Trump e a doença do colonizador
ressentido
Enquanto os países do Norte Global vêm
enfrentando um declínio prolongado do crescimento econômico, os países do Sul
Global, sobretudo na Ásia, apresentam uma trajetória de crescimento econômico
mais alta nos últimos trinta anos. Como pode-se observar na Figura 39, no final
da Guerra Fria, em 1993, o Norte Global respondia por 57,2% do PIB global
(PPC), enquanto o Sul Global respondia por apenas 42,8%. Trinta anos depois,
essas proporções se inverteram definitivamente: a participação do Sul Global
chegou a 59,4%, e o Norte Global detém 40,6%. O G7 (Estados Unidos, Reino
Unido, Canadá, França, Alemanha, Itália e Japão) é o núcleo econômico do bloco
do Norte Global. Em 1993, esses sete países representavam 45,4% da economia
global. Enquanto isso, as economias mais importantes do Sul Global, que mais
tarde viriam a ser conhecidas como Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África
do Sul), representavam apenas 16,7% da economia global naquele ano. Entre eles,
a Rússia tinha acabado de emergir após a dissolução da União Soviética, e a
China estava aprofundando suas reformas econômicas e estabelecendo uma economia
socialista de mercado. Na época, nem a Rússia nem a China eram concorrentes do
G7. Trinta anos depois, os países do Brics já representavam 31,5% da economia
global, tendo ultrapassado o G7 (30,3%).
Em agosto de 2023, o Brics se expandiu com
o convite para a inclusão de seis países: Egito, Etiópia, Emirados Árabes
Unidos, Arábia Saudita, Irã e Argentina (embora a Argentina tenha
temporariamente recusado o convite). O Brics 10 (sem a Argentina) acrescentou
quase 4% à participação do Brics no PIB mundial (PPC).
Nos últimos trinta anos, os Estados Unidos,
líder absoluto do Norte Global, viu sua participação na economia mundial cair
lentamente em termos de PPC, de 19,7% em 1993 para 15,5% em 2022. Enquanto
isso, no Sul Global, a rápida ascensão da China tem sido a variável mais
notável. Em 1993, a China representava apenas 5% da economia mundial; já em
2016, sua economia ultrapassou a dos Estados Unidos em termos de PPC e, em
2022, sua participação na economia mundial chegou a 18,4%. Isso marca a
primeira vez, em mais de 600 anos, que um país não dominado por brancos rompeu
economicamente a hegemonia dos países imperialistas brancos. Essa realidade
econômica fez com que os EUA começassem a tentar suprimir com urgência a
ascensão da China. Entretanto, seria um equívoco considerar a China como a
única fonte de crescimento do Sul Global. Mesmo sem o país, as economias do Sul
Global já haviam ultrapassado as do Norte Global em 2022, sendo suas
respectivas participações na economia global de 41% e 40,6%. O desenvolvimento
econômico geral do Sul Global proporcionou objetivamente a capacidade de buscar
uma ordem internacional mais justa, o que é contrário aos desejos do bloco
imperialista do Norte Global. Identificamos todos os 43 países cuja
participação no PIB mundial (PPC) chega a 41,1% e que fazem parte de uma ou
mais das três novas organizações internacionais que não são controladas por
imperialistas: Brics 10 (fundado em 2009, ampliado em 2010 e 2023), Organização
para Cooperação de Xangai (fundada como “Cinco de Xangai” em 1996, ampliada em
2001, 2017 e 2023) e o Grupo de Amigos em Defesa da Carta das Nações Unidas
(fundado em 2021).
