sábado, 25 de janeiro de 2025

Viroses nas praias cobram a conta da falta de financiamento

Nos primeiros dias do ano, moradores e turistas da Baixada Santista sofreram com surtos de gastroenterite, uma doença que causa diarreia, vômito e náusea. "Penso que o caso de São Paulo acendeu uma luz amarela forte", alertou a professora de Oceanografia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Monica Ferreira da Costa. "Porque esses eventos podem se tornar cada vez mais frequentes e mais impactantes." 

Embora a Baixada Santista tenha chamado a atenção da mídia devido à grande quantidade de casos de gastroenterite, o problema é recorrente em muitas praias brasileiras no verão. Cidades de Santa Catarina e Paraná também registraram aumento da doença em 2025, pressionando o sistema de saúde.    

Ainda não foi encontrada a origem dos surtos em São Paulo, mas especialistas dizem que há uma forte correlação com a falta de saneamento básico adequado. Esgoto não tratado e lixo espalhado nas cidades vão parar nos rios e, depois, no mar, levando junto patógenos como vírus, bactérias, fungos e vermes. "Tudo o que você pode pegar no esgoto você pode pegar na praia, inclusive na areia", salientou Costa. 

A Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo (SES) encontrou o norovírus, um patógeno geralmente transmitido por via fecal-oral, em amostras das fezes de pacientes em Guarujá e em Praia Grande. Por isso, nesse caso, a gastroenterite está sendo chamada de virose. 

Costa, especialista em poluição marinha, destaca que, além da falta de saneamento adequado, principalmente de coleta e tratamento de esgoto, outro fator pode fazer os surtos ficarem mais frequentes e impactantes: as mudanças climáticas. 

"As mudanças climáticas estão facilitando a sobrevivência desses microrganismos e ajudando na sua dispersão pelo meio ambiente. Porque há o aumento da temperatura da água e maior quantidade de água doce chegando ao mar, já que as chuvas estão mais frequentes, intensas e duradoras", explicou a pesquisadora. 

·        O impacto no turismo 

Além da saúde, o turismo foi afetado em São Paulo. Segundo o Sindicato de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares da Baixada Santista e Vale do Ribeira (SinHoRes),  19% das reservas foram canceladas na primeira semana do ano. "Nós nos preparamos o ano inteiro para a temporada de verão. Além das reservas canceladas, provavelmente muitas pessoas deixaram de procurar a região", disse o presidente do sindicato, Arthur Veloso. 

A Federação de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares do Estado de São Paulo (FHORESP), da qual Veloso é conselheiro, cobrou o governo de São Paulo. Em um ofício, reclamou que os surtos de viroses, além de arrastões, têm sido recorrentes há várias temporadas e se agravaram "com força desproporcional neste início de ano".

Falando a jornalistas, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, culpou os esgotos clandestinos pela crise e alegou que a situação vai melhorar com mais investimentos da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp).  

Em nota à DW, a Sabesp afirmou que "o surto de virose registrado no litoral paulista não tem relação com suas operações. Os sistemas de água e esgoto da região operam normalmente e são monitorados 24 horas por dia."  

O SinHoRes considera que a situação está normalizada, mas a pauta do saneamento básico deve ser priorizada. "Virou assunto número um nosso. Tivemos que virar especialista em tratamento de esgoto e de água e em balneabilidade de praia. Porque sem isso nós perdemos nosso maior motor, nossa força de atração, que são as praias." 

·        Ganhos bilionários 

Ao mesmo tempo em que o setor de turismo é impactado pela falta de saneamento, também é causa do problema, de acordo com Luana Siewert Pretto, presidente executiva do Instituto Trata Brasil, uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público especializada em saneamento básico e proteção dos recursos hídricos. 

"Há um movimento muito grande de pessoas para determinadas regiões por conta do turismo nas férias e em determinadas épocas do ano. Se a localidade não tratar o esgoto, ele vai para a natureza. O ideal seria ter primeiro coleta e tratamento de esgoto, para atrair depois as pessoas", avaliou. 

