A expansão da febre amarela no
Brasil e a necessidade de uma política integrada de Uma Só Saúde
Organismos
patogênicos têm a capacidade de persistir e se disseminar entre diferentes
hospedeiros, podendo causar doenças em uma grande diversidade de seres vivos.
Os mecanismos de disseminação espacial de patógenos podem envolver diversos
componentes bióticos e abióticos e estão relacionados a fatores climáticos,
como a temperatura e a pluviosidade. Neste contexto, destacam-se dois modelos
de disseminação espacial: a disseminação por contato, quando um patógeno se
dispersa pelo território por continuidade espacial, e a disseminação
hierárquica, quando um patógeno se dispersa por territórios não contíguos,
normalmente carreado por ação antrópica ou grandes migrações animais. Em
situações em que a disseminação apresenta um padrão definido de sentido e
direção, o processo de propagação espacial de uma doença pode ser determinado.
·
A febre amarela
A febre amarela é uma doença causada por um flavivírus
que, no ser humano, se desenvolve na forma grave e apresenta letalidade de 5%.
O vírus tem origem no continente africano e foi trazido para as Américas, junto
com o mosquito vetor Aedes aegypti, provavelmente no século XVI.
Nesse primeiro momento, o vírus circulava entre humanos
e mosquitos da espécie A. aegypti. Por se tratar de uma espécie sinantrópica,
ou seja, por ser um vetor adaptado ao meio urbano, a disseminação do vírus e do
mosquito seguiu um modelo hierárquico, por meio da mobilidade humana, com a
dispersão do vetor e do patógeno pelas maiores cidades do país.
·
O ciclo urbano
Com a expansão urbana, a favorabilidade de habitat para
o mosquito vetor aumentou e grandes epidemias passaram a ser registradas a
partir do século XIX. A febre amarela tornou-se uma doença de importância nacional.
Cidades como Rio de Janeiro (RJ), Campinas (SP), Santos (SP), Recife (PE),
Belém (PA) e Manaus (AM) passaram a registrar um grande número de casos
humanos.
Campanhas de erradicação do mosquito A.
aegypti foram implementadas no país na primeira metade do século XX e
o êxito dessa iniciativa virtualmente eliminou o mosquito vetor do território
brasileiro, cessando assim a transmissão urbana do vírus da febre amarela.
·
O ciclo silvestre
No mesmo período, houve uma mudança importante no ciclo
de manutenção do vírus. Devido à exposição recorrente de primatas neotropicais
a mosquitos infectados em ambiente urbano ou periurbano e à subsequente
exposição desses primatas a mosquitos da fauna silvestre, houve a adaptação do
vírus para mosquitos neotropicais, tais como os pertencentes aos gêneros Haemagogus e Sabethes,
estabelecendo, a partir desse momento, o ciclo silvestre do vírus da febre
amarela.
Nessa situação, os primatas neotropicais desempenham o
papel de amplificadores, enquanto os humanos se tornam hospedeiros acidentais
no ciclo. A disseminação do patógeno passou a ocorrer por contato, e o vírus se
propagou pelo meio silvestre, carreado por mosquitos, em ciclos epizoóticos,
nos quais grupos de primatas neotropicais eram infectados e se tornavam fonte de
infecção para mais mosquitos, amplificando, assim, o número de vetores
infectados. Esses vetores, por sua vez, migraram para áreas florestais,
infectando outros grupos de primatas suscetíveis. Quando infectados, os
primatas podem desenvolver um quadro mórbido severo ou leve, o que resulta em
morte ou em animais recuperados e imunes, que não seriam mais suscetíveis a uma
segunda infecção. Em ambos os desfechos, o processo epizoótico – ou seja, em
vários animais de uma mesma região – consome todos os animais suscetíveis,
fazendo com que o vírus não seja mais mantido naquela localidade.
Neste ciclo, o vírus da febre amarela se dissemina
espacialmente por territórios onde há populações de primatas suscetíveis; ou
seja, o processo de propagação do vírus tem sentido e direção, percorrendo
grandes distâncias e perdurando por muitos anos. E foi isso o que aconteceu no
início do século XX, quando o vírus se propagou por uma vasta área do país,
especialmente nas regiões Sudeste e Sul do Brasil, até que o processo foi
autolimitado e os eventos epizoóticos começaram a ser reduzidos em todo o
território nacional, com exceção do bioma Amazônico. Na floresta amazônica, o
vírus da febre amarela passou a circular em uma condição enzoótica, ou seja,
continuamente em alguns animais dessa região.