A taxa média de crescimento anual do PIB
(PPC) per capita registrada na última década pelas 21 maiores economias do Sul
Global e pelos países do G7. A taxa de crescimento da China (5,8%) continua a
liderar entre os países selecionados. A taxa de crescimento da Ásia é
geralmente mais alta do que a de outros países do Sul Global. Os cinco países
seguintes com as maiores taxas de crescimento são Bangladesh (5,3%), Vietnã
(4,9%), Índia (4,6%), Filipinas (3,3%) e Indonésia (3,1%). Com exceção dos
Estados Unidos, o restante dos países do G7 tem uma taxa média de crescimento
per capita inferior a 1%. Lamentavelmente, as maiores economias da África e da
América Latina tiveram um crescimento per capita negativo: Nigéria e África do
Sul, com -0,4%, e Brasil e Argentina, com 0% e -0,7%, respectivamente. Obviamente,
reconhecemos que as próprias taxas de crescimento podem mascarar as intensas
lutas de classe travadas nos países, onde a parcela do crescimento não é de
modo algum distribuída de forma equitativa entre capital e trabalho.
Entretanto, seria um erro ignorar as taxas de crescimento e o que suas linhas
de tendência descrevem. Uma das mudanças mais significativas ocorrida nos
últimos 20 anos na economia mundial foi uma guinada radical na geografia da
produção industrial mundial.
O Banco Mundial divulga a porcentagem da
indústria no PIB utilizando os preços correntes e as taxas de câmbio correntes,
o que este estudo chama de método da Taxa de Câmbio Corrente (TCC). Atualmente,
não temos conhecimento de nenhuma divulgação das porcentagens da indústria
calculando-se o PIB (PPC). As mudanças
na porcentagem do valor adicionado da indústria no PIB, tanto em termos de TCC
quanto de PPC, nos últimos 18 anos. É provável que os números da participação
do valor adicionado mundial da indústria estejam em algum ponto entre a TCC e a
PPC. Os gráficos subsequentes desta série apresentam apenas o método PPC e têm
as mesmas qualificações da primeira série. O que vemos é que há, de fato, uma
mudança na base da economia, na qual o Sul Global abriga a parcela majoritária.
Apesar de muitas previsões acerca de uma nova sociedade pós-industrial, nenhum
país importante alcançou a modernização sem industrialização.
A participação do Brics 10 no valor
adicionado da indústria mundial representa, em 2022, o dobro da participação do
G7. Os resultados mostram o seguinte em relação ao valor adicionado da
indústria como porcentagem do PIB mundial (PPC):
- A China é o
principal país industrial do mundo, com uma participação de 25,7% no valor
adicionado, enquanto os EUA detêm apenas 9,7%.
- O Sul Global
tem uma participação de 69,4%, enquanto o Norte Global tem uma
participação de 30,6%.
- O Brics 10 tem
uma participação de 44% e supera o G7.
- A participação
de Japão, Alemanha, França e Reino Unido também está diminuindo, enquanto
a da Índia está aumentando.
Utilizamos a porcentagem do Banco Mundial
para a indústria multiplicada pelo PIB anual (PPC) de cada país, em cada ano,
para obter o valor adicionado da indústria com base em cada país. Em seguida,
utilizamos esses números para calcular a porcentagem do valor adicionado total
da indústria mundial, por país e categoria de grupo de países. Há algumas
limitações e questões complexas relacionadas a essa metodologia. Alguns
economistas tentaram minimizar essa mudança. Há argumentos de que, com os
monopólios do dólar estadunidense e a propriedade de grandes corporações
multinacionais, os números do PIB exageram a mudança. No mínimo, não se pode
dizer que a China tenha toda a sua produção sob o controle dos EUA. Mesmo na
Índia, é um erro subestimar a importância de uma grande e crescente burguesia
nacional (embora grande parte dela seja politicamente reacionária). A
transferência da produção industrial para o Sul Global só poderia ter ocorrido
com melhorias maciças em sua infraestrutura. Ao se despedir do presidente russo
Vladimir Putin durante sua visita de Estado em março de 2023, o presidente
chinês Xi Jinping afirmou: “Neste momento, há mudanças – como não víamos há 100
anos – e somos nós que estamos conduzindo essas mudanças juntos”. A Eurásia é agora
o palco central para determinar o futuro do próximo período da existência
humana.
