondim e
sobrinho-neto do ex-governador, ex-deputado federal e ex-senador Argemiro de
Figueiredo.
Já a fazenda de Mangaratiba,
na Costa Verde do estado do Rio de Janeiro, pertencia ao maior produtor de café
e traficante de escravizados de seu tempo, Joaquim José de Sousa Breves, e seu
irmão, José Breves. O fazendeiro chegou a ser responsável por 5% de toda a
produção de café do Brasil colonial – que já era o maior exportador do produto
do mundo. Suas senzalas chegaram a ter seis mil escravizados.
Breves foi um dos homens
mais ricos de seu tempo, concentrando parte de seu poder na compra e venda de
pessoas. Contrabandeou africanos o quanto pôde, mesmo após o Estado brasileiro
ter impedido o tráfico marítimo. Mas a atividade foi se tornando cada vez mais
arriscada e custosa, e então ele passou a agregar esforços para que seus
cativos gerassem descendentes. Também começou a ter mais cuidado com os bebês
nascidos no país, que antes eram relegados a segundo plano. Com isso, a taxa
entre nascimentos e óbitos em suas fazendas cresceu exponencialmente, com a cada ano mais nascimentos do que mortes, segundo artigo do pesquisador Thiago Campos Pessoa, do Programa de
Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Breves negociou escravizados
até poucos dias antes da promulgação da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888. Com o
fim da escravidão, seu império também se esvaiu. Além de perder o dinheiro
investido no tráfico, ele ficou sem o seu grande contingente de mão de obra. De
250 mil arrobas de café produzidas em 1887, suas fazendas passaram a 30 mil em
1889. Breves morreu apenas um ano depois da lei.
Sem trabalho nem
alternativas, os ex-escravizados de suas propriedades ficaram à deriva. Um dos
quilombos da região, na ilha de Marambaia, é formado por descendentes de
pessoas que pertenciam a Breves. A ilha era um entreposto em que navios
negreiros (chamados “tumbeiros”, derivando de tumba, porque muitos morriam na
viagem) aportavam antes de chegar ao continente. Ali funcionava uma “senzala de
engorda”, em que os sobreviventes se recuperavam para trabalhar.
O jornalista Assis
Chateaubriand, o Chatô, visitou o local em 1927. Relatou que os remanescentes
foram abandonados em condições miseráveis e nem sabiam o que acontecia no
Brasil. E que o antigo incentivo para que se reproduzissem havia se perpetuado,
mesmo após ter perdido o sentido. “Levam uma existência mais ou menos
promíscua, e não sabem para que fazem filhos”, ele escreveu.
·
Homens
eram reprodutores
Um outro sinal da reprodução
forçada dos escravizados é a existência dos homens que atuavam como
reprodutores. O mais famoso deles, conhecido como “Pata Seca”, deixou um legado
na região de São Carlos, no interior de São Paulo. Roque José Florêncio morreu
em 1958 e deixou cerca de 200 filhos, de acordo com seus descendentes.
Pata Seca foi comprado por
um grande cafeicultor da região por ter mais de dois metros de altura e canelas
finas – porque acreditava-se que homens assim teriam mais facilidade para gerar
filhos homens. O apelido veio das mãos compridas e finas.
Depois de ter sido explorado
para aumentar a mão de obra, ele recebeu algumas terras do senhor e pôde se
casar e formar a própria família. Ao contrário das escravizadas, que serviam
apenas para engravidar, ele era bem tratado, não dormia na senzala e recebia
comida diferente da dos outros escravizados.
·
Os
motivos
A reprodução sistemática de
escravizados foi mais bem documentada nos Estados Unidos do que no Brasil. O
país proibiu a escravidão em 1808 – mesmo ano da chegada da corte portuguesa ao
Brasil –, quando tinha cerca de 500 mil escravizados. O número cresceu para
quatro milhões de pessoas em pouco mais de 50 anos. Isso ocorreu não de forma
natural, mas devido aos esforços de reprodução em cativeiro.
Um processo semelhante
ocorreu no Brasil. Apesar de a escravidão aqui só ter terminado em 1888,
algumas leis anteriores a limitaram. A Lei Eusébio de Queirós, de 1850, proibiu
o tráfico de escravizados. A Lei do Ventre Livre, de 1871, deu liberdade a
filhos de escravizadas. E a Lei dos Sexagenários libertou pessoas com mais de
60 anos.
Há evidências de que nenhuma
delas foi plenamente obedecida, com a vista grossa do Estado, o que abriu
caminho para várias práticas ilegais. Por exemplo, os padres registravam
crianças com nascimento anterior ao Ventre Livre. Aquelas que nasciam depois
também eram obrigadas a trabalhar até os 21 por serem consideradas “aprendizes”
dos senhores. Também havia cartas de alforria falsas, estabelecendo que o
cativo estava livre, na condição de continuar prestando serviços até a morte do
patrão.
Mesmo assim, as leis
encareceram, e muito, o preço dos escravizados. “No final da primeira metade do
século 19, quando se aproximou a abolição do tráfico, o preço dos escravizados
explodiu. Então, reproduzir pessoas em cativeiro virou um bom negócio. Antes
não era. Era mais negócio comprar da África”, afirma Laurentino Gomes.
Em outras palavras, antes
das leis, era mais barato “importar” novos escravizados do que cuidar dos que
já estavam aqui. Tanto que a média de vida de uma pessoa escravizada no Brasil,
no final do século 18, era de apenas 12 anos, e 15% de todos os que foram
trazidos ao país morreram em menos de dois anos, de acordo com o pesquisador.
A partir das proibições, o
perfil dos escravizados traficados da África também passou a mudar. Antes, a
maioria era de homens jovens e fortes, aptos a trabalhar no campo e na
mineração. Depois, aumentou o número de crianças – para que a sua força de
trabalho durasse mais tempo – e de mulheres – que poderiam engravidar e
produzir novos escravizados.
“No Brasil, com esta
problemática da escassez diante do fim do tráfico negreiro transatlântico
atingido 35 anos depois [dos EUA], procurou-se seguir o modelo de ação americano
para reprodução da escravaria. Com isso, obteve-se algum êxito, conseguindo
prolongar o regime por mais quase quatro décadas”, afirma Gabriela Salcedo
Figueira, que pesquisou a reprodução escravista no Brasil do século
19.
Para a pesquisadora, não há
elementos que comprovem a existência de lugares destinados unicamente à
reprodução de escravizados no país, e isso acontecia em meio a outros trabalhos
e atividades. No entanto, as alterações na sociedade forçaram uma mudança no
entendimento dos senhores de escravos, que passaram a ver nas gravidezes de
suas cativas um negócio lucrativo e de perpetuação do regime. Ela cita uma pesquisa que ilustra a inversão de origem
da mão de obra. Em Vassouras, no Rio de Janeiro, importante polo cafeeiro da
época, cerca de 74% dos trabalhadores das fazendas eram africanos. Passados 20
anos, 54% eram crioulos, ou seja, negros nascidos no Brasil.
Fonte: Por Amanda Audi, da
Agencia Pública
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