Dennis Oliveira: O eclipse
do cidadão
O anúncio do CEO da Meta, Mark Zuckerberg, de colocar fim as moderações e
checagens feitas por analistas das informações postadas nas redes sociais da
empresa motivou uma série de discussões sobre os impactos na disseminação
de fake news e discursos de ódio. Mark Zuckerberg anunciou na
primeira semana de janeiro de 2025 que as plataformas de redes da Meta –
Facebook e Instagram – ao invés de terem os conteúdos postados sujeitos a
avaliação e checagem de analistas da empresa serão objeto de controles por um
sistema chamado de “notas à comunidade”, semelhante ao usado na plataforma X,
de Elon Musk.
Este sistema deixa a moderação a cargo dos próprios usuários da rede. Na
plataforma X, o sistema funciona da seguinte forma: usuários se inscrevem
voluntariamente para redigir notas a respeito de determinado conteúdo, e depois
outros usuários avaliam se estas notas são pertinentes ou não – de acordo com o
número de avaliações positivas recebidas, a nota é incluída abaixo do conteúdo
postado.
Tal decisão do comando da empresa Meta ocorreu às vésperas da posse do
presidente Donald Trump que, entre outras coisas, vem enfatizando a defesa de
uma concepção de liberdade de expressão sem qualquer restrição ou regulação.
Mark Zuckerberg inclusive, no mesmo discurso em que anunciou a nova política da
Meta, criticou posições de judiciários principalmente do continente
latino-americano que tentam responsabilizar as plataformas de rede por
conteúdos disseminados. Há aqui uma evidente convergência política com a
extrema direita mundial que já conta com outro expoente da plataforma digital,
Elon Musk.
Este episódio é importante para sinalizar aspectos contemporâneos da
sociedade capitalista. Jordi Dean chama o atual momento do capitalismo de
“capitalismo comunicativo” pois os fluxos de informação adquirem um valor
estratégico nas dinâmicas de produção (por exemplo, o just-in-time só
é possível com a existência de um fluxo eficiente de informação entre as várias
pontas do circuito produção-distribuição-consumo) e é evidente que esta lógica
da organização produtiva se irradia como referência ideológica que conforma as
subjetividades.
Todas as características da sociedade contemporânea que demandam vários
estudos sobre problemas como hipervelocidade, ansiedade, angústias, “sociedade
do cansaço”, entre outras decorrem da conformação social como necessidade de adequação
a uma lógica produtiva.
Do ponto de vista político, chama a atenção a característica desta
mudança – da moderação feita por uma equipe de checagem para uma classificação
ou contraponto a partir da “quantidade de usuários” que avaliam positiva ou negativamente
uma postagem. Observa-se aqui claramente uma prática que sinaliza o que Max
Horkheimer chama da passagem de uma razão subjetiva para uma razão
instrumental.
Por razão subjetiva, Max Horkheimer define uma racionalidade baseada na
capacidade do ser humano pensar e refletir de forma autônoma em busca dos
significados da existência e da justiça social. Tal razão extrapola a utilidade
prática e sinaliza para uma postura crítica, ou nos dizeres de Agnes Heller, de
suspensão do cotidiano e de sua pragmática. Já a razão instrumental é a própria
justificativa dos meios em função das suas finalidades. O objetivo é a
eficiência, o controle e a busca de resultados práticos.
Uma ressalva: é evidente que não se considera que a moderação feita por
uma equipe de checagem da Meta era motivada por uma racionalidade subjetiva e
estava eivada de elementos instrumentais. Porém, a delegação aos próprios
usuários escancara de vez o caráter instrumental de avaliação, sem qualquer
prurido dele estar sendo legitimado por um corpo de “especialistas” com
legitimidades construídas por outros vetores.
Note-se que a decisão de Zuckerberg atende a uma tendência política
(fortalecimento da extrema direita) e tem um fim econômico pois submete as
avaliações de qualidade à opinião majoritária dos usuários (insumos das
plataformas de rede pois seus hábitos são transformados em informações que se
transformam em estratégias de marketing para os anunciantes nas plataformas
digitais). Esta é a plena realização do eclipse do cidadão pela sombra
totalizante do consumidor, da razão subjetiva pela instrumental e, finalmente,
do divórcio entre poder (do capital) e a política (da esfera pública) de que
fala o sociólogo polonês Zygmunt Bauman.
