terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Dennis Oliveira: O eclipse do cidadão

O anúncio do CEO da Meta, Mark Zuckerberg, de colocar fim as moderações e checagens feitas por analistas das informações postadas nas redes sociais da empresa motivou uma série de discussões sobre os impactos na disseminação de fake news e discursos de ódio. Mark Zuckerberg anunciou na primeira semana de janeiro de 2025 que as plataformas de redes da Meta – Facebook e Instagram – ao invés de terem os conteúdos postados sujeitos a avaliação e checagem de analistas da empresa serão objeto de controles por um sistema chamado de “notas à comunidade”, semelhante ao usado na plataforma X, de Elon Musk.

Este sistema deixa a moderação a cargo dos próprios usuários da rede. Na plataforma X, o sistema funciona da seguinte forma: usuários se inscrevem voluntariamente para redigir notas a respeito de determinado conteúdo, e depois outros usuários avaliam se estas notas são pertinentes ou não – de acordo com o número de avaliações positivas recebidas, a nota é incluída abaixo do conteúdo postado.

Tal decisão do comando da empresa Meta ocorreu às vésperas da posse do presidente Donald Trump que, entre outras coisas, vem enfatizando a defesa de uma concepção de liberdade de expressão sem qualquer restrição ou regulação. Mark Zuckerberg inclusive, no mesmo discurso em que anunciou a nova política da Meta, criticou posições de judiciários principalmente do continente latino-americano que tentam responsabilizar as plataformas de rede por conteúdos disseminados. Há aqui uma evidente convergência política com a extrema direita mundial que já conta com outro expoente da plataforma digital, Elon Musk.

Este episódio é importante para sinalizar aspectos contemporâneos da sociedade capitalista. Jordi Dean chama o atual momento do capitalismo de “capitalismo comunicativo” pois os fluxos de informação adquirem um valor estratégico nas dinâmicas de produção (por exemplo, o just-in-time só é possível com a existência de um fluxo eficiente de informação entre as várias pontas do circuito produção-distribuição-consumo) e é evidente que esta lógica da organização produtiva se irradia como referência ideológica que conforma as subjetividades.

Todas as características da sociedade contemporânea que demandam vários estudos sobre problemas como hipervelocidade, ansiedade, angústias, “sociedade do cansaço”, entre outras decorrem da conformação social como necessidade de adequação a uma lógica produtiva.

Do ponto de vista político, chama a atenção a característica desta mudança – da moderação feita por uma equipe de checagem para uma classificação ou contraponto a partir da “quantidade de usuários” que avaliam positiva ou negativamente uma postagem. Observa-se aqui claramente uma prática que sinaliza o que Max Horkheimer chama da passagem de uma razão subjetiva para uma razão instrumental.

Por razão subjetiva, Max Horkheimer define uma racionalidade baseada na capacidade do ser humano pensar e refletir de forma autônoma em busca dos significados da existência e da justiça social. Tal razão extrapola a utilidade prática e sinaliza para uma postura crítica, ou nos dizeres de Agnes Heller, de suspensão do cotidiano e de sua pragmática. Já a razão instrumental é a própria justificativa dos meios em função das suas finalidades. O objetivo é a eficiência, o controle e a busca de resultados práticos.

Uma ressalva: é evidente que não se considera que a moderação feita por uma equipe de checagem da Meta era motivada por uma racionalidade subjetiva e estava eivada de elementos instrumentais. Porém, a delegação aos próprios usuários escancara de vez o caráter instrumental de avaliação, sem qualquer prurido dele estar sendo legitimado por um corpo de “especialistas” com legitimidades construídas por outros vetores.

Note-se que a decisão de Zuckerberg atende a uma tendência política (fortalecimento da extrema direita) e tem um fim econômico pois submete as avaliações de qualidade à opinião majoritária dos usuários (insumos das plataformas de rede pois seus hábitos são transformados em informações que se transformam em estratégias de marketing para os anunciantes nas plataformas digitais). Esta é a plena realização do eclipse do cidadão pela sombra totalizante do consumidor, da razão subjetiva pela instrumental e, finalmente, do divórcio entre poder (do capital) e a política (da esfera pública) de que fala o sociólogo polonês Zygmunt Bauman.

