Por que você não
precisa estar sozinho para se sentir solitário
Existem muitos
tipos de solidão, que cada pessoa
sente de forma diferente.
O que é a solidão
para você?
A solidão pode ser
uma cidade. Nas suas ruas, em meio ao burburinho, às multidões, às conversas e
risadas, alguém pode muito bem se sentir um estranho – desnorteado,
desconectado, no caminho dos outros.
Talvez seja um
relacionamento que azedou. Um casamento ou relacionamento com palavras não
ouvidas e necessidades não atendidas. Você está ali, mas nunca é visto.
Ou talvez você se
sinta como Robert Walton, o explorador polar de Frankenstein, de Mary
Shelley. Ele vive rodeado de companheiros de confiança, mas, na verdade, formou
apenas um amigo de verdade, "a companhia de um homem que consegue ter
empatia por mim, cujos olhos reagem aos meus".
É senso comum que o
isolamento físico pode levar à solidão – e poucas coisas são tão dolorosas
quanto a solidão crônica, imposta e vivenciada pelas pessoas mais
vulneráveis da nossa sociedade.
Mas, se você tiver
vivido situações como as descritas nos parágrafos iniciais desta reportagem,
poderá também ter suspeitado que outras pessoas nem sempre são o antídoto
contra a solidão.
Na verdade, elas
podem até fazer parte do problema.
O fato é que
podemos ficar sozinhos com a mesma facilidade em meio a uma multidão, em um
relacionamento amoroso ou entre amigos.
Um estudo de 2021 envolvendo
756 pessoas que registraram regularmente como se sentiam em um aplicativo de
celular por um período de dois anos confirmou essa observação.
A sensação de
solidão parece aumentar em ambientes superlotados e densamente povoados – ou
seja, nas cidades modernas.
Será que o nosso
estilo de vida cada vez mais urbano e dominado pela tecnologia está nos
deixando com a sensação de estarmos menos conectados uns aos outros? E existem
soluções escondidas nessas descobertas?
Entender esse
paradoxo certamente é importante. Afinal, sabemos que vivemos uma "epidemia de solidão" – um surto
global que não reconhece
fronteiras,
afeta jovens e idosos e pode
até reconfigurar o
nosso cérebro.
Em 2018, a
experiência BBC Loneliness Experiment analisou uma
amostra de 55 mil pessoas de todo o mundo. O estudo concluiu que 40% das pessoas
com 16 a 24 anos de idade se sentem sozinhas frequentemente ou com muita
frequência.
Outros estudos
demonstram que cerca de 10% dos adultos de todo o mundo sentem solidão,
de muitas formas
diferentes.
Mas essa epidemia
chega em um momento em que temos mais formas do que nunca para nos conectar com
os demais. A tecnologia nos permite ligar para os amigos e familiares no outro
lado do planeta, conversar online com pessoas que nunca encontramos
pessoalmente e acompanhar as vidas dos nossos conhecidos nas redes sociais.
Por outro lado, a
população urbana também está crescendo rapidamente. Estima-se que 68% da
população mundial more em cidades até meados
deste século.
Por que, então, no
nosso mundo atribulado e conectado pela tecnologia, ainda nos sentimos
solitários, mesmo em meio a outras pessoas?
E seria esta
realmente outra pandemia, algo a ser sempre evitado, medicado, erradicado,
estigmatizado? Ou podemos também aprender com ela?
A solidão é um
conceito complexo e difuso, algo que todos nós vivenciamos de alguma forma.
A professora de
história Fay Bound Alberti, do King's College de Londres, é a autora do
livro A Biography of
Loneliness ("Biografia
da solidão", em tradução literal). Ela defende que, em vez de um estado
emocional definido, a solidão, na verdade, é um "conjunto"
de emoções,
que pode incluir sentimentos como pesar, raiva e ciúme.
Sua pesquisa também
revela que a solidão é uma "invenção" relativamente
recente.
A palavra só assumiu seu significado atual perto do ano 1800.
Ainda assim,
a ciência define atualmente a
solidão, de forma geral, como a desconexão entre os relacionamentos sociais
reais e os desejados, o que reflete a realidade de que você não precisa estar
sozinho para se sentir solitário.
O psicólogo Sam
Carr, da Universidade de Bath, no Reino Unido, pesquisa os relacionamentos
humanos. Ele acredita que o "maior mito" é que as pessoas são sempre
a solução para a solidão.