Na obra Reiventando @ cultura, Muniz Sodré fala de um
retorno a dimensão da retórica (poder da argumentação) em detrimento da
dialética (busca pela verdade) como um dos sintomas do momento que ele chama de
tecnocultura (articulação entre cultura, tecnologia e economia de mercado).
Neste sentido, não se trata apenas de um declínio da razão esclarecedora ou
subjetiva em favor da sua instrumentalidade para a eficácia do capital, mas sim
da emergência da retórica argumentativa ou da “era das sensibilidades” como diz
o próprio Sodré em outra obra. Com base nisto, o diagnostico é que o momento
atual é de uma guerra de argumentações, ou de “narrativas”.
Assim, neste momento de capitalismo comunicativo com todas as suas
nuances, o governo federal anuncia mudança no comando da Secretaria de
Comunicação, trocando Paulo Pimenta, deputado federal e portanto uma figura
oriunda das instituições clássicas da política por Sidônio Pereira que traz no
seu currículo ter sido o publicitário responsável pela campanha vitoriosa de
Lula nas eleições presidenciais de 2022.
O que motiva a troca? Que o principal problema do governo é de
“comunicação” – apesar de indicadores favoráveis na economia (crescimento do
PIB, inflação sob controle, redução do desemprego), a popularidade do governo
não decola. E aqui a comunicação é colocada na perspectiva de uma racionalidade
instrumental (sua eficácia em termos de ter resultados esperados). E nada mais
simbólico que esta instrumentalidade ao estabelecer critérios instrumentais
para a troca – o atual ministro “falha” no seu trabalho por conta dos
resultados e, ao mesmo tempo, o novo indicado tem como credencial ter feito uma
campanha “vitoriosa”.
Dizer que o problema é de comunicação e que comunicação é estratégica
não significa entender o campo comunicacional como elemento essencial na
sociedade contemporânea. Não se trata de um uso mais ou menos “eficiente” das
redes sociais, mas compreender as dinâmicas dos fluxos comunicacionais dentro
das lógicas produtivas do capitalismo comunicativo e as sociabilidades
funcionais daí decorrentes. O entendimento é fundamental para estabelecer
posicionamentos que se coadunam com a construção de um projeto político
emancipador. O que se percebe é que a forma como isto é discutido no âmbito
governamental não expressa apenas um desconhecimento do campo, mas também que
está longe de se pensar em perspectivas novas.
Uma sociabilidade construída a partir dos fluxos de informação inerentes
ao capitalismo comunicativo não é apenas a troca da informação analógica pela
digital. Trata-se da constituição de subjetividades impactadas por tecnologias
de sociabilidades cujas formas digitais carregam sentidos, percepções de tempo
e espaço, todas adequadas e aderentes ao sistema vigente. E é evidente que
determinados sentidos terão mais dificuldades de terem apoio.
É aqui que reside o perigo do modelo de moderação feita pelos próprios
usuários que será implantado pelas plataformas de rede da Meta. Não se trata
apenas de uma eficiência ou competência melhor de extremistas em ocupar as
redes, mas sim que os sentidos que eles defendem estão mais em consonância com
o modelo de sociabilidade construído pelo capitalismo comunicativo. Em um
modelo de organização da produção centrado em uma lógica de competição cada vez
mais acirrada, como se pensar que mensagem com sentidos de valores coletivos,
respeito a diversidade, regulação social sejam mais palatáveis que discursos
narcisistas e egocêntricos que descambam rapidamente para intolerância
explícita ou mesmo um “cinismo blasé”?
Neste processo complexo, o jornalismo como atividade que conecta o
cidadão com a construção da história pelas singularidades factuais é impactado
à medida que a possibilidade de ampliação da compreensão do fato singular é
apartada da perspectiva de uma racionalidade subjetiva. Há um evidente
esvaziamento do papel intelectual do jornalista como mediador que pode se
dissolver no modelo de “curadoria de informações disseminadas nas redes
sociais” – como têm sido vários produtos jornalísticos vendidos como
“reportagens” – ou como um estrategista de gerenciador de informações dentro da
lógica de uma racionalidade instrumental (não é à toa a contratação de vários
profissionais do jornalismo por empresas da área do capital especulativo que
vive da disseminação de “boatos” ou informações plantadas).
Com tudo isso, não é necessário instituir poderes ditatoriais clássicos
para interditar a liberdade de expressão. Ela já ocorre por conta destas
metamorfoses do capitalismo que necessita do controle dos fluxos informativos
para a reprodução da riqueza e que molda os sujeitos adequados a esta ordem
dentro de paradigmas comunicacionais que barram uma razão crítica.