·
Estratégia dos EUA para coibir o
crescimento econômico e a influência da China
Em 2007, Vladimir Putin proferiu um famoso
discurso em Munique, criticando o domínio monopolista dos EUA e “o hiperuso
quase incontido da força – força militar – nas relações internacionais, força
que está mergulhando o mundo em um abismo de conflitos permanentes”. No mesmo
ano, foi criado o Centro para uma Nova Segurança Americana (Center for New American Security – CNAS).
Em 2009, telegramas secretos dos EUA para Washington, revelados pelo Wikileaks,
afirmavam: Xi sabe o quanto a China é corrupta e sente repulsa pela ampla
comercialização da sociedade chinesa e seus consequentes novos-ricos, pela
corrupção entre funcionários do governo, pela perda de valores, dignidade e
respeito próprio, além dos “males morais” como drogas e prostituição… Quando Xi
assumir o comando do partido, ele poderá tentar resolver esses males de forma
agressiva, talvez às custas da nova classe endinheirada.
Os alarmes estavam tocando em Langley e
Foggy Bottom. O sonho do Ocidente de ver surgir um “Gorbatchov chinês” foi
destruído em 2012 e ficou nítido que não havia derrota iminente à vista para
uma China que ascendia economicamente. Assim, a estratégia de reorientação para
a Ásia começou a integrar seus aliados para conter o país. A então secretária
de Estado dos EUA, Hillary Clinton, declarou publicamente que “o século XXI
será o século do Pacífico dos Estados Unidos”. Em contrapartida, Xi
Jinping disse ao presidente dos EUA, Barack Obama, que “o Oceano Pacífico é
grande o suficiente para acomodar o desenvolvimento tanto da China quanto dos
Estados Unidos”. Em 2016, o PIB da China, calculado pela paridade do poder de compra,
já havia ultrapassado o dos Estados Unidos. Em 2020, o Centro de Pesquisa
Econômica e Empresarial (Centre for Economics and
Business Research) previu que, em 2028, o PIB da China, medido em
dólares estadunidenses, ultrapassaria o dos EUA, uma previsão que se tornou uma
“barreira demoníaca”. As autoridades estadunidenses definiram a China
reiteradamente como a ameaça estratégica mais significativa que o país e o
Norte Global enfrentam.
O declínio relativo do poder dos EUA, a
ascensão da China socialista e o crescimento econômico do Sul Global são os
principais motivos por trás da subordinação ativa e da subsequente integração,
pelos EUA, do restante dos países imperialistas. Isso levou a um bloco militar,
político e econômico completamente sob o controle dos EUA. Em 1998, o
ex-conselheiro de segurança nacional dos EUA, Zbigniew Brzezinski, alertou: “O
cenário mais perigoso seria uma grande coalizão entre China, Rússia e talvez
Irã… não por um amor repentino entre eles, mas por uma oposição compartilhada à
potência predominante (os EUA)”. Formado por uma combinação de neoconservadores
e liberais defensores do intervencionismo, o CNAS gerou um núcleo de quadros
das elites políticas dos EUA – dos dois partidos – que se concentrou no
desenvolvimento de uma nova estratégia geopolítica para os EUA. Em 2021,
ignorando o aviso de Brzezinski, o Centro começou a promover publicamente a
preparação para guerras simultâneas. Entre as figuras importantes do CNAS estão
o secretário de Estado Antony Blinken, o vice-secretário de Estado Kurt
Campbell e a ex-subsecretária de Políticas de Defesa Michèle Flournoy.
Ex-funcionários e consultores do CNAS têm permeado os órgãos estratégicos do
Estado, inclusive o Conselho de Segurança Nacional.
