Governo diz ter assentado 71
mil famílias em 2024, mas MST contesta dados
O NÚMERO DE FAMÍLIAS assentadas
em projetos de reforma agrária no terceiro mandato de Lula é a nova frente de
discórdia entre o governo federal e o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra).
Enquanto o movimento
considera como efetivamente assentadas as famílias alocadas em terras novas,
compradas ou desapropriadas para essa finalidade, o governo coloca na conta a
regularização de famílias que já estavam em lotes. Isso engloba, por exemplo, a
titulação de áreas já ocupadas ou a inclusão de agricultores em programas de
crédito.
Em dezembro, o Ministério do
Desenvolvimento Agrário (MDA) anunciou que 71.414 famílias foram assentadas
durante 2024. O número representaria um aumento de 42% em relação a 2023. A
cifra também seria quase dez vezes superior à de 2022, último ano da gestão do
ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), opositor declarado da redistribuição de
terras no país.
Segundo o MST, esses números
não correspondem à realidade. O movimento calcula que cerca de 100 mil famílias
estão acampadas à espera de terra hoje no país. Dessas, 65 mil são de seus
militantes.
Ceres Hadich, membro da
coordenação nacional do movimento, diz que nenhuma família vinculada ao MST foi
assentada. Ela, aliás, desconhece quaisquer assentamentos criados em
2024. “Efetivamente, desde o ano passado, nenhuma família foi para terra.
Não temos uma foto para mostrar”, diz.
No balanço do governo, das
71 mil famílias registradas como assentadas, 38,9 mil foram “regularizadas – ou
seja, 55% do total. Outras 18,6 mil famílias foram “reconhecidas”” – 26% –, o
que também não entra no cálculo do MST.
“Regularização é o
reconhecimento de gente que já está na terra. Não veio terra nova”, explica o
também dirigente do MST João Paulo Rodrigues. “Tinha uma casa do Minha Casa
Minha Vida. Se colocou uma pessoa nova, eu não posso colocar aquilo como uma
nova casa construída. A casa é a mesma”, compara.
Órgão responsável pelo
assentamento de famílias sem terra, o Incra (Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária) informou à Repórter Brasil que comprou 19,6
mil hectares de terras em 2024. Seriam as primeiras aquisições de áreas para
reforma agrária realizadas desde 2021. Os dados foram enviados em resposta a um
pedido feito por meio da LAI (Lei de Acesso à Informação).
·
Insatisfação com liderança do MDA
A divulgação do número de
famílias assentadas às vésperas da virada do ano ocorreu como uma espécie de
resposta ao endurecimento das críticas do MST ao governo Lula e principalmente
ao ministro do MDA, Paulo Teixeira (PT).
Dias antes, João Pedro
Stédile, líder histórico do MST, chamou Teixeira de incompetente durante
sua participação no podcast Três por Quatro, produzido pelo Brasil de Fato. Reivindicou publicamente uma reunião
com Lula para tratar de acordos firmados com o governo e que não estariam sendo
cumpridos.
Teixeira é militante
histórico do PT. Ele, contudo, tem carreira política ligada ao movimento por
moradia. Sua escolha para a pasta responsável pela reforma agrária nunca foi
bem vista pelo MST e por outros movimentos populares de luta pela terra.
“Eu lembro do acampamento lá
de Parauapebas (PA), que é o maior que nós temos, com quase 3 mil famílias.
Houve um incêndio, morreram nove pessoas. Lula ficou consternado e determinou
que até o Natal todas as famílias deveriam estar em cima da terra. Já se passou
um ano daquela determinação do presidente e nada aconteceu”, reforçou
Stédile, em entrevista à Repórter Brasil, em dezembro.
O ministro Teixeira chegou a
anunciar também em dezembro cinco áreas que seriam redistribuídas a sem-terras.
Havia uma expectativa de que os decretos de desapropriação fossem assinados por
Lula ainda em 2024, beneficiando cerca de 800 famílias. Até hoje, isso não
ocorreu.
“Não seria algo grande para
a necessidade da reforma no país, mas seria algo simbólico”, disse Hadich, que
ainda confia no avanço desses processos.
·
Conceitos amplos
Os conceitos usados pelo
governo para classificar os dados sobre reforma agrária não são novos. Aparecem
há anos em balanços oficiais e, na prática, inflam estatísticas sobre
redistribuição de terras.