Na obra Reiventando @ cultura, Muniz Sodré fala de um retorno a dimensão da retórica (poder da argumentação) em detrimento da dialética (busca pela verdade) como um dos sintomas do momento que ele chama de tecnocultura (articulação entre cultura, tecnologia e economia de mercado). Neste sentido, não se trata apenas de um declínio da razão esclarecedora ou subjetiva em favor da sua instrumentalidade para a eficácia do capital, mas sim da emergência da retórica argumentativa ou da “era das sensibilidades” como diz o próprio Sodré em outra obra. Com base nisto, o diagnostico é que o momento atual é de uma guerra de argumentações, ou de “narrativas”.

Assim, neste momento de capitalismo comunicativo com todas as suas nuances, o governo federal anuncia mudança no comando da Secretaria de Comunicação, trocando Paulo Pimenta, deputado federal e portanto uma figura oriunda das instituições clássicas da política por Sidônio Pereira que traz no seu currículo ter sido o publicitário responsável pela campanha vitoriosa de Lula nas eleições presidenciais de 2022.

O que motiva a troca? Que o principal problema do governo é de “comunicação” – apesar de indicadores favoráveis na economia (crescimento do PIB, inflação sob controle, redução do desemprego), a popularidade do governo não decola. E aqui a comunicação é colocada na perspectiva de uma racionalidade instrumental (sua eficácia em termos de ter resultados esperados). E nada mais simbólico que esta instrumentalidade ao estabelecer critérios instrumentais para a troca – o atual ministro “falha” no seu trabalho por conta dos resultados e, ao mesmo tempo, o novo indicado tem como credencial ter feito uma campanha “vitoriosa”.

Dizer que o problema é de comunicação e que comunicação é estratégica não significa entender o campo comunicacional como elemento essencial na sociedade contemporânea. Não se trata de um uso mais ou menos “eficiente” das redes sociais, mas compreender as dinâmicas dos fluxos comunicacionais dentro das lógicas produtivas do capitalismo comunicativo e as sociabilidades funcionais daí decorrentes. O entendimento é fundamental para estabelecer posicionamentos que se coadunam com a construção de um projeto político emancipador. O que se percebe é que a forma como isto é discutido no âmbito governamental não expressa apenas um desconhecimento do campo, mas também que está longe de se pensar em perspectivas novas.

Uma sociabilidade construída a partir dos fluxos de informação inerentes ao capitalismo comunicativo não é apenas a troca da informação analógica pela digital. Trata-se da constituição de subjetividades impactadas por tecnologias de sociabilidades cujas formas digitais carregam sentidos, percepções de tempo e espaço, todas adequadas e aderentes ao sistema vigente. E é evidente que determinados sentidos terão mais dificuldades de terem apoio.

É aqui que reside o perigo do modelo de moderação feita pelos próprios usuários que será implantado pelas plataformas de rede da Meta. Não se trata apenas de uma eficiência ou competência melhor de extremistas em ocupar as redes, mas sim que os sentidos que eles defendem estão mais em consonância com o modelo de sociabilidade construído pelo capitalismo comunicativo. Em um modelo de organização da produção centrado em uma lógica de competição cada vez mais acirrada, como se pensar que mensagem com sentidos de valores coletivos, respeito a diversidade, regulação social sejam mais palatáveis que discursos narcisistas e egocêntricos que descambam rapidamente para intolerância explícita ou mesmo um “cinismo blasé”?

Neste processo complexo, o jornalismo como atividade que conecta o cidadão com a construção da história pelas singularidades factuais é impactado à medida que a possibilidade de ampliação da compreensão do fato singular é apartada da perspectiva de uma racionalidade subjetiva. Há um evidente esvaziamento do papel intelectual do jornalista como mediador que pode se dissolver no modelo de “curadoria de informações disseminadas nas redes sociais” – como têm sido vários produtos jornalísticos vendidos como “reportagens” – ou como um estrategista de gerenciador de informações dentro da lógica de uma racionalidade instrumental (não é à toa a contratação de vários profissionais do jornalismo por empresas da área do capital especulativo que vive da disseminação de “boatos”  ou informações plantadas).

Com tudo isso, não é necessário instituir poderes ditatoriais clássicos para interditar a liberdade de expressão. Ela já ocorre por conta destas metamorfoses do capitalismo que necessita do controle dos fluxos informativos para a reprodução da riqueza e que molda os sujeitos adequados a esta ordem dentro de paradigmas comunicacionais que barram uma razão crítica.