O Conselheiro de Segurança Nacional Jake
Sullivan, embora não seja membro do CNAS, agora desempenha um papel dominante
na presidência e segue a mesma estratégia internacional. Em abril de 2023,
Sullivan fez um discurso intitulado “Renovando a liderança econômica americana”
no Brookings Institute. Esse discurso foi relevante por três motivos. Primeiro,
é muito incomum que um discurso tão importante sobre a economia dos EUA seja
proferido por um Conselheiro de Segurança Nacional. Historicamente, esses
conselheiros, como Henry Kissinger, restringem-se ao âmbito da segurança
nacional, da geopolítica e dos assuntos militares. Em segundo lugar, o discurso
de Sullivan buscou criar um “novo Consenso de Washington” para restabelecer a
hegemonia econômica dos EUA. Terceiro, Sullivan reconheceu a profundidade da
crise estrutural dos EUA, incluindo sua estagnação econômica. Esse plano
econômico é necessário para dar suporte à expansão militar. Em julho de 2023,
os EUA propuseram um projeto de lei para acrescentar US$ 345 milhões em ajuda
militar a Taiwan. De Tel Aviv a Kiev e Taipei, os EUA estão intensificando
operações militares até as portas da Eurásia.
As guerras frias, necessariamente
associadas a conflitos entre potências nucleares, são sempre perigosas. Em
1988, Edward Herman e Noam Chomsky publicaram A
manipulação do público: Política e poder econômico no uso da mídia,
no qual criticavam o “modelo de propaganda” utilizado pela mídia corporativa
dos EUA, muitas vezes em parceria com o Estado. Os autores já apontavam isso
muito antes de esse sistema poder se valer das novas ferramentas tecnológicas
de vigilância e comunicação direcionada que caracterizam a era digital. Graças
às denúncias de Edward Snowden, o mundo pôde vislumbrar a vasta expansão do
controle dos EUA sobre todas as comunicações e a forma como integraram todas as
plataformas do monopólio tecnológico de TI dos EUA em adjuntos da
infraestrutura de segurança nacional dos EUA. “Colete tudo” foi como um
ex-oficial sênior de inteligência descreveu a abordagem do ex-diretor da
Agência de Segurança Nacional, Keith Alexander, com relação à coleta de dados.
Todos os e-mails, todas as chamadas telefônicas e mensagens de texto de todos
os tipos (incluindo os do WhatsApp, Telegram e Signal), cada toque de tecla e
cada URL, tudo da grande maioria da população mundial é capturado (fora da
China, da Rússia e de alguns outros países). Esses dados são armazenados em
imensas redes de discos rígidos em locais como Bluffdale, no estado de Utah. Os
EUA criaram uma rede global capaz de captar e administrar quase todos os
pacotes de dados de todos os cabos submarinos de fibra óptica, todo o tráfego
de celulares e o tráfego de dados via satélite. Apesar da hegemonia militar, o
capital ainda precisa de algo próximo do consentimento. Com o tempo, novas
técnicas, como o aprendizado de máquina, proporcionaram um salto qualitativo na
capacidade dos EUA de conduzir uma guerra psicológica secreta contra o povo, o
Sul Global e suas populações.
Os modelos econômicos de todas as empresas
de mídia entraram em colapso com o advento da internet e a criação de
monopólios econômicos de tecnologia, que desintermediaram todos os lucros da
mídia. Começou uma nova era de total transformação de meios de comunicação em
arma – um desdobramento que faz parte da estratégia geral de guerra híbrida
(incluindo sanções econômicas e isolamento diplomático), utilizada pelo establishment dos EUA em todo o mundo. A
reorientação para a Ásia, que na realidade volta-se para a China, começou
formalmente em 2012, sob o comando de Obama. Os EUA combinaram estratégias
diplomáticas, econômicas, políticas e de propaganda para tentar conter, a
princípio, o desenvolvimento econômico da China e, posteriormente, sua
crescente influência em instituições como o Brics. A partir de 2016, Trump
tentou evitar o conflito com a Rússia e começou a concentrar todas as energias
dos EUA contra a China.