"As pessoas,
na verdade, podem ser a causa", afirma Carr. Ele é o autor do livro All the Lonely
People ("Todas
as pessoas solitárias", em tradução literal), que estuda as diversas
experiências de solidão das pessoas.
"Todos nós
somos uma espécie de peça de quebra-cabeça e queremos sentir que nos
encaixamos", explica ele. "E as outras pessoas, muitas vezes, podem
ser o motivo de não nos sentirmos assim."
"Mesmo se for
um amigo ou parceiro, talvez eles não nos reconheçam por quem somos. Ou nos
fazem parecer invisíveis. Ou precisamos fingir que somos outra pessoa na
companhia deles. Para muitas pessoas, esta parece ser a essência da sua
solidão."
Bound Alberti
concorda que o isolamento físico dos demais não é necessariamente o que torna
as pessoas solitárias.
"As pessoas
acham que, para ser solitário, você precisa estar sozinho", explica ela.
"Mas minha pesquisa indica que
não é tanto a distância física dos demais que nos faz sentir mais solidão, mas
a distância emocional."
"As pessoas
mais solitárias são aquelas que estão em relacionamentos que deveriam ser
enriquecedores, mas não são. Algumas das experiências mais solitárias que
vivenciei ocorreram quando eu estava rodeada de muitas pessoas que não estão
nem remotamente na mesma frequência que eu."
Carr recebeu
recentemente uma carta dos Estados Unidos. Sua autora contou que é casada há
meio século.
Ela também revelou
que seu marido sempre foi a fonte da sua solidão. Ela esperava que o casamento
fosse a cura – e acabou sendo a causa.
Afinal, se um
parceiro priorizar a conexão física enquanto o outro deseja um laço intelectual
questionador, eles podem muito bem acabar solitários, mesmo estando juntos.
"Pode ser
questão de percepção – se você sente que suas necessidades são atendidas",
destaca a pesquisadora de saúde mental Olivia Remes, da Universidade de
Cambridge, no Reino Unido. Ela é a autora do livro The Instant Mood
Fix ("O
reparo instantâneo do humor", em tradução livre).
"Algumas
pessoas com forte conexão a apenas uma pessoa não se sentem isoladas, enquanto
outras, que estão rodeadas por muita gente, mas desejam conexões mais
profundas, sim", explica ela.
·
O
caminho da evolução
Sentir-se solitário
é algo incrustado na nossa humanidade. Algumas pessoas acreditam que a solidão
atende a uma função evolutiva de adaptação,
que nos incentiva a tomar ações para promover nossa sobrevivência imediata.
Da mesma forma que
a fome nos orienta a procurar alimento, a solidão, segundo Remes, "nos diz
que algo está errado com o nosso ambiente social e que precisamos fazer alguma
coisa a respeito".
Para os nossos
ancestrais pré-históricos, o isolamento era perigoso. Eles ficavam mais
vulneráveis aos animais e a outros perigos. Com isso, sua possibilidade de
sobreviver e transmitir seus genes diminuía.
Por isso, a
sensação de solidão, seja de que forma fosse vivenciada naquela época, pode ter
sido um mecanismo
neurológico para
incentivá-los a procurar a segurança de viver em grupo.
Mas os tempos
mudaram e, com eles, mudou a postura humana em relação à solidão e ao
isolamento.
A pesquisa de Bound
Alberti defende
que, até o século 19, o termo "solidão" realmente não existia na
forma em que o usamos hoje em dia.
Naquela época,
"solitário" significava simplesmente ser singular, único. Raramente
era algo ruim. Ficar sozinho aumentava a conexão com a natureza ou com Deus,
retirando o ruído de fundo.
"Era uma
expressão de 'unicidade'", segundo Bound Alberti. "E eu adoro esse
termo – gostaria que ele entrasse na moda outra vez."
"Quando
William Wordsworth [poeta inglês] escreveu sobre vagar 'sozinho como uma
nuvem', ele falava simplesmente sobre ficar sozinho. Não significava que ele
sentisse a carência emocional que, agora, associamos ao termo
[solitário]."
Mas as sociedades
de todo o mundo mudaram radicalmente nos dois séculos seguintes.
Bound Alberti
defende que, com o enfraquecimento dos sistemas religiosos e de outras crenças
tradicionais, o crescimento das cidades e a dispersão das famílias e
comunidades, as pessoas ficaram mais "anônimas" e menos conectadas.