Uma “regularização” – a
categoria que engloba mais famílias nas estatísticas de 2024 – pode significar
identificação, delimitação, demarcação ou titulação de terras já ocupadas. Por
exemplo: famílias de um quilombo de ocupação antiga, mas de demarcação recente,
também seriam consideradas assentadas. Nesse caso, não há entrega de um novo
lote a agricultores sem terra.
Já o “reconhecimento” nada
mais é do que entender que famílias já ocupantes de lotes deveriam ser
consideradas como beneficiárias do Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA),
política que garante crédito subsidiado e outros auxílios. Neste caso, também
não há um novo lote entregue ao sem-terra.
No balanço do governo, ainda
existem os chamados “assentamentos diferenciados”. Esses são, geralmente,
terras de mata, inclusive na Amazônia, concedidas a famílias para que possam
ser exploradas de forma ambientalmente regulada. Em 2024, das 71 mil famílias
assentadas, 9,3 mil estavam em assentamentos diferenciados – ou seja, 13% do
total.
Já 4,3 mil famílias – 6% das
71 mil – foram assentadas em “assentamentos tradicionais”, segundo o MDA.
Esses, sim, são assentamentos em que famílias recebem um novo lote do governo
para trabalhar com agricultura. Essas terras são geralmente advindas de
desapropriação ou mesmo de compras de territórios feitas pela União.
Procurado para comentar os
questionamentos do MST sobre balanço da reforma agrária, o MDA não se
pronunciou. Já o Incra culpou o governo Bolsonaro pela “paralisação da reforma
agrária”. Acrescentou que o Programa Terra da Gente e a contratação de novos
servidores por meio do Concurso Público Nacional Unificado (CPNU) devem destravar
esse trabalho.
De acordo com o Incra, até
13 de dezembro, 136,5 mil famílias haviam sido identificadas no país em
situação de vulnerabilidade social no campo, o que inclui acampados, mas também
em situação de conflito fundiário ou vivendo em condições precárias. A íntegra
da resposta pode ser lida aqui.
·
Dificuldades
Segundo Gerson Teixeira,
engenheiro agrônomo e diretor da Associação Brasileira de Reforma Agrária
(Abra), que monitora estatísticas da reforma agrária no país há anos, o
assentamento de famílias em novas terras é cada vez mais raro.
Ele atribui essa situação a
enorme dificuldade para se desapropriar terras no país. Ela está relacionada a
obrigações legais impostas ano após ano pelo Congresso Nacional, as quais
transformaram a reforma agrária numa “galinha dos ovos de ouro de ruralistas”.
“Para desapropriar, o
governo precisa indenizar o dono da terra à vista, com base num cálculo que
inclui uma série de fatores, o que deixa isso caríssimo”, afirma Teixeira. “A
desapropriação surgiu como uma punição ao latifundiário que não utiliza sua
terra. Hoje, é um negócio praticamente impossível de se realizar no Brasil”,
complementa.
De acordo com Teixeira, vale
mais a pena para o governo comprar uma terra para distribuí-la a sem-terras do
que desapropriá-la. O preço de uma grande fazenda no Brasil, no entanto, chega
a atingir a casa do bilhão de reais. Em tempos de arrocho orçamentário e metas
fiscais ousadas, quase não sobra recursos para tal finalidade.
Teixeira pessoalmente disse
não ter tido acesso a informações sobre as compras de 19,6 mil hectares de
terra pelo Incra em 2024 e que, por isso, não poderia confirmá-las.
Acompanhando a execução orçamentária do Incra, ele ratifica só que, sim, houve
compras – o que é um avanço.
Ele lembrou que as aquisições
são pequenas ante à necessidade dos acampados à espera de terra no Brasil e até
para histórico do Incra. Há dez anos, em 2014, o órgão comprou 415 mil hectares
de terra –mais de 20 vezes a área comparada em 2024. Em 2005, pico histórico
das compras, foram 13,4 milhões de hectares – 600 vezes mais.
“Se o conceito original de
desapropriação não for resgatado, será cada vez mais difícil fazer ações de
reforma agrária no Brasil”, alerta.
Fonte: Repórter
Brasil
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