Fazer jejum
intermitente é associado a desejo intenso por comida e compulsão alimentar
Mesmo sem haver
base científica sólida, o jejum está sendo amplamente divulgado por
influenciadores e até profissionais de saúde como uma prática benéfica para a
saúde, mencionando redução de peso e controle de doenças metabólicas. Mas
um estudo
com universitários brasileiros chama atenção para efeitos colaterais
preocupantes. A pesquisa da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) revela que o
jejum pode acentuar comportamentos alimentares desordenados, como compulsão
alimentar e desejos intensos por comida, especialmente entre jovens.
No estudo, os
jejuadores apresentaram níveis significativamente maiores de compulsão
alimentar e desejos por comida – e de forma mais acentuada conforme aumentava o
tempo de jejum. “Aqueles com episódios severos de compulsão tiveram uma taxa
140% maior de horas de jejum em comparação aos não compulsivos. Além disso, a
cada aumento na escala de desejo por comida, houve aumento também nas horas de
jejum”, detalha Jônatas de Oliveira, autor do estudo.
Esses achados
trazem novas perspectivas sobre os riscos associados às práticas alimentares
restritivas, que já têm sido desaconselhadas por especialistas do campo da
nutrição comportamental. Jônatas de Oliveira, que também é doutorando na FMUSP,
explica que “o jejum costuma ser adicionado como uma prática dentro de uma
linha do tempo onde as pessoas já tentaram mudar o corpo por meio do controle e
de algum tipo de dieta”.
·
Ciclo
restrição-descontrole
O nutricionista diz
que “a intencionalidade por trás do regime de jejum adotado representa um
fator-chave para o impacto emocional e comportamental”, e por isso mesmo ele
optou por estudar o efeito da prática nos desejos intensos por comida (food
cravings).
Segundo ele, os
dados sugerem que o jejum, ao invés de ser uma estratégia eficaz de controle
alimentar, pode estimular um um ciclo de restrição e descontrole, agravando
sintomas de compulsão. “Essas práticas não apenas comprometem a relação do
indivíduo com a alimentação, mas também têm implicações para a saúde mental”,
diz.
E acrescenta que
“nem os riscos nem os benefícios do jejum intermitente foram totalmente
estudados ainda. Ele pode ter resultados positivos em curto prazo para
indivíduos que não são predispostos a desenvolver transtornos alimentares, mas
pode ser prejudicial para populações que estão no grupo de risco, como
adolescentes”.
O pesquisador
adverte ainda que os modelos experimentais (pesquisas feitas em animais) que
mostram efeitos benéficos do jejum não são adequados, pois não representam a
linha do tempo de um jovem adulto que já realizou dietas anteriormente –
lembrando que as dietas promovem impactos metabólicos e comportamentais em quem
as pratica.
Entidades de saúde,
como a Associação Brasileira de Nutrição, também pedem cautela e que as orientações
já consolidadas durante anos de pesquisas sejam as indicadas aos pacientes.
O parecer
técnico de 01/2019 diz
que “são necessários ensaios clínicos controlados randomizados, especialmente
de longo prazo e envolvendo humanos, sob jejum intermitente versus dietas
convencionais de restrição calórica contínua que permitam comprovar a eficácia”
do jejum e “sobretudo seus potenciais efeitos adversos”.
A Asbran afirma que
as alegações para a utilização do jejum ainda são insuficientes para sua
recomendação, e que uma alimentação adequada e saudável é “baseada nos
princípios e recomendações do Guia Alimentar para a População Brasileira,
orientada por um nutricionista habilitado”, e aquela “associada à prática de
exercícios físicos e bons hábitos de vida”. Diz também que “é dever do
nutricionista analisar criticamente questões técnico-científicas e
metodológicas de práticas, pesquisas e protocolos divulgados na literatura ou
adotados por instituições e serviços, bem como a própria conduta profissional”.
·
A
pesquisa
Publicado como
artigo no Journal of the National Medical Association com o
título Tente
não pensar em comida: Uma associação entre jejum, compulsão alimentar e desejos
por comida,
o estudo avaliou 458 estudantes da USP, divididos entre praticantes de jejum
nos últimos três meses e não praticantes.
A análise
estatística apontou para uma relação diretamente proporcional entre as horas de
jejum acordado – quando há mais esforço mental para fazê-lo – e a presença de
características como compulsão alimentar, desejos por comida e consumo de
alimentos tidos como “proibidos” para quem deseja emagrecer, como os gordurosos
e com muito açúcar.
O estudo não
realizou o diagnóstico de transtorno alimentar, o que requer uma entrevista
clínica. Porém, com base nos instrumentos utilizados, que têm uma alta
sensibilidade para detecção de riscos, foi possível verificar o nível de
compulsividade. “Dentro do espectro da compulsividade, existe a compulsão com
baixo peso, a compulsão junto com a purgação e há ainda a compulsão isolada. É
como se fossem categorias de um possível diagnóstico de transtorno alimentar”,
esclarece.
Os resultados
encontrados, comenta o pesquisador, “ressaltam a importância de estratégias
alimentares baseadas na regulação emocional e comportamental, especialmente
para jovens universitários, que são particularmente vulneráveis a transtornos
alimentares”.
·
Transtornos
alimentares e comer transtornado
Existem transtornos
alimentares já bem definidos na literatura médica. A anorexia nervosa, por
exemplo, é um transtorno em que a pessoa tem um medo excessivo de ganhar peso,
provocando restrição alimentar e redução no consumo de alimentos, o que leva a
uma perda significativa de peso sem que a pessoa note. Isso acontece porque a
pessoa apresenta uma alteração na percepção real do seu peso e silhueta
corporal.
Já a bulimia
nervosa é caracterizada por episódios frequentes de compulsão alimentar, nos
quais há um consumo de grandes quantidades de comida, seguido de comportamentos
compensatórios inadequados como práticas purgativas, ficar sem comer e praticar
exercícios em excesso para tentar controlar o peso.
Por fim, o
transtorno de compulsão alimentar tem como principal característica episódios
frequentes de comer exageradamente, mesmo quando não se tem fome. Existe uma
perda do controle sobre o que se comer, mas não existem comportamentos
compensatórios com a intenção de eliminar o que comeu.
Mas mesmo sem ter
algum desses transtornos alimentares diagnosticados, muitas pessoas podem
apresentar sinais de alerta, conhecidos como o “comer transtornado”. “Todo
transtorno alimentar é um comer transtornado, mas nem todo comer transtornado é
um transtorno alimentar”, diz Jônatas de Oliveira, ao explicar a linha de
transição.
Muitas pessoas
praticam jejum, “se livram” da comida, ou fazem exercício compensatório, com a
intenção de “gastar” o que comeu – que são comportamentos verificados no
transtorno alimentar. Mas elas ainda não preenchem todos os critérios para o
diagnóstico.
“No comer
transtornado, há cognições e crenças que vão levar a comportamentos com algum
nível de sofrimento, sim, sempre relacionado ao corpo. Mas escolhemos usar o
termo ‘comer transtornado’ para não sair classificando tudo como transtorno
alimentar, que tem uma prevalência relativamente baixa na população em geral, e
assim não medicalizar as pessoas excessivamente.”
Fonte: Jornal da
USP
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