E o aumento do
individualismo, como observaram alguns estudos, pode também ter colaborado
neste processo.
"Quando olho
em volta e observo a falta de assistência social, a falta de conexão, a falta
da capacidade de nos sentirmos pertencentes, exceto quando fazemos compras (que
é, cada vez mais, a única forma de nos reunirmos em espaços físicos), parece
que o sentimento de solidão, na verdade, não é nenhuma surpresa", afirma
Bound Alberti.
"O estranho
seria se não nos sentíssemos assim."
Mas o que podemos
fazer quando nos sentirmos solitários, mesmo estando rodeados pelas pessoas?
Bem, a primeira medida é encontrar a diferença entre a solidão crônica e a
passageira.
"Se você
perceber que seus sintomas estão impedindo que você viva sua vida, trabalhe,
forme relacionamentos ou se você fica perturbado, vale a pena procurar um
profissional médico e contar o que você está sentindo", aconselha Remes.
Também é importante
distinguir entre a solidão imposta e a voluntária, orienta Bound Alberti.
Afinal, todos nós
podemos decidir nos isolar, mas muitas pessoas enfrentam circunstâncias
estruturais que impõem o isolamento, desde questões de idade e saúde até a pobreza
e a discriminação.
Ela destaca que o
governo e a comunidade precisam abordar urgentemente estes fatores estruturais.
·
Falar
com estranhos
Um problema comum
em nível pessoal é que, muitas vezes, relutamos a nos conectar com as pessoas,
principalmente estranhos, apesar dos seus benefícios comprovados.
Em um estudo de 2014, pesquisadores da
Universidade de Chicago e da Universidade da Califórnia em Berkeley, ambas nos
Estados Unidos, investigaram os motivos.
Eles começaram
perguntando às pessoas no transporte urbano de Chicago se conversar com estranhos poderia
melhorar sua viagem matinal. A maioria acreditava que não.
Mas, quando os
pesquisadores dividiram os participantes em grupos, pedindo aleatoriamente a
alguns que fizessem exatamente isso e a outros que permanecessem em silêncio,
aqueles que conversaram apreciaram mais sua viagem.
O experimento
também questionou outro dos vieses pessimistas inatos dos participantes.
Inicialmente,
apenas 40% das pessoas que viajavam de trem achavam que iriam encontrar algum
tagarela com quem conversar. Mas, na verdade, todos eles encontraram.
As conclusões
levaram algumas companhias ferroviárias britânicas a introduzir "vagões de
conversa" em 2019, em um experimento conjunto com a BBC. E uma companhia
de ônibus instalou cartões de "início de conversa" nas suas viagens.
Na verdade,
acreditar que somos menos agradáveis do que na realidade é uma característica
humana generalizada,
conhecida como liking gap (algo como
"lacuna de simpatia", em português). E ela pode realmente nos causar
bloqueios, particularmente se já estivermos solitários.
"Quanto mais
solitários e mais habituados
estivermos à solidão,
mais difícil é nos aproximarmos dos outros", explica Bound Alberti.
"Por isso, se
você estiver acostumado a ficar sozinho e se sentir rejeitado, você presume que
a expressão facial de alguém está rejeitando você ou sua linguagem corporal
está rejeitando você. E isso se torna uma profecia autorrealizável."
Ninguém está
defendendo que você pressione alguém que prefira ficar sozinho. Mas, na próxima
vez em que você se sentir solitário na multidão, tente respeitosamente iniciar
uma conversa com alguém ao seu lado.
Ou desafie você
mesmo a conversar com uma pessoa nova todos os dias. Pesquisas indicam que,
quanto mais você fizer isso, maior será sua
confiança e
o seu medo da rejeição irá diminuir.
Até conversas
curtas, como dizer "olá" ou "obrigado", podem ajudar de
alguma forma a fazer você se sentir melhor.
Mas precisamos
também reconhecer que vencer a solidão não é questão apenas de formar conexões.
É preciso estabelecer e alimentar conexões que sejam significativas. E Remes
sugere que o voluntariado é uma forma poderosa de atingir
este objetivo.
"Ajudar os
outros tira o foco de nós mesmos e do que estamos enfrentando", explica
ela.
"Em vez disso,
colocamos nossa atenção em outro indivíduo e imaginamos como podemos fazer a
diferença para ele. Isso nos ajuda a nos sentirmos conectados, o que reduz os níveis de
solidão."
