Gilmar Mendes,
decano do STF: "Estamos atrasados na regulação das redes"
Para o decano
do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, o
Brasil está atrasado na regulação das redes sociais. A afirmação foi feita
nesta conversa com o Correio Braziliense, em Zurique, onde o ministro
participou do Fórum Econômico Brasileiro organizado pelo Lide — Grupo de
Líderes Empresariais e pela Editora Abril. O magistrado considera que o Poder
Legislativo desperdiçou, a partir da tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023, a possibilidade
de analisar os limites para publicações nas plataformas de internet, e assim
reforçar ainda mais a democracia brasileira. "Todos acreditamos que o
Congresso ia se debruçar (na matéria). Houve aquele avanço no Senado, mas, depois,
por dissidências e desinteligências, a matéria acabou sendo parada na
Câmara", lamenta. Gilmar, aliás, salienta que a decisão do Supremo sobre a
constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet será uma das
principais pautas da Corte neste semestre.
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Leia a entrevista completa a seguir.
·
O senhor tem participado de vários fóruns
internacionais, e faltam alguns dias para o STF retomar os trabalhos. O que o
senhor destaca como assunto mais importante na Corte neste semestre?
Acho
que é a questão das redes sociais. O tema, que já está posto, tem um pedido de
vista do ministro André Mendonça. Mas, diante de tudo que aconteceu e está
acontecendo, é fundamental que o Brasil tenha alinhamento sobre essa temática.
De modo que espero que, no primeiro semestre, tenhamos uma definição que possa,
até mesmo, estimular o Congresso a se debruçar sobre a temática, e ter uma
regulação mais detalhada de um tema tão difícil. Sabemos que alguns países têm
regulado e isso tem gerado conflitos. A Alemanha regulou, a União Europeia tem
isso regulado, a Austrália está vivendo também algum tipo de confrontação e o
Reino Unido aprovou algo nesse sentido. Precisamos olhar com atenção, pois
vimos que, certamente, poderemos ter problemas a partir da interpretação da liberdade
de expressão traduzida pelos norte-americanos.
·
O senhor não votou ainda. E quando acredita
que a matéria será votada?
A
partir da devolução da vista do ministro André, certamente haverá uma busca de
encaminhamento de consenso. Ele tem 90 dias para devolver (o processo). Isso
faz algum tempo e teve essa interrupção do período de recesso. Mas não demora.
Isso volta e haverá o devido encaminhamento.
·
As big techs resistem à regulamentação e o
Congresso também está demorando. Agora, temos o governo de Donald Trump
abrigando as big techs e a Meta suspendendo a moderação de publicações em suas
plataformas. Estamos caminhando para um mundo de verdade pulverizada?
Temos
que buscar a regulação. Não é fácil. É desafiadora a questão dos crimes graves,
que não dependem de uma decisão judicial; ou quando a empresa cobra publicidade
ou cobra pelo incremento da divulgação. Há alguns parâmetros que o próprio
Tribunal Superior Eleitoral (TSE), nas eleições, adotou. Então, alguma coisa
sabemos. Mas, também, estamos lidando com uma dinâmica móvel, que é a própria
tecnologia. Alguns desses sistemas desapareceram. Quem fala mais em Orkut? Tem
inteligência artificial — tivemos, inclusive, essa disciplina nas eleições. O
TSE regulou o uso da IA na campanha eleitoral. Então, temos de estar atentos e,
claro, discutirmos, também, quem vai cuidar disso em determinados casos, se é
possível ter uma agência. Todos têm desconfiança em relação à agência ou muitos
têm desconfiança em relação à agência por conta da possibilidade de se tornar
um suprapoder e ser capturada pelas empresas. Ou passar a ser tão
intervencionista que acabará afetando a liberdade de expressão. Acho que é um
aprendizado institucional que condiz com a democracia, mas, certamente, a
preocupação existente e as respostas que foram dadas vão nos ajudar a trilhar
um rumo construtivo.
·
Mas não teria de ser uma tarefa do Poder
Executivo, ou de uma união dos Três Poderes, para discutir a questão de se
criar uma agência? Cabe ao Supremo debater isso?
