Armando Alvares
Garcia Júnior: O declínio do multilateralismo e a ascensão dos interesses
nacionais
O início de 2025
marca uma encruzilhada nas relações internacionais. As decisões políticas das
grandes potências, capitaneadas pelo retorno de Donald Trump à Casa Branca e
pelo avanço de lideranças autoritárias em diversas regiōes, estão redefinindo
os valores do multilateralismo e promovendo uma visão mais transacional do poder.
Durante décadas, o
multilateralismo foi o alicerce da cooperação internacional, promovendo
“soluções conjuntas” para desafios globais, ainda que a voz dos países em
desenvolvimento tenha sido historicamente mais fraca em comparação à dos países
desenvolvidos. Contudo, esse modelo está em declínio, à medida que os
interesses nacionais passam a guiar cada vez mais as decisões que deveriam ser
coletivas, marcando uma mudança significativa de paradigma.
·
BRICS
propõe agenda que reflita maior equidade global
O enfraquecimento
da atual ordem multilateral reflete-se em alianças como o BRICS+, composto por
Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, ao qual se juntaram Egito, Irã,
Emirados Árabes Unidos e Etiópia em janeiro de 2024, e Indonésia em janeiro de
2025. Essa coalizão busca fortalecer a posição do Sul Global e reivindicar uma
reforma na ordem internacional.
O grupo questiona
um sistema de regras que privilegia os interesses das grandes potências,
ignorando as necessidades e demandas dos países em desenvolvimento. Nesse
sentido, desempenha um papel central na articulação de uma agenda que reflita o
desejo de maior equidade global. Ainda assim, não substitui coalizões mais
amplas, como o Grupo dos 77 (G77), criado em 1964 para promover os interesses
coletivos dos países em desenvolvimento no âmbito das Nações Unidas.
A transição para
políticas centradas em interesses nacionais é particularmente evidente nas
oscilações dos Estados Unidos em tratados fundamentais. O país retirou-se
formalmente do Acordo de Paris durante o primeiro governo Trump (2016-2020),
retornando apenas em 2021 sob Joe Biden. Da mesma forma, Trump anunciou a saída
dos EUA da Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2020, sob alegações de má
gestão da pandemia e influência da China, decisão revertida também em 2021. Não
obstante, em seu primeiro dia de mandato (20 de janeiro de 2025), Trump assinou
diversas ordens executivas, incluindo, novamente, a retirada do país de ambos
os tratados.
Tensões comerciais
entre Estados Unidos e China, assim como entre União Europeia e China, também
ilustram a transição para políticas protecionistas, que priorizam vantagens
econômicas imediatas em detrimento da cooperação global. Essa abordagem, embora
possa atender a objetivos nacionais de curto prazo, dificulta a capacidade de
responder de forma conjunta a desafios sistêmicos, como mudanças climáticas,
migrações em massa e crises sanitárias.
O enfraquecimento
do multilateralismo tradicional apresenta, portanto, desafios nada desprezíveis
para a gestão coletiva de problemas globais. À medida que o equilíbrio entre
interesses nacionais e a colaboração internacional se torna cada vez mais
difícil, o futuro da governança global dependerá de uma reconciliação entre
essas duas forças opostas, capaz de garantir soluções sustentáveis e
inclusivas.
Trump reforça
bilateralismo agressivo, com evidente desproporção de forças
A postura
pragmática e empresarial de Trump reforça essa tendência nacionalista ao adotar
um bilateralismo agressivo, baseado em negociações caso a caso (país a país,
com evidente desproporção de forças), em vez de priorizar a construção de
consensos internacionais. Embora essa abordagem seja prática e direta, ela
acarreta graves consequências para a estabilidade global, ao dificultar ações
coordenadas frente a problemas coletivos.
Embora imperfeito,
o multilateralismo proporciona previsibilidade e estabilidade. Sua substituição
por interesses puramente nacionais compromete a relevância das soluções para
problemas globais, resultando em decisões potencialmente erráticas e
conflitantes.
As emissões de
gases de efeito estufa continuam a aumentar, enquanto a polarização política
que se observa em todos os lados dificulta a implementação de soluções
eficazes. O distanciamento dos Estados Unidos de tratados ambientais
fundamentais, como a Convenção de Basileia (que regula o transporte
transfronteiriço de resíduos perigosos) e a Convenção de Estocolmo (que visa
eliminar poluentes orgânicos persistentes), ambos assinados, mas não
ratificados pelo país, enfraquece a confiança nos compromissos internacionais.