Para Pretto, o setor de turismo está se voltando para a questão, mas bem menos do que deveria. "Cada vez mais o turismo está pensando neste problema. Porque um surto desses como no litoral de São Paulo prejudica muito o setor. Mas ainda há um longo caminho. A preocupação do setor ainda é baixa", avaliou.

Um estudo do Trata Brasil mostrou que o setor de turismo teria um ganho de R$ 80 bilhões com acesso universal ao saneamento básico até 2040. "As pessoas não querem ir a um local onde ficam doentes. Então isso prejudica o turismo naquela localidade. Infelizmente, em muitos locais, o saneamento básico ainda é visto como aquele ditado: obra enterrada não dá votos." 

O Novo Marco Legal do Saneamento estabelece que até 2033 o Brasil precisa universalizar o acesso à água potável (99%) e à coleta e tratamento de esgoto (90%). O estudo do Trata Brasil indica que, mantendo o atual ritmo, a meta seria cumprida somente em 2070, com um atraso de 37 anos. 

Para Pretto, uma oportunidade de mudar este cenário são os novos mandatos de prefeito, já que o saneamento básico é uma prerrogativa municipal. "Os ciclos são longos nos projetos de saneamento básico. É preciso fazer o projeto de engenharia, o licenciamento ambiental e depois a obra, para só depois melhorar os indicadores. Se não fizermos nada hoje, vamos continuar convivendo com esses surtos." 

·        Praias próprias ou impróprias?  

Uma das formas de perceber a poluição das praias são as medições de balneabilidade, regulamentadas pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). A análise verifica se a água está própria ou imprópria para o banho, ou seja, podendo ter patógenos como vírus ou bactérias.

Um levantamento do jornal Folha de S. Paulo mostrou que a qualidade das praias brasileiras caiu ao pior nível desde 2016, quando o jornal começou a fazer a pesquisa – em 2020 os dados não ficaram disponíveis por causa da pandemia. A pesquisa mostrou que das 861 praias que tiveram sua balneabilidade medida todos os anos, apenas 258 foram consideradas boas. 

Uma tese de doutorado analisou a balneabilidade das praias da costa leste do nordeste brasileio e também identificou, na média, piora nos índices. "Foi possível constatar que a balneabilidade, apesar de ser influenciada por fatores meteorológicos e oceanográficos, como quantidade de precipitação e alterações de maré, o principal fator de queda é a falta de saneamento ambiental", escreveu a pesquisadora Cibele Rodrigues da Costa. 

O saneamento básico é geralmente comparado a uma mesa, em que cada perna representa um componente: abastecimento de água potável; esgotamento sanitário; gestão de resíduos sólidos (coleta de lixo); e drenagem e manejo de águas pluviais. Sem um desses pilares, o todo fica desequilibrado. 

Na análise da professora da UFPE, o tratamento de esgoto é uma das pernas que mais precisa de atenção, junto com a coleta de lixo. "Se fizéssemos o tratamento de esgoto, estaríamos nos livrando dos vírus, das bactérias, dos fungos, dos vermes. E estaríamos livrando a fauna e a flora marinha também dessas coisas – e de cafeína, cocaína, fármacos, excesso de matéria orgânica, de óleo, de metais pesados."

¨      Pântano do Sul expõe desafio para manter praias limpas

Quando a corrente vem do sul, a praia do Pântano do Sul, em Florianópolis (SC), recebe muitos itens inesperados ou indesejados. Vaca, porco, árvores e muito lixo já foram trazidos pelas correntes marítimas. "O mar só quer o que é dele. O que não é, ele joga nas praias ou nos costões", disse o pescador Nilton Costa, 57 anos.

O lixo transportado pelas correntes marinhas é um dos motivos que fez o Pântano do Sul figurar como a praia com a maior densidade de macrorresíduos, macroplásticos e microplásticos entre 306 praias analisadas. Os dados são do raio-x dos resíduos na costa brasileira, produzido pela Sea Shepherd Brasil e pelo Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (USP) e divulgado em 19 de setembro.