Nos últimos oito anos, os EUA utilizaram um
conjunto de temas selecionados com curadoria para definir a narrativa da mídia
ocidental sobre a China. Apesar dos milhões de pessoas muçulmanas mortas pelas
mãos das forças da Otan no Iêmen, na Síria, no Iraque e no Afeganistão, o
Ocidente conseguiu integrar seu formidável conjunto de recursos de soft power para travar uma guerra fria
virulenta contra a China. Até o principal agente de propaganda nazista, Joseph
Goebbels, teria se espantado com a arrogância do Ocidente ao reivindicar o
manto dos direitos humanos e tentar usar Xinjiang como ponto de ataque contra a
China. Lawrence Wilkerson, ex-chefe de gabinete do secretário de Estado Colin
Powell e ex-coronel do exército, observou que um importante objetivo
estratégico da invasão militar dos EUA e de sua longa presença no Afeganistão
era conter a Nova Rota da Seda da China (2013-atual) e criar divisões étnicas e
agitação social em Xinjiang. Os veículos The
New York Times, The
Guardian e BBC se
tornaram os principais apoios em uma campanha de operação psicológica
característica dos EUA.
Como explicamos na análise das economias
ocidentais, não é irracional que o Ocidente procure retardar o crescimento da
China. O ponto central do próximo estágio de desenvolvimento chinês é a
promoção de uma economia de dupla circulação, ou seja, aumentar o peso do
mercado interno e, ao mesmo tempo, continuar a aumentar seu comércio
internacional, passar a um desenvolvimento de alta qualidade e promover o
desenvolvimento econômico das províncias do oeste do país. O ataque a Xinjiang
atende simultaneamente a muitos interesses ocidentais: enfraquece as
estratégias de crescimento interno da China, isola o país internacionalmente,
mascara a violência dos EUA contra os países muçulmanos e mantém o apoio a
grupos extremistas para desestabilizar seus adversários. As alegações forjadas
de genocídio entre a população uigur em Xinjiang, sem nenhuma comprovação pelo
Departamento de Estado dos EUA, permitiram que o governo dos EUA impusesse
sanções à China, com o objetivo de atingir toda a cadeia do setor têxtil
chinês, que exporta mais de US$ 300 bilhões e responde por mais de um terço das
exportações têxteis do mundo, ocupando o primeiro lugar no ranking global. Mas,
apesar dessas sanções, o comércio exterior de Xinjiang aumentou 51,25% em
relação ao ano anterior, atingindo US$ 30 bilhões nos três primeiros trimestres
de 2023, e o comércio com cinco nações da Ásia Central cresceu 59,1%.
A China acaba de anunciar uma zona de livre
comércio em Xinjiang para promover a conectividade com os países da região da
Nova Rota da Seda. Além da guerra de “soft power“,
os EUA não pouparam esforços para conter o desenvolvimento da China em setores
de alta tecnologia, sobretudo para enfraquecer a capacidade chinesa de produzir
ou mesmo comprar chips semicondutores de ponta. Ao impor uma competência de
longo alcance sobre tecnologias como as máquinas de litografia ultravioleta
extrema (EUV) fabricadas pela empresa holandesa ASML, os EUA buscam impedir que
a China entre no futuro da tecnologia dos chips. O governo Biden acredita que o
impacto disso vai muito além de enfraquecer os avanços militares da China, mas
também ameaçará o crescimento econômico e a liderança científica do país.
Gregory C. Allen, diretor do Projeto de
Governança de Inteligência Artificial e membro sênior do Programa de Tecnologia
Emergente do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais em Washington,
acredita que a mensagem transmitida pelos controles de exportação contra a
China, emitidos pelo Escritório de Indústria e Segurança (Bureau of Industry and Security – BIS) dos
EUA, em outubro de 2022, faz parte de “uma nova política dos EUA de estrangular
ativamente grandes segmentos do setor de tecnologia chinês – estrangular com a
intenção de matar”. C.J. Muse, analista da indústria nos EUA, declarou:
“Se você me falasse sobre essas regras cinco anos atrás, eu teria dito que
trata-se de um ato de guerra – seria necessário estar em guerra”. Apesar das
severas restrições impostas pelos EUA, a China continua crescendo mais do que o
Norte Global .