O toque físico
também é importante. A quantidade de contato físico desejado pelas pessoas
varia muito entre os indivíduos. Mas existe uma conexão entre a solidão e a falta de toque – e até um
rápido toque no ombro pode aumentar a sensação de conexão social.
Um estudo de 2020 concluiu que
os participantes que receberam rápido contato físico se sentiram
significativamente menos negligenciados, especialmente os solteiros.
Mas ficar rodeado
de pessoas não é a única forma de nos sentirmos conectados. O tempo passado com
animais de estimação também
pode criar a sensação de pertencimento, da mesma forma que sair e apreciar a
natureza.
O mesmo estudo de
2021 que concluiu que as pessoas que moram em áreas urbanas superpovoadas eram
mais propensas a sentir solidão também descobriu que a sensação de solidão é reduzida
com a percepção da inclusividade
social e contato com a natureza.
De fato, as pessoas
que entraram em contato com a natureza apresentaram 28% menos probabilidade de
sentir solidão.
"O contato com a natureza é útil porque
aumenta nossa conexão a um lugar", explica Remes. "Ele cria a
sensação de pertencimento."
E, de fato, esta
sensação de conexão, pertencimento e inclusão parece ser o verdadeiro antídoto
para a solidão.
·
Solidão
nos relacionamentos
Alguns
relacionamentos também podem nos fazer sentir solidão.
Seja com um amigo
ou parceiro amoroso, podemos vivenciar solidão em um relacionamento quando
sentimos que não somos vistos, não somos ouvidos ou que precisamos usar uma
máscara ou ser alguém que não somos na companhia de outra pessoa.
Se este for o seu
caso, reserve um tempo para a comunicação. Diga ao seu amigo ou parceiro o que
você precisa e ofereça espaço para que ele também exponha suas prioridades.
Talvez o
relacionamento seja tóxico e, neste caso, você deve considerar se deve
terminá-lo. Mas você também pode ter construído muros ou desenvolvido
interesses e necessidades divergentes ao longo do tempo. Estes obstáculos podem
ser superados.
Quando vivenciamos
sentimentos de solidão, sempre vale a pena perguntar o que essas sensações
estão tentando nos dizer. Mas Remes também aconselha a ter cuidado com as
respostas que damos a nós mesmos.
Quando estamos
sozinhos, podemos perguntar: "Por quê?". Mas nossa resposta pode ter
consequências significativas.
Se respondermos
"talvez eu esteja solitário porque não me aproximei das pessoas tanto
quanto deveria", por exemplo, esta pode ser uma resposta motivadora. Ela
contém uma solução prática – preciso encontrar mais pessoas – que pode
incentivar você a entrar em ação.
Mas, se a sua
resposta for "estou sozinho porque sou desagradável" ou "sou
azarado", a solução – preciso ser mais agradável ou ter mais sorte – irá
parecer abstrata e fora do seu alcance.
"A solução é
observar a situação como estando dentro do seu controle, não fora de
alcance", orienta Remes.
Embora a solidão
seja considerada uma "epidemia" frequentemente estigmatizada,
lembre-se de que ela nem sempre é ruim.
Seja na multidão,
em um relacionamento ou nos confins da Terra, a solidão faz parte de quem nós
somos.
"Se você
analisar uma vida humana inteira, as coisas que fazem você se sentir conectado,
muitas vezes, terminam", explica Carr.
"Pode ser um
casamento, um emprego ou uma perda por
falecimento."
"A maioria
dessas coisas termina em algum momento, por um ou outro motivo – elas são meio
que transitórias. E o que a maior parte de nós, seres humanos, precisa fazer é
se reinventar em seguida e se reconectar com outra coisa. Mas isso não acontece
da noite para o dia."
"Existe um
período, uma espécie de deserto, que você precisa atravessar para se tornar uma
nova pessoa", prossegue Carr.
"E cruzar esse
deserto será inevitavelmente bastante solitário. Mas devemos apreciar esse
período como parte da realidade existencial dos seres humanos, não como uma
indicação de que estamos partidos ou precisamos de conserto."
No mundo cada vez
mais atribulado em que vivemos, encontrar melhores formas de conexão com os
demais pode ser benéfico para todos. Mas não devemos nos criticar demais quando
nos sentirmos solitários.
Lembre-se de que
este é um fenômeno natural, diversificado e, às vezes, útil, ao qual precisamos
dar atenção e não simplesmente estigmatizar.
Fonte: BBC Future
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