Não há uma determinação científica sobre o motivo do
ciclo ter se tornado enzoótico na floresta amazônica. Hipóteses tratam sobre a
maior biodiversidade e sobre a grande extensão territorial da floresta, o que
poderia causar um efeito de diluição dos hospedeiros amplificadores e diminuir
as taxas de transmissão, causando a perpetuação do agente viral, de forma menos
intensa, mas contínua.
Ao longo de mais de 70 anos, o vírus da febre amarela
se restringiu, basicamente, a esse modelo de circulação enzoótica no bioma
Amazônico e partes limítrofes do bioma Cerrado.
·
A reemergência da Febre Amarela
extra-amazônica
No Brasil, entre as décadas de 1950 e 2000, os casos de
febre amarela em humanos ou em primatas neotropicais se restringiram à região
amazônica e, esporadicamente, às regiões limítrofes. Porém, no início do século
XXI, esse cenário mudou.
Na segunda metade do século XX, provavelmente o vírus
da febre amarela tenha se propagado para fora da floresta amazônica, mas,
durante esse período, não há registros de que essa propagação tenha atingido o
bioma Mata Atlântica.
Durante as duas primeiras décadas do século XXI, a
extensão territorial da propagação viral foi sendo incrementada a cada novo
período sazonal, cruzando a região Centro-Oeste do Brasil – o que pode estar
associado à expansão da agricultura em áreas do cerrado, na região do MATOPIBA
(estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia). Em 2008, alcançou o oeste dos
estados da Bahia, Minas Gerais, São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul, também
afetando o Paraguai e a Argentina. Nos anos de 2016 e 2017, uma nova onda de
propagação atingiu os estados do Espírito Santo, Rio de Janeiro e a Região
Metropolitana de São Paulo.
Essa mesma onda de propagação se expandiu, nos anos
seguintes, para o litoral do Paraná, de Santa Catarina e também para a região
serrana do Rio Grande do Sul, chegando ao extremo sul da Mata Atlântica, na
região limítrofe ao bioma Pampa, no ano de 2024.
Nesse percurso, o vírus provocou mais de 2.000 casos
graves em humanos, resultando em mais de 700 mortes. Houve mais óbitos em
pessoas por febre amarela entre os anos de 2016 e 2020 do que o acumulado nos
últimos 70 anos.
·
Devastação da fauna de primatas
neotropicais
Se o impacto do vírus em humanos foi algo sem
precedentes, para algumas populações de primatas neotropicais, o impacto teve
uma magnitude muito maior. Durante a expansão territorial, a doença se propagou
atingindo, em especial, a população de primatas da espécie Alouatta
guariba, conhecida popularmente como bugio-ruivo ou guariba. Para esse
animal, a letalidade da febre amarela estima-se próxima de 100%.
O número total de animais mortos não foi confirmado,
mas é da ordem de duas dezenas de milhares de bugios-ruivos mortos, por toda a
Mata Atlântica.
·
O que mudou?
A grande questão sobre a epidemia de febre amarela que
se iniciou em 2016 é: qual fator impediu, por 70 anos, que o vírus se
propagasse pela Mata Atlântica e por que esse fator não foi efetivo em 2016?
Para elucidar essa questão, os temas abordados em Saúde Única ganham
atenção quando se trata de saúde humana, saúde dos animais de produção e saúde
dos vegetais cultivados em monoculturas, mas pouco ainda é tratado sobre a
regulação ecossistêmica do ambiente. Dentro do contexto de Saúde Única, a
manutenção dos processos ecossistêmicos é um aspecto chave, porém, no geral,
eles infelizmente foram negligenciados.
Se tomarmos como parâmetro os nove limites planetários,
ou seja, processos ecossistêmicos globais que regulam a estabilidade e a
resiliência do sistema terrestre (Rockström et al., 2009), os seis limites
planetários — Uso da Terra, Uso da Água Doce, Integridade da Biosfera, Ciclos
Biogeoquímicos, Poluição e Clima — foram ultrapassados em 2023, o que nos traz
um alerta. As mudanças ambientais globais poderão ser irreversíveis, uma vez
que esses processos estão interligados e podem agir sinergicamente, além de
haver processos ainda não mapeados.
Por exemplo, em relação às mudanças climáticas, houve
um aumento global da temperatura média de 1,45ºC, conforme o Planetary Health Check, publicado
pelo Potsdam Institute for Climate
Impact Research.
Esse aumento pode impactar o controle de epidemias e zoonoses ao favorecer ou
potencializar o sucesso reprodutivo de vetores. Associado ao aumento da
temperatura média global, as mudanças no uso da terra — que é outro limite
planetário ultrapassado —, ao converter ecossistemas naturais ricos em
biodiversidade e com alta capacidade de autorregulação em monoculturas clonais
que necessitam de manejo e controle constantes, comprometem ainda mais a
capacidade de regulação ecossistêmica e a provisão dos serviços ecossistêmicos.
