quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Armando Alvares Garcia Júnior: O declínio do multilateralismo e a ascensão dos interesses nacionais

O início de 2025 marca uma encruzilhada nas relações internacionais. As decisões políticas das grandes potências, capitaneadas pelo retorno de Donald Trump à Casa Branca e pelo avanço de lideranças autoritárias em diversas regiōes, estão redefinindo os valores do multilateralismo e promovendo uma visão mais transacional do poder.

Durante décadas, o multilateralismo foi o alicerce da cooperação internacional, promovendo “soluções conjuntas” para desafios globais, ainda que a voz dos países em desenvolvimento tenha sido historicamente mais fraca em comparação à dos países desenvolvidos. Contudo, esse modelo está em declínio, à medida que os interesses nacionais passam a guiar cada vez mais as decisões que deveriam ser coletivas, marcando uma mudança significativa de paradigma.

·        BRICS propõe agenda que reflita maior equidade global

O enfraquecimento da atual ordem multilateral reflete-se em alianças como o BRICS+, composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, ao qual se juntaram Egito, Irã, Emirados Árabes Unidos e Etiópia em janeiro de 2024, e Indonésia em janeiro de 2025. Essa coalizão busca fortalecer a posição do Sul Global e reivindicar uma reforma na ordem internacional.

O grupo questiona um sistema de regras que privilegia os interesses das grandes potências, ignorando as necessidades e demandas dos países em desenvolvimento. Nesse sentido, desempenha um papel central na articulação de uma agenda que reflita o desejo de maior equidade global. Ainda assim, não substitui coalizões mais amplas, como o Grupo dos 77 (G77), criado em 1964 para promover os interesses coletivos dos países em desenvolvimento no âmbito das Nações Unidas.

A transição para políticas centradas em interesses nacionais é particularmente evidente nas oscilações dos Estados Unidos em tratados fundamentais. O país retirou-se formalmente do Acordo de Paris durante o primeiro governo Trump (2016-2020), retornando apenas em 2021 sob Joe Biden. Da mesma forma, Trump anunciou a saída dos EUA da Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2020, sob alegações de má gestão da pandemia e influência da China, decisão revertida também em 2021. Não obstante, em seu primeiro dia de mandato (20 de janeiro de 2025), Trump assinou diversas ordens executivas, incluindo, novamente, a retirada do país de ambos os tratados.

Tensões comerciais entre Estados Unidos e China, assim como entre União Europeia e China, também ilustram a transição para políticas protecionistas, que priorizam vantagens econômicas imediatas em detrimento da cooperação global. Essa abordagem, embora possa atender a objetivos nacionais de curto prazo, dificulta a capacidade de responder de forma conjunta a desafios sistêmicos, como mudanças climáticas, migrações em massa e crises sanitárias.

O enfraquecimento do multilateralismo tradicional apresenta, portanto, desafios nada desprezíveis para a gestão coletiva de problemas globais. À medida que o equilíbrio entre interesses nacionais e a colaboração internacional se torna cada vez mais difícil, o futuro da governança global dependerá de uma reconciliação entre essas duas forças opostas, capaz de garantir soluções sustentáveis e inclusivas.

Trump reforça bilateralismo agressivo, com evidente desproporção de forças

A postura pragmática e empresarial de Trump reforça essa tendência nacionalista ao adotar um bilateralismo agressivo, baseado em negociações caso a caso (país a país, com evidente desproporção de forças), em vez de priorizar a construção de consensos internacionais. Embora essa abordagem seja prática e direta, ela acarreta graves consequências para a estabilidade global, ao dificultar ações coordenadas frente a problemas coletivos.

Embora imperfeito, o multilateralismo proporciona previsibilidade e estabilidade. Sua substituição por interesses puramente nacionais compromete a relevância das soluções para problemas globais, resultando em decisões potencialmente erráticas e conflitantes.

