As famílias de
vítimas da ditadura que esperam novas certidões de óbito reconhecendo crimes do
regime
A certidão de óbito
do ex-deputado Rubens Paiva, cuja história é contada no filme Ainda Estou Aqui, foi retificada na
quinta-feira (23/1). A informação foi revelada pela TV Globo e confirmada pela
BBC News Brasil.
A família de Paiva,
assim como a de outros 413 mortos e desparecidos durante a ditadura militar,
recebeu a nova certidão de óbito graças ao trabalho da Comissão Nacional da
Verdade (CNV), por meio de uma determinação do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ) do fim do ano passado.
A determinação
prevê que os cartórios modifiquem os documentos, que deverão conter a seguinte
informação no campo "Causa da morte": "Não natural, violenta,
causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à
população identificada como dissidente política do regime ditatorial
instaurado em 1964".
Muitas das
certidões ainda tinham esse campo preenchido apenas como
"desconhecida", ou registrada "de acordo com a lei 9.140",
a Lei dos Desaparecidos
Políticos.
Essa lei reconheceu como mortas pessoas que sumiram em razão de participação ou
acusação de participação em atividades políticas durante a ditadura.
A primeira certidão
retificada após a resolução do CNJ foi de Carlos Danielli, ex-dirigente do
Partido Comunista, morto em 1972.
As alterações
atendem a uma das 29 recomendações do
relatório final da Comissão Nacional da Verdade. Instituída em
2011, a Comissão teve o papel de investigar as violações de direitos humanos
ocorridas na ditadura. Seu trabalho se estendeu até a entrega do relatório, em
2014.
A Comissão
coordenou o trabalho de busca e reconhecimento de ossadas de possíveis mortos e
desaparecidos na ditadura e a expedição das certidões de óbitos, mesmo daqueles
que jamais foram encontrados, como foi o caso de Rubens Paiva.
Algumas certidões
já haviam sido alteradas após o trabalho da CNV. "Já vinhamos trabalhando
nisso há muito tempo", diz Eugênia Gonzaga, presidente da Comissão. Mas
sem a determinação do CNJ, ela diz que alguns cartórios se recusavam a realizar
a retificação. "Agora com a participação do CNJ tudo mudou."
Um caso emblemático
dessa conquista foi o da família do jornalista Vladimir Herzog, que conseguiu, em
2012, a retificação do documento que, até então, apontava suicídio como a causa
da sua morte.
Seis anos mais
tarde, a jornalista e advogada Lygia Jobim, filha do diplomata José Pinheiro
Jobim, também recebeu um novo atestado de óbito do pai, constando que o Estado
brasileiro foi o responsável por sua morte.
"Eu me lembro
bem daquele dia. Fiquei emocionadíssima. Peguei o documento, olhei em volta na
rua. Entrei no supermercado, pedi um café e fiquei ali", diz Lygia à BBC
News Brasil.
"É uma emoção
muito grande e, ao mesmo tempo, estranha, porque ninguém fica feliz quando
recebe um atestado de óbito."
Quando foi
sequestrado e morto, em 1979, Jobim estava escrevendo um livro que prometia
revelar um esquema de corrupção envolvendo a usina hidrelétrica de Itaipu.
Foi encontrado
pendurado pelo pescoço em uma cena montada, assim como Herzog, conforme foi
reconhecido pela Justiça anos mais tarde. Ainda assim, sua certidão trazia a
causa da morte como "indefinida".
Em 2019, no
primeiro ano de seu governo, o ex-presidente Jair Bolsonaro mudou a composição
da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, trocando quatro dos
sete integrantes, e os processos de retificação das certidões de
óbito ficaram emperrados.
Depois, faltando 15
dias para o fim do seu mandato, Bolsonaro extinguiu de vez a comissão,
paralisando completamente os processos.
A ativista dos
direitos humanos Maria do Amparo Araújo ficou nesse meio do caminho.
Pediu a retificação
do documento do irmão, Luiz Almeida Araújo, com quem ela militava na Ação
Libertadora Nacional (ALN), e do companheiro, Luiz José da Cunha, ambos mortos
pela repressão. Mas só conseguiu retificar a certidão do irmão.
"O pedido do
meu companheiro foi negado", conta ela, que é fundadora da ONG Tortura
Nunca Mais.
"Recorri, e o
pedido foi negado de novo. Isso significa que não havia um procedimento
padronizado [para realizar as retificações] como está se pretendendo que seja
agora [com essa resolução do CNJ]."
Para ela, a notícia
sobre a retificação de todas as certidões de óbito é uma formalização da
responsabilização do Estado pelas mortes políticas durante a ditadura. Mas não
é o suficiente.
"As pessoas
continuam desaparecendo porque são mortas pela Polícia Militar."
A desmilitarização
das polícias estaduais é outra das 29 recomendações do relatório da Comissão
Nacional da Verdade.
Embora o documento
tenha sido entregue há dez anos, um levantamento do Instituto Vladimir Herzog,
realizado antes dessa decisão do CNJ, mostrou que uma parcela muito pequena das
recomendações foram cumpridas até agora.
Dos 29
apontamentos, apenas dois foram integralmente concretizados.