Neste contexto, retornando aos flavivírus, como o vírus
da dengue, do zika e da febre amarela, eles precisam se perpetuar nos mosquitos
vetores, sendo a fase crítica aquela que corresponde à transmissão e manutenção
do vírus através da via transovariana, com a transmissão do vírus, pela fêmea,
para os ovos. Assim, o vírus precisa se manter viável nos ovos e, em seguida,
em todos os estágios larvários para, finalmente, continuar viável na fase
adulta do mosquito. Se a transmissão transovariana ou a perpetuação do vírus
nas fases larvárias não ocorrer, o vírus é eliminado do território.
A temperatura do ar é um fator crucial. Como exemplo,
para o flavivírus da dengue, temperaturas iguais ou inferiores a 16°C são
deletérias e impeditivas para a manutenção do vírus entre gerações de
mosquitos.
Portanto, é possível levantar a hipótese de que as
temperaturas do período de inverno, em regiões da Mata Atlântica, impediam a
propagação do vírus da febre amarela. A doença tinha sucesso em se propagar
durante o verão, mas era eliminada durante a estação fria. Talvez o aumento da
temperatura mínima e média no período do inverno, ao longo da década de 2010,
tenha tornado o território, antes refratário, do Sudeste e Sul do Brasil,
permeável à passagem e manutenção do vírus. Essa mudança poderia ter ocorrido
com a elevação da temperatura em aproximadamente 2°C.
Associado a esse fator, tem-se o desmatamento da Mata
Atlântica. A fragmentação da floresta isola os grupos de bugios-ruivos e
diminui substancialmente a biodiversidade e a proteção que a floresta pode
oferecer através do efeito de diluição.
Por último, com a ausência de circulação do vírus no
ambiente extra-amazônico por 70 anos, as populações de bugios-ruivos eram
compostas, em sua totalidade, por animais suscetíveis.
A somatória desses fatores pode compor uma importante
hipótese para explicar o fenômeno do intenso processo epizoótico observado no
Sudeste do Brasil entre os anos de 2016 e 2020.
·
Saúde Única
Deve-se atentar ao fato de que a febre amarela em
humanos é imunoprevenível, pois há uma vacina de alta eficiência disponível no
Sistema Único de Saúde brasileiro. No entanto, a vacinação deve ser realizada
juntamente com as campanhas educativas e, muitas vezes, com o deslocamento dos
agentes de saúde às comunidades rurais.
Assim, a determinação dos locais exatos onde há
circulação epizoótica do vírus deve ser feita com acurácia, para maximizar o
esforço operacional da vigilância em saúde. O encontro e diagnóstico de
primatas neotropicais infectados pelo vírus são um indicador epidemiológico
importante para a determinação da circulação viral, mas isso, em si, não é uma
abordagem de Uma Só Saúde (ou Saúde Única); trata-se apenas da utilização da
vigilância de epizootias como um indicador epidemiológico.
Tão importante quanto isso é o monitoramento de
primatas hígidos — isto é, sadios. No entanto, esse componente não está contido
no Programa
Nacional de Vigilância da Febre Amarela, pois entende-se que o monitoramento de
animais silvestres é de competência dos órgãos governamentais de Meio Ambiente.
No contexto de Saúde Única, os órgãos governamentais de
Saúde e Meio Ambiente deveriam desenvolver atividades em conjunto, uma vez que
as equipes de Saúde detêm a informação sobre a ocorrência de epizootias e as
equipes de Meio Ambiente detêm a informação sobre a ocorrência de grupos de
primatas neotropicais hígidos. Ou seja, esses dois entes precisam intercambiar
informações de forma institucional. Também é imprescindível a integração com
organizações não governamentais e universidades.
A imunização de primatas neotropicais com a vacina
17DD, utilizada em humanos, já se mostrou eficiente e há modelos matemáticos
demonstrando que a imunização de parte das populações in situ de
bugios-ruivos poderia bloquear a propagação do vírus, o que seria uma
estratégia de promoção de saúde silvestre que resultaria em promoção de saúde
humana.
Assim, um programa efetivo de Saúde Única para o
combate à febre amarela precisa de uma integração entre Saúde e Meio Ambiente,
com objetivo de promoção da saúde silvestre, em especial com objetivo de
conservar o bugio-ruivo e recompor a floresta atlântica.
Os órgãos de saúde pública precisam integrar a promoção
da saúde silvestre como um componente de grande importância para a saúde
coletiva.
Fonte: Por Adriano
Pinter e Angela Fushita, no Le Monde
Nenhum comentário:
Postar um comentário