Por meio da Nova Rota da Seda, a China
fortalece suas conexões econômicas com o Sul Global. De 2013 a 2022, o volume
total de comércio da China com os países participantes da Nova Rota da Seda
atingiu US$ 19,1 trilhões, com um aumento médio anual de 6,4%. O investimento
bilateral acumulado ultrapassou US$ 380 bilhões, e o investimento estrangeiro
direto da China ultrapassou US$ 240 bilhões. Os novos projetos contratados pelo
país atingiram US$ 2 trilhões, concluindo um volume de negócios acumulado de
US$ 1,3 trilhão. Ironicamente, a contenção dos EUA nos campos de alta tecnologia
apenas fortaleceu a determinação da China de ser autossuficiente em inovação.
Nos últimos anos, o país asiático fez avanços significativos em inovação
independente em chips de ponta, veículos elétricos e tecnologia digital,
tornando o bloqueio e a contenção dos EUA em campos da alta tecnologia cada vez
mais impraticáveis.
·
O Norte Global empurrando o mundo para a
guerra
A ascensão pacífica dos países do Sul
Global, liderada pela Ásia e sobretudo pela China, representa um desafio
econômico abrangente ao domínio mundial imperialista. É a primeira vez em 600
anos que as potências imperialistas do Atlântico se deparam com uma força
econômica não branca capaz de se contrapor a elas. Para conter a ascensão da
China, os EUA estão intensificando a integração interna dentro do campo
imperialista, permitindo e exigindo o rearmamento de dois países fascistas
derrotados na Segunda Guerra Mundial, Japão e Alemanha. De forma unânime, os
líderes políticos dos EUA consideram essencial conter e derrotar a China, como
um inimigo estratégico central, e deram início a uma nova guerra fria. Os
líderes militares estadunidenses fazem declarações alarmantes sobre a China. O
objetivo geopolítico dos EUA é derrubar os regimes da China e da Rússia,
desnuclearizar e, se possível, desmembrar os dois países, dividi-los em vários
países pequenos e garantir que nunca mais possam desafiar sua hegemonia militar
e econômica. Na fronteira ocidental da Rússia, a expansão da Otan para o leste
levou a questão da segurança da Ucrânia a um ponto crítico de ebulição. Antes
da dissolução da União Soviética, os Estados Unidos haviam prometido a
Gorbatchov que a Otan não se expandiria para o leste, já que sua missão
original – combater a União Soviética e conter o comunismo europeu – havia
terminado com o fim da Guerra Fria. No entanto, a Otan não cumpriu esse “acordo
de cavalheiros” e incorporou 14 novos Estados-membros, incluindo diversas
antigas repúblicas soviéticas. Em 2018, a Ucrânia alterou sua Constituição para
priorizar a entrada na Otan e na União Europeia como estratégia nacional, o que
representa uma ameaça significativa à segurança nacional da Rússia. Como Kiev
está localizada a apenas 760 km de distância de Moscou, permitir que a Otan
implante armas nucleares na Ucrânia constituiria uma ameaça militar
incontrolável para a Rússia. Ao mesmo tempo, as forças neonazistas no oeste da
Ucrânia estavam em ascensão. Em janeiro de 2022, foram realizadas procissões
com tochas em cidades como Kiev e Lviv, comemorando o aniversário do
colaborador nazista Stepan Bandera. Em conflitos anteriores, extremistas nacionalistas
da mesma região hasteavam bandeiras nazistas e ameaçavam aniquilar ucranianos
do leste do país e pessoas favoráveis à Rússia. A população russa étnica do
leste da Ucrânia teve que organizar a resistência e buscar ajuda russa. Nessas
circunstâncias, a Rússia lançou uma “operação militar especial” na Ucrânia,
essencialmente enfrentando um confronto direto com a força militar da Otan.