O grande problema é que mesmo governos que se dizem progressistas ou de esquerda se rendem a esta lógica por desconhecimento, por pragmatismo ou uma combinação de ambos. E aí ao se transformar em uma sombra mal projetada da ordem dominante rapidamente caem no descrédito e creditam tal situação a problema de “comunicação”. Mas entre a imagem mal projetada e o referente, este último acaba sendo preferido ainda que se tente melhorar a projeção da imagem.

O mesmo se aplica ao jornalismo. Submeter-se à lógica da razão instrumental do capitalismo comunicativo é a sua morte. A essência do jornalismo é justamente possibilitar a compreensão de uma sociedade em fazimento. A razão instrumental do capitalismo comunicativo é impedir tal compreensão justamente porque ela sinaliza para a sua crítica.

 

¨         Cérebros podres como Meta. Por Arthur Coelho Bezerra

Brain rot foi a “palavra do ano” de 2024, segundo a tradicional eleição anual da Oxford University Press, a maior editora universitária do mundo. Podendo ser traduzido por “podridão cerebral”, brain rot nomeia a deterioração do estado mental ou intelectual de uma pessoa, especialmente vista como resultado do consumo excessivo de material considerado banal ou pouco desafiador. O aumento de 230% na frequência do uso do termo entre 2023 e 2024, segundo a Oxford,[i] reflete preocupações da sociedade a respeito dos possíveis impactos do uso prolongado de tecnologia digital para consumo de conteúdos irrelevantes, nada críticos e de baixa qualidade. Mais especificamente, essa inquietação aflige pais e responsáveis por crianças e adolescentes que acessam redes sociais digitais em idade cada vez mais precoce e de forma cada vez mais viciante.

Um sintoma dessa aflição parental está no fenômeno de vendas, no Brasil e no exterior, do livro A geração ansiosa: Como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais, de Jonathan Haidt. O psicólogo social integra o grupo de pesquisadores que têm destacado a estreita relação entre a exploração comercial de plataformas de comunicação digital e o aumento de taxas de depressão, ansiedade e outros transtornos mentais nos últimos 15 anos – justamente o período em que se nota um acelerado desenvolvimento da inteligência artificial, das redes neurais e do aprendizado de máquina.

Essas avançadas técnicas que engendram a produção e circulação de informação em formato digital têm sido utilizadas pelos principais conglomerados de tecnologia para estimular a produção intermitente de dados pessoais por parte dos usuários de seus serviços.

Como já se sabe, em praticamente todos os modelos de negócios estruturados em torno de plataformas digitais, os dados produzidos pelos usuários da internet representam hoje um insumo indispensável, sejam esses dados de geolocalização (fundamentais para plataformas de transporte como Uber ou de entregas como iFood), de gostos e preferências (como os usados pela Amazon,  YouTube e Netflix para sugerir mercadorias e recomendar conteúdo audiovisual), ou tudo isso junto e misturado com dados sobre curtidas, comentários e compartilhamentos, como sói ocorrer em redes sociais como Facebook, X, Instagram e Tik Tok. Quanto mais tempo um usuário estiver interagindo em uma plataforma, mais dados pessoais irá produzir.

No afã de prender a atenção, o conteúdo apresentado em redes sociais e páginas de notícias muitas vezes apela para a reação emocional, não mediada pela racionalidade, que se comunica com o inconsciente e com o não domesticado, para capturar o olhar, dilatar pupilas e mobilizar polegares e indicadores, ainda que por um momento fugaz. A arquitetura das plataformas também é pensada com esse objetivo, como se vê no scrolling infinito das redes sociais, uma espécie de gamificação inspirada nos caça-níqueis dos cassinos e das biroscas, que estimula dedos nervosos à viciante caça por níqueis informacionais.[ii]

O revés da economia da atenção, como disse o economista Herbert Alexander Simon, é a riqueza de informação resultar na pobreza de atenção. Eis a atual condição de hiperinformação que causa nos indivíduos desatenção, incapacidade de concentração, compulsão e ansiedade. Uma vez que as pessoas são constantemente lembradas, notificadas e cutucadas por dispositivos eletrônicos que trazem informação a granel e muitas vezes fatiada em pequenos espasmos de texto, vídeo ou meme, se torna cada vez mais difícil manter o foco em atividades que requerem concentração, como ler um livro ou mesmo assistir a um filme ou espetáculo musical.