As emissões de gases de efeito estufa continuam a aumentar, enquanto a polarização política que se observa em todos os lados dificulta a implementação de soluções eficazes. O distanciamento dos Estados Unidos de tratados ambientais fundamentais, como a Convenção de Basileia (que regula o transporte transfronteiriço de resíduos perigosos) e a Convenção de Estocolmo (que visa eliminar poluentes orgânicos persistentes), ambos assinados, mas não ratificados pelo país, enfraquece a confiança nos compromissos internacionais. Como uma das maiores economias e principais emissores de poluentes do planeta, a liderança norte-americana é essencial para impulsionar uma governança ambiental eficaz, capaz de enfrentar os desafios climáticos de maneira coletiva e integrada.

·        Aumento do protecionismo exacerba as desigualdades

Por outro lado,o aumento do protecionismo, liderado pelas grandes economias, inaugurou uma nova era de “guerras comerciais” que afeta particularmente os países do Sul Global. Esse protecionismo, manifestado em tarifas sobre produtos essenciais como alimentos e tecnologia, exacerba as desigualdades econômicas (assimetrias) e ameaça a estabilidade de regiões vulneráveis.

De fato, a tecnologia tornou-se um campo de competição estratégica. A corrida pelo domínio da inteligência artificial (IA) e dos semicondutores está redefinindo as dinâmicas geopolíticas. A influência de tecnomagnatas como Elon Musk também levanta questionamentos sobre o equilíbrio entre poder público e privado, e sobre a capacidade dos Estados de regular essas influências.

As economias emergentes enfrentam os impactos combinados da crise climática, das guerras comerciais e da redução da ajuda internacional. Isso agrava as desigualdades existentes, deixando muitas nações em uma posição de vulnerabilidade extrema. A transição para energias renováveis e o fortalecimento da resiliência climática são prioridades urgentes para essas regiões.

·        A chave é fortalecer o multilateralismo

A crescente polarização ideológica e o aumento de discursos de ódio estão afetando a coesão social em numerosos países. As redes sociais, embora tenham transformado a participação nos debates públicos, também estão facilitando a propagação de desinformação e teorias da conspiração, minando a confiança nas instituições democráticas.

A nova ordem mundial é uma realidade em construção, marcada por tensões, desigualdades e desafios enormes. A transição para um sistema mais transacional reflete uma luta pelo poder que coloca em risco os valores democráticos e a capacidade de cooperação internacional. Neste cenário, é crucial refletir sobre estratégias para superar a fragmentação e avançar rumo a um futuro mais inclusivo e sustentável.

A chave está em fortalecer o multilateralismo, fomentar a governança tecnológica e garantir que as vozes das comunidades mais afetadas, especialmente no Sul Global, sejam ouvidas e consideradas nos processos globais de tomada de decisão.

 

¨      Democracia versus oligarquia, a luta do século, por Thomas Piketty

Na véspera da chegada ao poder de Donald Trump, Elon Musk e os chefes tecnológicos uniram-se ao trumpismo, Joe Biden lançou, durante o seu discurso de despedida, um vigoroso alerta contra a emergência de uma nova “oligarquia tecno-industrial” que ameaça o ideal democrático americano. Para o presidente cessante, a extrema concentração de riqueza e poder corre o risco de pôr em causa “os nossos direitos básicos, as nossas liberdades e a possibilidade de todos terem uma oportunidade justa de sair dessa situação”.

Biden não está errado. O problema é que ele pouco fez para se opor à deriva oligárquica em curso no seu país e à escala global. Na década de 1930, seu antecessor Roosevelt, também muito preocupado com tais excessos, não se contentava em fazer discursos. Sob a sua liderança, os Democratas embarcaram numa política vigorosa de redução das desigualdades sociais (com as taxas de imposto aplicadas aos rendimentos mais elevados a rondar os 70%-80% durante meio século) e de investimento em infra-estruturas públicas, saúde e educação.

Na década de 1980, o republicano Ronald Reagan, jogando habilmente com o nacionalismo e o sentimento de recuperação, decidiu pôr fim ao New Deal rooseveltiano. O problema é que os Democratas, longe de defenderem esta herança, na verdade contribuíram para legitimar e perpetuar a viragem reaganista, especialmente sob as presidências Clinton (1993-2001) e Obama (2009-2017).