Também
cabe ao Supremo. Nunca podemos esquecer que uma das competências do STF advém
das chamadas "omissões inconstitucionais" — as pessoas esquecem
disso. Quando há omissão inconstitucional por parte do Executivo ou do
Legislativo, o Supremo pode atuar — e não está abusando. Então, é fundamental
que a gente tenha isso presente. Algumas normas no Brasil só existem a partir
de decisões do Supremo. Por exemplo: o direito de greve do servidor público.
Até hoje, o Congresso não regulou isso e o Supremo mandou aplicar as leis de
greve existentes.
·
Sobre as emendas parlamentares. É outro
tema que estará na ordem do dia, nessa largada de 2025, tanto no Legislativo
quanto no Judiciário. Muita gente aposta em um conflito entre o Legislativo e o
Judiciário por causa das decisões do ministro Flávio Dino, muitas delas já
ratificadas pela Corte. O senhor acredita que haverá briga entre os Poderes?
Não
espero que as coisas tenham esse desfecho. Talvez a gente tenha até que separar
as questões residuais, que são expressivas. Mas da disciplina ou do quadro mais
ou menos de anomia que existia pré-entendimento e pré-legislação que o
Congresso acabou por aprovar.
·
O senhor acha que ficou só um resíduo? E
qual é?
No
que é significativo. Houve, a partir do entendimento do ministro Dino, um
bloqueio na liberação das emendas de comissão — é um valor significativo — e de
todas aquelas que não estavam, de alguma forma, identificadas. E há um
problema: o Congresso, às vezes, informa que essa identificação é difícil e o
ministro Dino está apontando que isso vem em descumprimento daquela primeira
decisão tomada pela ministra (aposentada) Rosa Weber. É preciso olhar isso com
atenção, mas tenho a impressão de que a construção para frente foi feita. E
veja: o Supremo não está interferindo na conceitualização, se deve ou não ter
emendas impositivas. Não é esse o debate, ser contra ou a favor das emendas
impositivas. O que o Supremo está dizendo é que são verbas públicas que devem
ser aplicadas com transparência, com rastreabilidade, com projetos. É isso que
o Supremo está cobrando e, por isso, a censura forte que se fez às chamadas
emendas Pix. É fundamental que essa questão seja vista não como um conflito
entre o Supremo e o Legislativo, mas como um modus procedendi de construir
dentro de um parâmetro de legalidade. A questão de qual é o valor das emendas,
isso é uma decisão do Congresso e do Executivo, embora haja debate sobre os
valores que estão sendo aplicados. E é legítimo que o parlamentar participe das
necessidades de sua base, faça as indicações. Há muitas propostas nesse
sentido, até do ponto de vista conceitual — a ideia, por exemplo, de um banco
de projetos em que as pessoas colocariam lá as emendas. É preciso que haja o
devido equilíbrio para que a gente não crie crises onde não há.
·
Mas não está faltando acerto, diálogo? O
Supremo pode patrocinar esse diálogo?
Talvez
seja discutível e questionável o caso dos valores, mas esse é um diálogo entre
o Executivo e o Legislativo. Se houvesse a aplicação em planos pré-existentes,
o problema seria menor. O ministro Dino até deu o exemplo das chamadas emendas
de bancada, em que os próprios governadores vinham ao Congresso e participavam
da discussão sobre obras estruturantes. Então, não haveria maiores problemas,
porque o parlamentar participa, tem lá o seu selo, sua intervenção. Os governos
ou as regiões participam. É possível construir soluções que não levem a uma
eventual dissipação de recursos, à não aplicação em finalidades prioritárias.
Considerando os nossos apertos orçamentários financeiros, é fundamental que os
recursos sejam bem aplicados.
·
Outro assunto que aparece na ordem do dia é
o 8 de Janeiro de 2023. O presidente Donald Trump concedeu perdão aos que
participaram da invasão ao Capitólio (em 6 de janeiro de 2021). Há algum risco
de o Brasil conceder anistia àqueles que depredaram as sedes dos Três Poderes?