Sendo a cultura uma dimensão que pressupõe a possibilidade de uma atenção profunda e contemplativa do ser humano, o filósofo Byung-Chul Han argumenta que o excesso de estímulos, informações e impulsos das tecnologias de informação, aliado à cobrança por desempenho (tanto no trabalho quanto na vida pessoal que se compartilha nas redes sociais), tende a deslocar a atenção profunda para uma forma de “hiperatenção”, ou seja, uma atenção dispersa que muda rapidamente o foco entre diversas atividades e fontes de informação.[iii]

Além de afetar a saúde mental e a capacidade de concentração dos indivíduos, a livre e desregulada circulação de desinformação e negacionismo científico e ambiental nas redes digitais dá palco a extremismos de caráter fascista, insufla movimentos antivacina e cria um ambiente de poluição informacional que prejudica o combate ao aquecimento global, aos discursos de ódio contra grupos vulneráveis e até mesmo a doenças e pandemias.

O uso político do que Marco Schneider chama de desinformação digital em rede,[iv] com o direcionamento em escala macro de notícias falsas no intuito de manipular a opinião pública e interferir em pleitos eleitorais, pôde ser acompanhado na atuação da empresa Cambridge Analytica durante as campanhas de Donald Trump, nos Estados Unidos, e do Brexit, no Reino Unido, ambas em 2016.

Revelado em 2018 pelo ex-funcionário Christopher Wylie, o escândalo da Cambridge Analytica envolveu a extração de dados pessoais de mais de 80 milhões de usuários do Facebook, o que obrigou o dono da plataforma, Mark Zuckerberg, a comparecer a uma sabatina de cinco horas diante do Senado norte-americano. O caso foi tão grave que o interrogatório do bilionário foi transmitido ao vivo pela TV, e a Mark Zuckerberg foi cobrado um maior empenho e investimento no combate à desinformação na moderação do discurso de ódio no ecossistema digital – sua empresa, a Meta, hoje controla quatro grandes plataformas de comunicação (Facebook, Instagram, Whatsapp e Threads), e só o Facebook possui mais de 3 bilhões de acessos diários.

No interregno das administrações de Donald Trump, cuja conta do Facebook chegou a ser bloqueada por Mark Zuckerberg na ressaca da invasão do Capitólio, o magnata das redes se gabava de trabalhar com mais de 100 organizações em 60 idiomas para combater a desinformação em suas plataformas.

Agora, com Donald Trump de volta ao poder, o dono da Meta vem a público – exatamente quatro anos após ter banido o extremista republicano da rede azul – dizer que irá “trabalhar com o presidente Donald Trump para combater os governos ao redor do mundo que estão atacando empresas americanas e pressionando-as por mais censura”, e declara que irá se livrar dos fact checkers e abrandar os filtros que fazem a moderação de conteúdo no Facebook, Instagram e Threads, para “garantir que as pessoas possam manifestar suas crenças e experiências”.

Para Mark Zuckerberg e os acionistas da Meta, a medida significa não apenas uma economia imediata de bilhões de dólares que deixarão de ser gastos com moderação de conteúdo, mas também um potencial aumento dos lucros mediante o acirramento dos embates políticos que geram “engajamento” nas redes. O efeito previsível dessa medida é uma maior permeabilidade da rede para a circulação de desinformação e discursos de ódio, especialmente direcionados à comunidade LGBTQIAPN+, como fica evidente na permissão para que usuários, com base em suas convicções políticas ou religiosas, possam compartilhar alegações de doença mental ou anormalidade quando baseadas em gênero ou orientação sexual.[v]

E para os bilhões de indivíduos que usam as redes sociais de Zuckerberg, a consequência esperada é o aumento da podridão cerebral discutida neste texto, acompanhada de transtornos obsessivo-compulsivos, agitação, depressão, irritabilidade, insensibilidade empática e toda sorte de perturbações psicossomáticas. Resta saber se povos e governos ao redor do mundo estão de acordo com essa Meta.

 

Fonte: A Terra é Redonda

 

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