Os moradores da região argumentam que as amostras foram coletadas após uma ressaca, quando os resíduos na praia são muito mais volumosos do que o usual, distorcendo os dados. Os autores do estudo – que ainda não foi publicado em uma revista científica – também pediram cautela na análise dos dados de cada praia, devido à pouca representatividade do tamanho da amostragem.

O problema é que muitos veículos jornalísticos exageraram nos seus títulos, chamando o Pântano do Sul de a "praia mais poluída do Brasil". Além de tirar as informações de contexto, a maioria das reportagens sequer informou que a água do mar é considerada própria para banho nesta praia, de acordo com Instituto de Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA).

Ao olhar para a situação do Pântano do Sul, no entanto, é possível perceber o grande desafio para manter as praias limpas, já que plásticos e microplásticos não respeitam fronteiras.

"O estudo mostra o que é possível encontrar nas praias brasileiras, até onde a poluição pode chegar. Não significa que, se eu for agora ao Pântano do Sul, o número será o mesmo", explicou a presidente da Sea Shepherd Brasil, Nathalie Gil. "O que se encontra na praia é um indicativo da má gestão de resíduos como um todo. Não só de Florianópolis, mas de outras cidades do entorno de Santa Catarina e muito além, por causa das correntes marítimas."

<><> Onipresença do plástico

O estudo encontrou plástico na areia de todas as praias analisadas. Além disso, em 97% delas achou microplástico, que são fragmentos menores que 5 milímetros – tamanho semelhante ao de um grão de ervilha.

Os pesquisadores esperavam encontrar muito plástico, mas a quantidade os surpreendeu, segundo a presidente da Sea Shepherd Brasil. De todos os macrorresíduos, 91% pertenciam a essa categoria – o restante eram materiais como vidro, papel e cerâmica. Um estudo internacional identificou que, no mundo, a porcentagem de plástico nas praias em relação aos outros resíduos é de 62%.

Ao comparar as praias, o estudo colocou o Pântano do Sul no topo do ranking de todos os indicadores. "Pelas fotos que a gente viu, percebemos que a pesquisa foi feita após uma ressaca. Como a praia é de mar aberto e virada para o sul, ela recebe tudo que é sujeira de outras praias", disse o presidente da Associação de Moradores de Pântano do Sul, Wagner Leandro de Lima.

Essa análise é compartilhada pelos pescadores. Eles disseram que, quando colocam a rede no mar, deixando-a de um dia para o outro, pegam também muito lixo, como garrafas pet, potes de plástico e até aparelhos eletrônicos.

                                        <><> Praia de pescadores

Para a professora de Oceanografia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e coordenadora do Laboratório de Poluição e Geoquímica Marinha (LaPoGeo), Juliana Leonel, as notícias trataram a praia do Pântano do Sul de forma descontextualizada.

"Ir na praia uma vez e fazer uma medida resulta em uma fotografia do momento. E o próprio relatório, em mais de um momento, faz essa ressalva", alertou. De acordo com Leonel, muitas variáveis podem alterar os dados, como o tipo de praia, a estação do ano, a maré e o horário em que foi feita a coleta, além de eventos meteorológicos como uma ressaca ou a passagem de uma frente fria.

O Pântano do Sul é uma tradicional praia de pescadores no sul da Ilha de Santa Catarina. Por ser calma e ter diversos restaurantes, atrai muitas famílias com crianças. A presença de plásticos não chamou a atenção da reportagem em um primeiro momento, quando esteve lá no dia 18 de outubro.

Olhando com atenção, no entanto, dava para ver pedaços de papel de bala, bitucas de cigarro e uma garrafa pet. Em alguns locais, era possível ver pequenos aglomerados de pedacinhos de plásticos coloridos. Mas nada que parecesse justificar a pecha de "praia mais poluída do Brasil".