O primeiro foi a
introdução da audiência de custódia, em 2015. Esse mecanismo garante que o
acusado por um crime, preso em flagrante, tenha o direito de ser ouvido por um
juiz, em até 24 horas após a detenção, para que sejam avaliadas eventuais
ilegalidades da sua prisão.
A outra
recomendação atendida, em 2021, foi a revogação da Lei de Segurança Nacional.
Criada durante a ditadura militar, a lei previa, dentre outras coisas, pena de
até quatro anos de detenção por "fazer, em público, propaganda de
processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou
social", ou por "incitar a subversão da ordem política ou social ou a
animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as
instituições civis".
·
Abertura
dos arquivos
Emocionada, a
especialista em finanças Marta Costa, sobrinha da guerrilheira Helenira Resende
de Souza Nazareth, conta que a retificação da certidão de óbito de sua tia é um
passo muito simbólico.
"É muito
significativo. Minha tia, Helenalda, tentou por anos conseguir essa
retificação", diz. "Hoje, ela está com 84 anos. Essa conquista é uma
devolutiva dessa luta de tantos anos."
Helenira, cujo
codinome era Fátima, fez parte da Guerrilha do Araguaia, um movimento de
resistência à ditadura ocorrido na região amazônica, quando desapareceu.
Seu corpo jamais
foi encontrado, e a família nunca conseguiu realizar uma cerimônia fúnebre.
"Conseguimos
trazer as ossadas do Araguaia para a UnB [Universidade de Brasília], mas elas
estão paradas lá há anos", diz Marta. "Existe essa ansiedade de saber
se a minha tia está lá e se poderemos seguir, fazer o sepultamento."
Em julho de 2024, o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva instalou novamente a Comissão Especial de
Mortos e Desaparecidos Políticos. Um dos primeiros atos desta retomada foi a
entrega do pedido das retificações das certidões de óbito ao CNJ.
As famílias
reconhecem esse passo, mas reafirmam que o caminho ainda é longo.
"Minha mãe tem
77 anos e até hoje não pôde fazer o luto e enterrar meu avô", afirmou Leo
Alves, músico e membro da Coalizão Brasil por Memória, Verdade e Justiça, uma
organização que defende a democracia, a memória e a reparação de violações aos
direitos humanos.
Leo é neto do
político Mario Alves, um dos fundadores do extinto Partido Comunista
Revolucionário Brasileiro (PCBR), e desaparecido durante a ditadura.
"Essa decisão
é uma vitória, mas não é tudo. Não constará, por exemplo, o local do
sepultamento. Por isso nosso trabalho não acaba aqui".
Lygia Jobim sente
falta das mesmas informações. Mesmo com o atestado de óbito do pai já
retificado, ela cobra explicações.
"Queria uma
explicação. A causa da morte continua desconhecida. Sabemos que foi a
repressão, mas falta o resto da história para mim", diz Lygia.
"Essa história
não para aí. Do que meu pai morreu? Quem matou meu pai?"
Leo Alves também
considera que a retificação dos documentos não é um desfecho para toda a
história.
"No campo da
Memória algo aconteceu, mas na Justiça, nada. A condenação dos agentes de
repressão nunca existiu", diz Leo.
Assim como todas as
famílias de mortos e desaparecidos com quem a BBC News Brasil conversou, o
músico foi categórico.
"Queremos a abertura dos
arquivos",
disse, sobre documentos da época da ditadura que jamais se tornaram públicos.
·
'Essa
história precisa ser contada'
A abertura dos
arquivos é outra das recomendações do relatório da Comissão Nacional da
Verdade.
Segundo documento do
Instituto Vladimir Herzog, essa resolução não só não obteve avanço, como
retrocedeu devido à "notória dificuldade em adentrar os arquivos dos
órgãos militares" pela Comissão Nacional da Verdade.
Em 2004, o então
presidente Lula anunciou a abertura dos arquivos e um prazo de 30 anos,
renovável por mais 30, para que a sociedade tenha acesso aos documentos
ultrassecretos do regime militar.
Passados 20 anos do
decreto, os documentos ainda não se tornaram públicos.
"Tudo o que a
Comissão Nacional da Verdade entregou para nós foram documentos que já
tínhamos", diz Marta Costa.
"Essa história
precisa ser contada para que a gente não passe por isso de novo."
A servidora pública
Lorena Moroni Girão Barroso, irmã de Jana Moroni Barroso, guerrilheira no
Araguaia que é considerada desaparecida política, também cobra o acesso aos
documentos militares.
"A certidão de
óbito retificada, embora tenha o efeito do raciocínio lógico, já que agora o
Estado está se responsabilizando pelas mortes, o principal, que são as circunstâncias
em que essas mortes ocorreram, a certidão não trará", diz Lorena.
"Isso só virá
com a abertura dos arquivos."
Lorena se recorda
que cada passo até aqui foi trabalhoso e dolorido, mas com pequenos avanços.
"Quando a
gente entrou com um processo contra a União para saber a localização dos
corpos, se negava até a existência da guerrilha do Araguaia", diz ela.
"Agora, além
do reconhecimento de que houve a guerrilha, há também o de que ela foi uma das
vítimas da ditadura."
Fonte: BBC News
Brasil
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