Como uma das maiores economias e principais emissores de poluentes do planeta,
a liderança norte-americana é essencial para impulsionar uma governança
ambiental eficaz, capaz de enfrentar os desafios climáticos de maneira coletiva
e integrada.
·
Aumento
do protecionismo exacerba as desigualdades
Por outro lado,o
aumento do protecionismo, liderado pelas grandes economias, inaugurou uma nova
era de “guerras comerciais” que afeta particularmente os países do Sul Global.
Esse protecionismo, manifestado em tarifas sobre produtos essenciais como
alimentos e tecnologia, exacerba as desigualdades econômicas (assimetrias) e
ameaça a estabilidade de regiões vulneráveis.
De fato, a
tecnologia tornou-se um campo de competição estratégica. A corrida pelo domínio
da inteligência artificial (IA) e dos semicondutores está redefinindo as
dinâmicas geopolíticas. A influência de tecnomagnatas como Elon Musk também
levanta questionamentos sobre o equilíbrio entre poder público e privado, e
sobre a capacidade dos Estados de regular essas influências.
As economias
emergentes enfrentam os impactos combinados da crise climática, das guerras
comerciais e da redução da ajuda internacional. Isso agrava as desigualdades
existentes, deixando muitas nações em uma posição de vulnerabilidade extrema. A
transição para energias renováveis e o fortalecimento da resiliência climática
são prioridades urgentes para essas regiões.
·
A
chave é fortalecer o multilateralismo
A crescente
polarização ideológica e o aumento de discursos de ódio estão afetando a coesão
social em numerosos países. As redes sociais, embora tenham transformado a
participação nos debates públicos, também estão facilitando a propagação de
desinformação e teorias da conspiração, minando a confiança nas instituições
democráticas.
A nova ordem
mundial é uma realidade em construção, marcada por tensões, desigualdades e
desafios enormes. A transição para um sistema mais transacional reflete uma
luta pelo poder que coloca em risco os valores democráticos e a capacidade de
cooperação internacional. Neste cenário, é crucial refletir sobre estratégias
para superar a fragmentação e avançar rumo a um futuro mais inclusivo e
sustentável.
A chave está em
fortalecer o multilateralismo, fomentar a governança tecnológica e garantir que
as vozes das comunidades mais afetadas, especialmente no Sul Global, sejam
ouvidas e consideradas nos processos globais de tomada de decisão.
¨
Democracia versus
oligarquia, a luta do século, por Thomas Piketty
Na véspera da chegada
ao poder de Donald Trump, Elon Musk e os chefes tecnológicos uniram-se ao
trumpismo, Joe Biden lançou, durante o seu discurso de despedida, um vigoroso
alerta contra a emergência de uma nova “oligarquia tecno-industrial” que ameaça
o ideal democrático americano. Para o presidente cessante, a extrema
concentração de riqueza e poder corre o risco de pôr em causa “os nossos
direitos básicos, as nossas liberdades e a possibilidade de todos terem uma
oportunidade justa de sair dessa situação”.
Biden não está
errado. O problema é que ele pouco fez para se opor à deriva oligárquica em
curso no seu país e à escala global. Na década de 1930, seu antecessor
Roosevelt, também muito preocupado com tais excessos, não se contentava em
fazer discursos. Sob a sua liderança, os Democratas embarcaram numa política
vigorosa de redução das desigualdades sociais (com as taxas de imposto
aplicadas aos rendimentos mais elevados a rondar os 70%-80% durante meio
século) e de investimento em infra-estruturas públicas, saúde e educação.
Na década de 1980,
o republicano Ronald Reagan, jogando habilmente com o nacionalismo e o
sentimento de recuperação, decidiu pôr fim ao New Deal rooseveltiano. O
problema é que os Democratas, longe de defenderem esta herança, na verdade
contribuíram para legitimar e perpetuar a viragem reaganista, especialmente sob
as presidências Clinton (1993-2001) e Obama (2009-2017).
