A Batalha entre os
Estados e as Big Techs: quem controla os números, controla o poder
O processo de
racionalização da administração pública, consolidado a partir do século XVIII,
estabeleceu as bases para uma nova forma de compreensão e gestão das
populações. Essa transformação fundamental alterou não apenas os mecanismos de
governo, mas toda a estrutura de conhecimento sobre as sociedades modernas. O
desenvolvimento das instituições estatísticas nacionais representou um marco
decisivo nessa trajetória, instituindo metodologias sistemáticas para a coleta
e análise de dados populacionais.
A consolidação
deste modelo de governança baseado em evidências encontrou terreno fértil nas
sociedades europeias do século XIX, onde a necessidade de compreender e
administrar populações cada vez mais urbanizadas demandava instrumentos
precisos de mensuração social. O surgimento de departamentos estatísticos
governamentais estabeleceu um novo paradigma na administração pública,
fundamentado na quantificação sistemática de fenômenos sociais.
As transformações
sociais decorrentes da industrialização intensificaram a necessidade de dados
precisos sobre população, produção e consumo, consolidando definitivamente o
papel das instituições estatísticas como pilares fundamentais da administração
pública moderna. A racionalização dos processos de coleta e análise de dados
tornou-se imperativa para a gestão eficiente dos recursos e para o planejamento
estratégico das nações.
Neste contexto,
como observa Alain Desrosières em The Politics of Large Numbers: A History
of Statistical Reasoning: “a estatística moderna emergiu como uma linguagem
comum entre o Estado e a sociedade, estabelecendo bases objetivas para o debate
público e a formulação de políticas”. Esta perspectiva é corroborada por
Theodore Porter em Trust in Numbers: The Pursuit of Objectivity in Science
and Public Life, que analisa como a quantificação se tornou um instrumento de
autoridade política e administrativa.
O processo de
internacionalização dos padrões estatísticos, intensificado no período
pós-guerra, representou um marco fundamental na consolidação de metodologias
compartilhadas globalmente. Este movimento permitiu a comparabilidade entre
diferentes realidades nacionais e estabeleceu bases comuns para a compreensão
de fenômenos sociais em escala global.
O surgimento de
organizações internacionais dedicadas à padronização estatística fortaleceu
ainda mais este processo de homogeneização metodológica. A criação de
protocolos compartilhados e a definição de padrões universais de mensuração
constituíram um passo decisivo para a consolidação de uma linguagem estatística
verdadeiramente global.
Como destaca Martin
Bulmer em The Social Survey in Historical Perspective, “a padronização
internacional das metodologias estatísticas representou não apenas um avanço
técnico, mas uma verdadeira revolução na forma como as sociedades compreendem a
si mesmas”. Esta observação é complementada por William Alonso e Paul Starr
em The Politics of Numbers, que analisam as implicações políticas da
padronização estatística internacional.
A emergência
da era digital, contudo,
introduziu novos desafios a este modelo consolidado de produção e análise de
dados estatísticos. A proliferação de fontes não convencionais de informação e
a capacidade sem precedentes de coleta e processamento de dados alteraram
profundamente o panorama da produção de conhecimento sobre as sociedades contemporâneas.
Com o avanço
tecnológico, a velocidade e o volume da produção de dados ultrapassam
significativamente a capacidade das estruturas tradicionais de processamento e
análise. Este fenômeno tem provocado uma transformação radical na forma como as
informações são produzidas, distribuídas e consumidas na sociedade
contemporânea.
Como argumentam
Viktor Mayer-Schönberger e Kenneth Cukier em Big Data: A Revolution That
Will Transform How We Live, Work, and Think, “a revolução dos dados está
alterando fundamentalmente não apenas como conhecemos o mundo, mas também como
interagimos com ele”. Esta perspectiva encontra eco nos trabalhos de Safiya
Noble, Algorithms of Oppression, que analisa as implicações sociais e
políticas da concentração do controle sobre dados digitais.
A ascensão das
grandes empresas de tecnologia como principais depositárias e processadoras de
dados sociais representa um desafio significativo para as instituições
estatísticas tradicionais. O poder informacional concentrado nas mãos dessas
corporações questiona o monopólio histórico dos Estados sobre a produção de
conhecimento estatístico oficial.
Esta nova realidade
tem gerado tensões significativas entre os modelos tradicionais de produção
estatística e as novas formas de coleta e análise de dados. A capacidade das
big techs de processar volumes massivos de informação em tempo real contrasta
com os métodos mais lentos, porém mais rigorosos, das instituições estatísticas
oficiais.
As tensões entre as
instituições democráticas e as grandes plataformas digitais têm se
intensificado globalmente, com particular destaque para o caso brasileiro, onde
o embate entre o poder judiciário e as big techs alcançou níveis sem
precedentes. O fenômeno reflete uma disputa mais ampla pelo controle dos fluxos
informacionais e pela regulação do espaço público digital.
Danah Boyd,
em It’s Complicated: The Social Lives of Networked Teens, argumenta que
“as plataformas de mídia social não são apenas intermediárias neutras de
conteúdo, mas sim atores políticos com poder significativo sobre o discurso
público”. Esta perspectiva é aprofundada por José van Dijck em The Culture
of Connectivity, que analisa como as plataformas digitais moldam ativamente as
relações sociais e políticas.
A complexidade
deste cenário se manifesta na crescente tensão entre a soberania nacional e o
poder transnacional das corporações tecnológicas. A capacidade destas empresas
de influenciar processos políticos e sociais através do controle dos fluxos de
informação tem suscitado respostas cada vez mais assertivas por parte das
instituições democráticas.
O caso brasileiro
exemplifica de maneira contundente este embate. A resistência das plataformas
em adequar suas políticas às demandas regulatórias nacionais tem gerado atritos
significativos com o poder judiciário, especialmente no contexto do combate à
desinformação. Este cenário evidencia os desafios da governança digital em um
mundo onde as fronteiras entre o nacional e o transnacional se tornam cada vez
mais fluidas.
Como destaca
Tarleton Gillespie em Custodians of the Internet, “as plataformas digitais
assumiram um papel central na moderação do discurso público, exercendo um poder
que tradicionalmente pertencia às instituições democráticas”. Esta observação
encontra ressonância nos trabalhos de Frank Pasquale, em The Black Box Society,
que examina as implicações do poder algorítmico das big techs para a
democracia.
A regulação das
plataformas digitais emerge como um dos principais desafios para as democracias
contemporâneas. O equilíbrio entre a preservação da liberdade de expressão e o
combate à desinformação tem se mostrado particularmente delicado, especialmente
em contextos de polarização política e fragilidade institucional.
O desenvolvimento
de marcos regulatórios adequados à era digital tornou-se uma prioridade para
diversos países, com iniciativas que buscam estabelecer parâmetros claros para
a atuação das plataformas sem comprometer a inovação tecnológica. A experiência
brasileira neste campo tem se mostrado particularmente relevante, com o
desenvolvimento de instrumentos jurídicos específicos para o enfrentamento da
desinformação.
O cenário atual
demanda uma redefinição dos papéis tradicionalmente atribuídos às instituições
estatais e às corporações privadas na governança da informação. A necessidade
de estabelecer mecanismos efetivos de accountability para as
plataformas digitais, sem comprometer sua capacidade de inovação, emerge como
um dos principais desafios para as democracias contemporâneas.
Fonte: Por Erik
Chiconelli Gomes, Le Monde
Diplomatique
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