Biden tem sido frequentemente descrito como mais intervencionista economicamente do que os seus antecessores. Isto não é totalmente falso, exceto por duas advertências importantes. Biden é um dos democratas que votou a favor da Lei de Reforma Tributária de 1986, a lei fundadora do Reaganismo, aquela que demoliu a progressividade fiscal rooseveltiana ao reduzir a taxa máxima de imposto para 28%. Todos podem estar errados, mas o problema é que nunca achou útil explicar que cometeu um erro ou que mudou de ideia. No entanto, se não financiarmos os nossos gastos, inevitavelmente alimentaremos a inflação, outro assunto importante sobre o qual ainda se aguarda a contrição de Biden.

Além disso, o famoso plano de recuperação da administração cessante, estranhamente denominado “Lei de Redução da Inflação”, consistia principalmente na distribuição de subsídios públicos para a acumulação de capital privado. Não há dúvida de que a administração Trump levará esta aliança desenfreada entre o Estado federal e os interesses privados ao seu clímax.

Os democratas podem mudar de rumo no futuro? O peso do dinheiro privado na política americana, tão difundido entre os Democratas como entre os Republicanos (ou ainda mais, mesmo que tenhamos de ter em conta o recente desenvolvimento de pequenas doações), exige cautela. As hipóteses de o partido voltar ao bom caminho são, no entanto, reais, por um lado porque a mistura de nacionalismo e ultraliberalismo que está a chegar ao poder em Washington não resolverá nenhum dos desafios sociais e ambientais do nosso tempo, e por outro lado por outro lado, porque a recusa da oligarquia continua a ser o fundamento da identidade do país.

Em 2020, a dupla Bernie Sanders-Elizabeth Warren propôs alargar o New Deal Rooseveltiano, com o bónus adicional de um mega-imposto sobre a riqueza (com uma taxa que chega a 8% ao ano para os bilionários, um nível nunca alcançado na Europa), um enorme plano de investimento em universidades e infra-estruturas públicas, e a invenção de uma verdadeira democracia económica ao estilo americano (com direitos de voto significativos para os trabalhadores nos conselhos de administração das empresas, como é o caso da prática na Alemanha ou na Suécia há décadas). Os dois candidatos ficaram quase em igualdade com Biden e venceram massivamente entre os mais jovens. Decepcionados com a experiência Biden-Harris, mobilizaram-se muito pouco em 2024, o que custou caro aos Democratas. Não é de todo impossível que uma candidatura do tipo Sanders-Warren vença no futuro.

E, acima de tudo, temos de contar com o resto do mundo, que poderá muito bem ser responsável pelas mudanças políticas mais progressistas nas próximas décadas. Certamente não deveríamos esperar muito das oligarquias autoritárias em que a China e a Rússia se tornaram hoje. Mas também existem, nos BRICS, democracias vibrantes que reúnem mais eleitores do que todos os países ocidentais juntos, começando pela Índia, Brasil e África do Sul. Em 2024, foi o Brasil quem apoiou a ideia de um imposto global sobre os bilionários no G20.

A iniciativa foi infelizmente rejeitada pelo Ocidente, que, no mesmo ano, também considerou sensato opor-se à proposta convenção fiscal da ONU, apenas para preservar o seu pequeno monopólio na cooperação fiscal internacional dentro do clube dos países ricos que é a OCDE. acima de tudo, para evitar qualquer redistribuição significativa de receitas à escala global. Se, dentro de alguns anos, a Índia se virar para a esquerda e enviar os empresários nacionalistas do BJP para a oposição, uma hipótese cada vez mais plausível, então a pressão do Sul a favor da justiça fiscal e climática poderá muito bem tornar-se irresistível.

Nesta luta global pela democracia contra a oligarquia, resta esperar que os europeus saiam da sua letargia e desempenhem plenamente o seu papel. A Europa inventou o Estado-providência e a revolução social-democrata no século XX, e é a Europa quem tem mais a perder com o hipercapitalismo trumpista. Mais uma vez, devemos permanecer optimistas: desde a Covid-19, a opinião pública tem esperado muito da União Europeia e tem sido menos cautelosa do que os seus líderes. Esperemos que estes últimos estejam à altura da situação e consigam, em 2025, libertar-se da desconfiança mútua e da autoflagelação permanente que os impedem de avançar.

 

Fonte: The Conversation/Le Monde

 

 

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