No Pacífico Ocidental, os Estados Unidos
fazem tentativas contínuas de alimentar as tensões em torno do Mar do Sul da China
e de Taiwan. Em agosto de 2022, apesar da forte oposição e das demonstrações
diplomáticas de descontentamento da China, a presidente da Câmara dos
Representantes dos EUA, Nancy Pelosi, visitou Taiwan, cometendo uma grave
violação do princípio de “Uma só China” e das disposições dos três comunicados
conjuntos EUA-China, afetando seriamente a base política das relações
sino-estadunidenses. É importante lembrar que, em 1972, no comunicado de
Xangai, os Estados Unidos aceitaram a política de “Uma só China”, que reconhece
que existe apenas uma China e que Taiwan não é um Estado soberano separado. Em
agosto de 2023, a Marinha dos EUA, juntamente com as forças do Canadá e da
República da Coreia, realizou exercícios militares conjuntos no Mar do Japão e
no Mar Amarelo. No entanto, os exercícios terminaram abruptamente após,
apenas cinco horas, devido às mobilizações militares direcionadas da China. Desde
que Ferdinand Marcos Jr. assumiu a presidência das Filipinas, em junho de 2022,
o país abriu diversas bases militares para os EUA, fortaleceu os laços de
segurança com a Austrália e o Japão e desencadeou disputas com a China sobre
questões de soberania no Mar do Sul da China. Navios de guerra dos EUA, do
Canadá, da Austrália e de outros países também patrulham e fazem exercícios com
frequência no Mar do Sul da China, provocando diversos contatos imediatos e
atritos com a Marinha chinesa. Até o
momento, diante das contínuas provocações dos Estados Unidos e de seus aliados,
a China tem mantido uma postura contida, esforçando-se para evitar conflitos
militares com esses países, pois um confronto desse tipo poderia se transformar
em uma guerra nuclear global. No entanto, Taiwan tem uma importância especial.
Como parte da China historicamente e segundo a lei internacional, a continuação
da separação de Taiwan significa que não houve fim para a guerra civil da China
e até mesmo para o “século de humilhação”, que começou com as Guerras do Ópio
em 1840. A divisão de Taiwan é inaceitável para a China, mesmo que isso signifique
o risco de uma guerra direta contra os Estados Unidos.
Com o apoio direto de Biden e Blinken,
Israel está promovendo uma limpeza étnica e o genocídio da população civil
palestina em Gaza. A situação deixa evidente a verdadeira face do campo
imperialista do Norte Global como um coletivo de colonizadores brancos: quando
surgem conflitos entre colonos brancos e pessoas não brancas colonizadas, o
campo imperialista apoia em uníssono o lado dos colonos. As fraturas na Ucrânia
e na Palestina exacerbaram a polarização dos social-democratas, sendo que
alguns de seus setores se mostraram incapazes de superar o desejo de
aceitabilidade e de se unir a um movimento robusto pela paz. Voltemos à citação
da Otan e da UE de que estariam “protegendo nosso bilhão de cidadãos,
preservando nossa liberdade e democracia… contra todas as ameaças”. Essa frase,
que aparece no primeiro parágrafo do comunicado da Otan-UE de 2023, descreve
nitidamente a estrutura do mundo atual: o campo imperialista, centrado nos EUA
e baseado na infraestrutura da Otan, está totalmente unido e mobilizado
militar, política e economicamente, pronto para sufocar quaisquer forças
emergentes que possam representar uma ameaça ao seu status hegemônico. Essa
inédita e imensa pressão imperialista obrigou muitos no “resto do mundo”
(aqueles que estão fora do campo imperialista) a identificar estruturas e
identidades alternativas de autopreservação.
Fonte: Outras Palavras
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