Gustavo Salgado, 55 anos, e Cláudia Calvi, 43 anos, são de Buenos Aires. Ambos estavam curtindo a praia no dia em que a reportagem esteve no Pântano do Sul. Para eles, a praia é limpa. "Vocês cuidam bem da praia. Na Argentina nós vemos muito mais lixo, como bitucas de cigarro", ele disse. "Perto das praias de Buenos Aires, aqui é o paraíso", ela avaliou.

<><> O grande problema dos microplásticos

Por serem tão pequenos, os microplásticos entram na cadeia alimentar dos animais marinhos, chegando aos seres humanos. "Os efeitos toxicológicos foram confirmados em todos os níveis da organização em biologia, e há evidências de possíveis efeitos sobre a saúde humana", afirmou um estudo liderado por Richard C. Thompson, apelidado de "padrinho dos microplásticos".

Até pelo crescente interesse no tema, a quantidade de microplásticos encontrados no Pântano do Sul chamou a atenção: 144 por m². Bem maior que a segunda colocada, a Praia do Centro, em Mongaguá (SP), com 83 por m², e a Praia do Rizzo, também em Florianópolis, com 78 por m².

Em 2018, uma pesquisa de mestrado orientada pela professora Juliana Leonel identificou 64 microplásticos por m² na mesma praia. "Também foi um estudo pontual em que não tivemos a oportunidade de repetir a medição. Mas esses dados mostram que a concentração quase dobrou. Pode ser que esteja aumentando a quantidade de microplástico que chega ali ou pode ser uma diferença em relação aos vários parâmetros que citei", refletiu.

Mas ao comparar os dados encontrados pelo Sea Shepherd com outros estudos, há valores mais altos. Uma pesquisa publicada em 2021 na Marine Pollution Bulletin analisou as praias de Fernando de Noronha. Em algumas delas não foi encontrada nenhuma partícula, enquanto na praia do Atalaia, por exemplo, foram detectados 1.059 microplásticos por m² – cerca de sete vezes mais do que no Pântano do Sul.

<><> Políticas públicas locais e globais

Há vários fatores que influenciam a presença de resíduos nas praias, como a poluição local e a que chega pelo mar. "Encontramos plásticos em lugares isolados, como nos Lençóis Maranhenses, ou no Pará, onde andávamos duas horas em áreas de mangue para chegar na praia. É chocante", contou a presidente do Sea Shepherd.

Tratado Global sobre Plásticos da Organização das Nações Unidas (ONU), aprovado em 2022, é considerado importante para o tema. Mas ainda não saiu do papel. "O tratado também foca muito nessa logística reversa, na circularidade. Ele não está focando na produção, em exigir das indústrias que elas fechem a torneira do plástico virgem [fabricado diretamente pelo petróleo]", avaliou.

Em termos de Brasil, o estudo aponta dois projetos de leis como fundamentais: o PL 2524/2022, que trata da gestão de plásticos, e o PL 1874/2022, voltado à economia circular.

A prefeitura de Florianópolis, em nota, salientou que os "microplásticos nas praias não são resultado de poluição local, mas sim de resíduos transportados por correntes oceânicas oriundas de outras regiões". O município não informou se pretende tomar alguma atitude específica sobre resíduos nas praias da cidade a partir do estudo.

A Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Economia Verde de Santa Catarina, estado onde foram encontradas as maiores concentrações de microplásticos no Brasil segundo o estudo, informou que está "articulando ações com a USP, que coordena a implementação da rede Oceano Limpo no Brasil, para elaboração de um plano estadual de combate ao lixo no mar".

Outro estudo orientado pela professora da UFSC mostra a importância de políticas integradas. Publicado na Marine Pollution Bulletin, mostrou que microplásticos chamados de pellets poderiam viajar de Itajaí a Florianópolis, percurso de aproximadamente 80 quilômetros, em dois dias. Como se popularizaram a partir da Segunda Guerra Mundial, muitos plásticos e microplásticos ainda estão viajando pelo planeta.

 

Fonte: DW Brasil

 

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