O grande problema é que mesmo governos que se dizem progressistas ou de
esquerda se rendem a esta lógica por desconhecimento, por pragmatismo ou uma
combinação de ambos. E aí ao se transformar em uma sombra mal projetada da
ordem dominante rapidamente caem no descrédito e creditam tal situação a
problema de “comunicação”. Mas entre a imagem mal projetada e o referente, este
último acaba sendo preferido ainda que se tente melhorar a projeção da imagem.
O mesmo se aplica ao jornalismo. Submeter-se à lógica da razão
instrumental do capitalismo comunicativo é a sua morte. A essência do
jornalismo é justamente possibilitar a compreensão de uma sociedade em
fazimento. A razão instrumental do capitalismo comunicativo é impedir tal
compreensão justamente porque ela sinaliza para a sua crítica.
¨
Cérebros podres como Meta. Por Arthur Coelho Bezerra
Brain rot foi a “palavra do ano” de
2024, segundo a tradicional eleição anual da Oxford
University Press,
a maior editora universitária do mundo. Podendo ser traduzido por “podridão
cerebral”, brain rot nomeia a deterioração do estado
mental ou intelectual de uma pessoa, especialmente vista como resultado do
consumo excessivo de material considerado banal ou pouco desafiador. O aumento
de 230% na frequência do uso do termo entre 2023 e 2024, segundo a Oxford,[i] reflete preocupações da sociedade
a respeito dos possíveis impactos do uso prolongado de tecnologia digital para
consumo de conteúdos irrelevantes, nada críticos e de baixa qualidade. Mais
especificamente, essa inquietação aflige pais e responsáveis por crianças e
adolescentes que acessam redes sociais digitais em idade cada vez mais precoce
e de forma cada vez mais viciante.
Um sintoma dessa aflição parental está no fenômeno de
vendas, no Brasil e no exterior, do livro A
geração ansiosa: Como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de
transtornos mentais,
de Jonathan Haidt. O psicólogo social integra o grupo de pesquisadores que têm
destacado a estreita relação entre a exploração comercial de plataformas de
comunicação digital e o aumento de taxas de depressão, ansiedade e outros
transtornos mentais nos últimos 15 anos – justamente o período em que se nota
um acelerado desenvolvimento da inteligência artificial, das redes neurais e do
aprendizado de máquina.
Essas avançadas técnicas que engendram a produção e
circulação de informação em formato digital têm sido utilizadas pelos
principais conglomerados de tecnologia para estimular a produção intermitente
de dados pessoais por parte dos usuários de seus serviços.
Como já se sabe, em praticamente todos os modelos de
negócios estruturados em torno de plataformas digitais, os dados produzidos
pelos usuários da internet representam hoje um insumo indispensável, sejam
esses dados de geolocalização (fundamentais para plataformas de transporte como
Uber ou de entregas como iFood), de gostos e preferências (como os usados pela
Amazon, YouTube e Netflix para sugerir mercadorias e recomendar conteúdo
audiovisual), ou tudo isso junto e misturado com dados sobre curtidas,
comentários e compartilhamentos, como sói ocorrer em redes sociais como
Facebook, X, Instagram e Tik Tok. Quanto mais tempo um usuário estiver
interagindo em uma plataforma, mais dados pessoais irá produzir.
No afã de prender a atenção, o conteúdo apresentado em
redes sociais e páginas de notícias muitas vezes apela para a reação emocional,
não mediada pela racionalidade, que se comunica com o inconsciente e com o não
domesticado, para capturar o olhar, dilatar pupilas e mobilizar polegares e
indicadores, ainda que por um momento fugaz. A arquitetura das plataformas
também é pensada com esse objetivo, como se vê no scrolling infinito das
redes sociais, uma espécie de gamificação inspirada nos
caça-níqueis dos cassinos e das biroscas, que estimula dedos nervosos à
viciante caça por níqueis informacionais.[ii]
O revés da economia da atenção, como disse o economista
Herbert Alexander Simon, é a riqueza de informação resultar na pobreza de
atenção. Eis a atual condição de hiperinformação que causa nos indivíduos desatenção,
incapacidade de concentração, compulsão e ansiedade. Uma vez que as pessoas são
constantemente lembradas, notificadas e cutucadas por dispositivos eletrônicos
que trazem informação a granel e muitas vezes fatiada em pequenos espasmos de
texto, vídeo ou meme, se torna cada vez mais difícil manter o foco em
atividades que requerem concentração, como ler um livro ou mesmo assistir a um
filme ou espetáculo musical.