Tem
havido apoio de um grupo no Congresso a essas ideias, mesmo antes do advento da
presidência Trump. Mas é preciso ver tudo isso num amplo contexto, que agora
tem seu novelo deslindado, com a responsabilidade ou a possibilidade de
responsabilização dos idealizadores. Tivemos, primeiramente, aquelas pessoas
que ficaram na frente dos quartéis, meses a fio, mesmo depois da posse do
presidente Lula, até o 8 de Janeiro de 2023. A invasão dos palácios, a aposta
nas GLOs (Garantia da Lei e da Ordem) que sugeriam golpe. Agora, vêm as
revelações de participantes de alta estatura, inclusive militar, e envolvimento
de várias autoridades. As investigações, portanto, como vocês reclamaram,
chegaram aos possíveis mentores intelectuais ou responsáveis, segundo o
relatório da Polícia Federal. É preciso que isso seja deslindado e espero que o
Supremo, ainda este ano, recebendo a denúncia, faça a devida instrução do
processo e julgue a matéria. É inconcebível, incogitável a meu ver, falar-se de
perdão ou anistia nesse contexto.
·
O procurador-geral da República, Paulo
Gonet, vem trabalhando no recesso. A informação que se tem é de que pode vir
alguma coisa pesada contra o ex-presidente Jair Bolsonaro. O senhor acredita em
algo nesse sentido?
Acho
que, ao lado dos dados que estão naquele relatório, certamente a Polícia
Federal anexou novos resultados. Li informações sobre conteúdos, que foram
acrescentados, do telefone do general (Walter) Braga Netto. A PGR está muito
adiantada. E trata-se, também, como sabemos, de um procurador-geral
extremamente ponderado, responsável e equilibrado. Não espero nenhuma
espetacularização na denúncia, mas algo muito calcado em documentos e fatos.
Certamente, o doutor Gonet também tem a coragem moral para pedir absolvição ou
arquivamento daqueles casos que não forem relevantes.
·
A democracia brasileira ainda corre algum
risco, diante dessa tentativa de golpe, inclusive, com supostos planos de
assassinatos de autoridades?
O
governo Bolsonaro foi atípico. Inicialmente, um pouco como testemunha da
história nesses 30, 40 anos, esperava que fosse se valer do quadro dos
militares, mas não com esse viés distorcido. Era natural, porque ele vinha da
caserna, tinha toda essa tradição. Mas é possível que alguns segmentos
militares, ou vinculados a eles, tenham interpretado que voltaram ao poder
pelas mãos do povo. Consideradas todas as distorções e os episódios de
corrupção que ocorreram anteriormente, talvez se animaram de maneira
equivocada. Felizmente, vimos que a maioria das Forças Armadas, de sua própria
cúpula, é composta de pessoas com formação republicana e democrática, que
recusaram qualquer aventura. Acho que, aqui, é um sinal de que precisamos estar
atentos e tomar medidas. Tenho me queixado de que, até agora, não fizemos o
dever de casa em relação à participação dos militares na vida pública, como
também em relação às polícias militares. Tem que haver limite. Se alguém decide
exercer funções administrativas civis, e está na caserna, deve ir para casa e
deixar a carreira militar. Como também a questão das candidaturas, das
inelegibilidades, e parece que estamos devendo isso.
·
É preciso limitar essas candidaturas?
Existe
uma PEC na Câmara, da ex-deputada Perpétua Almeida, do PCdoB, que tratava dessa
temática. Acho que precisa haver uma disciplina. E tão importante quanto a
disciplina em relação aos militares das Forças Armadas, é em relação aos PMs.
Sabemos que, hoje, há uma politização e uma partidarização das PMs. Tantos
capitães, sargentos, cabos e coronéis, que muitas vezes saem para a atividade
partidária e, depois, retornam. Isso não faz sentido. Saiu, tem de ficar fora.
E vimos isso, de alguma forma, no que concerne à polícia do Distrito Federal.
Aquele episódio que tanto lamentamos (8 de Janeiro) ocorreu por descuido da
segurança do sistema dos próprios palácios, mas, também, por conta da omissão
da polícia do DF — dados indicam que foi, em parte, complacente ou conivente.
Temos alertas suficientes. Estamos falando de coisas reais e a gente não vê a
política se debruçar, com a devida prioridade, sobre essa temática.
·
Ou seja, há um serviço pendente que tem de
ser feito para consolidar a defesa da democracia...
A
democracia não pode conviver com aqueles que pregam sua descontinuidade e acho
que estamos atrasados nisso, como estamos atrasados na regulação das redes. O 8
de Janeiro abriu a janela e todos acreditamos que o Congresso ia se debruçar.
Houve aquele avanço no Senado, mas, depois, por dissidências e
desinteligências, a matéria acabou sendo parada na Câmara.
Fonte: Correio Braziliense
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