Biden tem sido
frequentemente descrito como mais intervencionista economicamente do que os
seus antecessores. Isto não é totalmente falso, exceto por duas advertências
importantes. Biden é um dos democratas que votou a favor da Lei de Reforma
Tributária de 1986, a lei fundadora do Reaganismo, aquela que demoliu a
progressividade fiscal rooseveltiana ao reduzir a taxa máxima de imposto para
28%. Todos podem estar errados, mas o problema é que nunca achou útil explicar
que cometeu um erro ou que mudou de ideia. No entanto, se não financiarmos os
nossos gastos, inevitavelmente alimentaremos a inflação, outro assunto
importante sobre o qual ainda se aguarda a contrição de Biden.
Além disso, o
famoso plano de recuperação da administração cessante, estranhamente denominado
“Lei de Redução da Inflação”, consistia principalmente na distribuição de
subsídios públicos para a acumulação de capital privado. Não há dúvida de que a
administração Trump levará esta aliança desenfreada entre o Estado federal e os
interesses privados ao seu clímax.
Os democratas podem
mudar de rumo no futuro? O peso do dinheiro privado na política americana, tão
difundido entre os Democratas como entre os Republicanos (ou ainda mais, mesmo
que tenhamos de ter em conta o recente desenvolvimento de pequenas doações),
exige cautela. As hipóteses de o partido voltar ao bom caminho são, no entanto,
reais, por um lado porque a mistura de nacionalismo e ultraliberalismo que está
a chegar ao poder em Washington não resolverá nenhum dos desafios sociais e
ambientais do nosso tempo, e por outro lado por outro lado, porque a recusa da
oligarquia continua a ser o fundamento da identidade do país.
Em 2020, a dupla
Bernie Sanders-Elizabeth Warren propôs alargar o New Deal Rooseveltiano, com o
bónus adicional de um mega-imposto sobre a riqueza (com uma taxa que chega a 8%
ao ano para os bilionários, um nível nunca alcançado na Europa), um enorme
plano de investimento em universidades e infra-estruturas públicas, e a
invenção de uma verdadeira democracia económica ao estilo americano (com
direitos de voto significativos para os trabalhadores nos conselhos de
administração das empresas, como é o caso da prática na Alemanha ou na Suécia
há décadas). Os dois candidatos ficaram quase em igualdade com Biden e venceram
massivamente entre os mais jovens. Decepcionados com a experiência
Biden-Harris, mobilizaram-se muito pouco em 2024, o que custou caro aos
Democratas. Não é de todo impossível que uma candidatura do tipo Sanders-Warren
vença no futuro.
E, acima de tudo,
temos de contar com o resto do mundo, que poderá muito bem ser responsável
pelas mudanças políticas mais progressistas nas próximas décadas. Certamente
não deveríamos esperar muito das oligarquias autoritárias em que a China e a
Rússia se tornaram hoje. Mas também existem, nos BRICS, democracias vibrantes
que reúnem mais eleitores do que todos os países ocidentais juntos, começando pela
Índia, Brasil e África do Sul. Em 2024, foi o Brasil quem apoiou a ideia de um
imposto global sobre os bilionários no G20.
A iniciativa foi
infelizmente rejeitada pelo Ocidente, que, no mesmo ano, também considerou
sensato opor-se à proposta convenção fiscal da ONU, apenas para preservar o seu
pequeno monopólio na cooperação fiscal internacional dentro do clube dos países
ricos que é a OCDE. acima de tudo, para evitar qualquer redistribuição
significativa de receitas à escala global. Se, dentro de alguns anos, a Índia
se virar para a esquerda e enviar os empresários nacionalistas do BJP para a
oposição, uma hipótese cada vez mais plausível, então a pressão do Sul a favor
da justiça fiscal e climática poderá muito bem tornar-se irresistível.
Nesta luta global
pela democracia contra a oligarquia, resta esperar que os europeus saiam da sua
letargia e desempenhem plenamente o seu papel. A Europa inventou o
Estado-providência e a revolução social-democrata no século XX, e é a Europa
quem tem mais a perder com o hipercapitalismo trumpista. Mais uma vez, devemos
permanecer optimistas: desde a Covid-19, a opinião pública tem esperado muito
da União Europeia e tem sido menos cautelosa do que os seus líderes. Esperemos
que estes últimos estejam à altura da situação e consigam, em 2025, libertar-se
da desconfiança mútua e da autoflagelação permanente que os impedem de avançar.
Fonte: The
Conversation/Le Monde
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