Sendo a cultura uma dimensão que pressupõe a
possibilidade de uma atenção profunda e contemplativa do ser humano, o filósofo
Byung-Chul Han argumenta que o excesso de estímulos, informações e impulsos das
tecnologias de informação, aliado à cobrança por desempenho (tanto no trabalho
quanto na vida pessoal que se compartilha nas redes sociais), tende a deslocar
a atenção profunda para uma forma de “hiperatenção”, ou seja, uma atenção
dispersa que muda rapidamente o foco entre diversas atividades e fontes de
informação.[iii]
Além de afetar a saúde mental e a capacidade de
concentração dos indivíduos, a livre e desregulada circulação de desinformação
e negacionismo científico e ambiental nas redes digitais dá palco a extremismos
de caráter fascista, insufla movimentos antivacina e cria um ambiente de
poluição informacional que prejudica o combate ao aquecimento global, aos
discursos de ódio contra grupos vulneráveis e até mesmo a doenças e pandemias.
O uso político do que Marco Schneider chama de
desinformação digital em rede,[iv] com o direcionamento em escala
macro de notícias falsas no intuito de manipular a opinião pública e interferir
em pleitos eleitorais, pôde ser acompanhado na atuação da empresa Cambridge
Analytica durante as campanhas de Donald Trump, nos Estados Unidos, e do Brexit, no Reino Unido,
ambas em 2016.
Revelado em 2018 pelo ex-funcionário Christopher Wylie,
o escândalo da Cambridge Analytica envolveu a extração de dados pessoais de
mais de 80 milhões de usuários do Facebook, o que obrigou o dono da plataforma,
Mark Zuckerberg, a comparecer a uma sabatina de cinco horas diante do Senado
norte-americano. O caso foi tão grave que o interrogatório do bilionário foi transmitido
ao vivo pela TV, e a Mark Zuckerberg foi cobrado um maior empenho e
investimento no combate à desinformação na moderação do discurso de ódio no
ecossistema digital – sua empresa, a Meta, hoje controla quatro grandes
plataformas de comunicação (Facebook, Instagram, Whatsapp e Threads), e só o
Facebook possui mais de 3 bilhões de acessos diários.
No interregno das administrações de Donald Trump, cuja
conta do Facebook chegou a ser bloqueada por Mark Zuckerberg na ressaca da
invasão do Capitólio, o magnata das redes se gabava de trabalhar com mais de
100 organizações em 60 idiomas para combater a desinformação em suas
plataformas.
Agora, com Donald Trump de volta ao poder, o dono da
Meta vem a público – exatamente quatro anos após ter banido o extremista
republicano da rede azul – dizer que irá “trabalhar com o presidente Donald
Trump para combater os governos ao redor do mundo que estão atacando empresas
americanas e pressionando-as por mais censura”, e declara que irá se livrar
dos fact checkers e abrandar os filtros que fazem a
moderação de conteúdo no Facebook, Instagram e Threads, para “garantir que as
pessoas possam manifestar suas crenças e experiências”.
Para Mark Zuckerberg e os acionistas da Meta, a medida
significa não apenas uma economia imediata de bilhões de dólares que deixarão
de ser gastos com moderação de conteúdo, mas também um potencial aumento dos
lucros mediante o acirramento dos embates políticos que geram “engajamento” nas
redes. O efeito previsível dessa medida é uma maior permeabilidade da rede para
a circulação de desinformação e discursos de ódio, especialmente direcionados à
comunidade LGBTQIAPN+, como fica evidente na permissão para que usuários, com
base em suas convicções políticas ou religiosas, possam compartilhar alegações
de doença mental ou anormalidade quando baseadas em gênero ou orientação
sexual.[v]
E para os bilhões de indivíduos que usam as redes
sociais de Zuckerberg, a consequência esperada é o aumento da podridão cerebral
discutida neste texto, acompanhada de transtornos obsessivo-compulsivos,
agitação, depressão, irritabilidade, insensibilidade empática e toda sorte de
perturbações psicossomáticas. Resta saber se povos e governos ao redor do mundo
estão de acordo com essa Meta.
Fonte: A Terra é
Redonda
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