Democracia e política no Brasil na 'era' Trump
Em
20 de janeiro, o mundo entrará em uma nova era geopolítica, a “Era Trump".
Em seu primeiro mandato (2017-2021), Trump marcou os Estados Unidos. Na
economia, sua política de corte de impostos e elevação dos gastos públicos
inflou as estatísticas e permitiu um aumento real dos salários, que cresceram
2,9% entre 2017 e 2018. Na política externa, sua principais marcas foram o
combate à imigração, o descaso com a questão ambiental e uma diplomacia midiática,
turbinada pelas redes sociais, que, desdenhosa e agressiva, confrontou
parceiros europeus, fustigou a China e bateu duro nos regimes do Irã e da
Coréia do Norte, sem deixar de espinafrar a ONU, tida como “um clube de pessoas
que se reúnem para se divertir”.
Mas
foi na política interna que Trump foi mais Trump. Em um país polarizado,
confrontou negros, latinos, imigrantes e populações LGBTQIA+, abusou do
negacionismo científico e confrontou a democracia ao se recusar a aceitar a
derrota eleitoral para o democrata Joe Biden, que, agora, sai pelas portas dos
fundos, após ter sido forçado a abdicar da candidatura à reeleição e ver sua
escolhida, Kamala Harris, ser triturada nas urnas. Todavia, a “cereja do bolo”
de seu primeiro mandato foi o 06 de janeiro (2021), quando, sob sue furioso
incentivo, centenas de seus apoiadores invadiram o Capitólio, sede do
Legislativo Americano, resultando em depredações, cinco mortes e vários
feridos, numa intentona triste de golpe de Estado.
Sob
esse legado, o segundo mandato promete. Com maioria no Congresso e na Suprema
Corte, Trump parece ter “a faca e o queijo nas mãos”. Assim, mesmo antes de
assumir, já tem assombrado o mundo com declarações polêmicas, que prometem
reconfigurar a ordem global. Entremeando tons de ameaça e galhofa, Trump
projeta um cenário distópico, no qual guerras comerciais com a China, a União
Europeia e o próprio NAFTA, o acordo de livre-comércio da América do Norte, se
entrelaçam com práticas neo-imperialistas que ameaçam a integridade territorial
do Canadá, apontam para o controle da Groenlândia, sedimentam o morticínio de
Netanyahu em Gaza e prometem abandonar a Ucrânia e seus aliados europeus à
própria sorte no conflito com a Rússia, hoje próximo de completar três anos.
Igualmente, sob sua batuta, a maior democracia do mundo está a um passo de
anistiar os golpistas do Capitólio.
Embora
pouco preocupado com a América Latina, vista como quintal yankee, o segundo
governo Trump também deverá causar estragos na região, seja em relação a
desafetos de longa data, como Maduro, na Venezuela, seja no Brasil.
Protecionista, Trump sinaliza que produtos brasileiros como soja, carne bovina,
minério de ferro e aço semi-elaborado serão duramente taxados como parte de uma
política antiliberal, protecionista, que irá privilegiar os produtores locais.
É o America First! Além disso, promete fechar o cerco contra imigrantes
brasileiros, que, a pretexto de turismo, muitas vezes ingressam no território
norte-americano e lá permanecem como imigrantes ilegais.
Contudo,
a principal ameaça trumpista ao Brasil é a questão democrática. Trump tem o
condão de empoderar aqueles que tramam contra nossa democracia, sejam
lobo-solitários ou militares de alta patente. O nosso 08 de janeiro (2023),
versão candanga da intentona norte-americana, mostrou que a democracia
brasileira tem vulnerabilidades evidentes. Mas também deixou claro que ela não
cairá sem luta. Afinal, os arranjos institucionais inscritos na Constituição
Federal, a Constituição Cidadã de Ulysses Guimarães e Bernardo Cabral, somados
aos esforços do Planalto e do STF, apoiados por jornalistas, juristas e
diferentes movimentos sociais, tem permitido com que os ataques à democracia
sejam reconvertidos. Até aqui, o melhor exemplo dessa defesa militante é a
condenação dos golpistas. Dois anos após o 08 de janeiro, o STF já condenou
mais de 370 pessoas, das 2 mil que foram investigadas. Outras 527 pessoas
admitiram crimes de natureza menos gravosa e fizeram acordos com o Ministério
Público Federal.
“Ainda
estamos aqui” e, dessa vez, não haverá impunidade, nem anistia. Neste contexto,
seja pelos atos de 08 de janeiro, seja por outras iniciativas golpistas, como a
“Operação Punhal Verde e Amarelo”, expoentes do iliberalismo reacionário estão
sendo acossados pela justiça, do que é exemplo o general Braga Netto, hoje
preso preventivamente. Além disso, números recém publicados pelo Instituto
Quaest, mostram que 86% dos brasileiros desaprovam a intentona golpista
tupiniquim e que 50% dos entrevistados acreditam que o ato em Brasília foi influenciado
por Bolsonaro, assim como o ataque ao Capitólio foi instigado por Trump.
Em
verdade, os eventos do 06 (EUA) e do 08 (Brasil) de janeiro são siameses.
Derrotados, Trump e Bolsonaro quiseram tomar o poder. Agora, com o retorno de
Trump à Casa Branca, um “apito de cachorro” desperta a sanha golpista daqueles
que gostariam de viver um novo ciclo autoritário no Brasil. Não por outro
motivo, um cabisbaixo Bolsonaro tentou reaver seu passaporte para “prestigiar”
a nova posse de Trump, para a qual teria sido convidado, embora o convite
oficial nunca tenha aparecido. Na verdade, tudo indica que Bolsonaro, cuja
coragem é pouco apreciada, armou uma ridícula “estratégia de fuga”, pela qual
tentaria obter asilo nos Estados Unidos, evitando uma iminente prisão.
Fato
ou fake, o certo é que ainda veremos muitos desdobramentos do segundo governo
Trump por aqui. Todavia, em que pese os recalcitrantes, até aqui a democracia
resiste. Bolsonaro até tentou que as Forças Armadas apoiassem sua aventura
golpista. Mauro Cid e outros asseclas bem expressam a “turma do golpe”, sempre
presente na caserna. Estas, todavia, não ficaram submissas aos intentos do
ex-capitão. A democracia se mostrou mais forte do que muitos de nós,
brasileiros, pensamos. Bem sabemos que “o mundo é um moinho”, mas, por hora,
cabe dizer: perdeu, playboy!
¨ Trump e o Brasil:
normalidade pragmática ou ruídos ideológicos?
Antes mesmo de
ocupar a mesa de fundo do Salão Oval da Casa Branca, Donald Trump fez ecoar que
não pretende manter uma convivência sem arestas com o restante do mundo. Mandou
recados para a Dinamarca sobre a Groenlândia, em relação à segurança do
território norte-americano; ao Canadá e ao México, no que diz respeito às bases
nas quais o USMCA (bloco econômico formado por Estados Unidos, México e Canadá)
está assentado — ao vizinho de cima, falou sobre possível integração aos
Estados Unidos, e, ao de baixo, um rearranjo que incluiria renomear o golfo que
alcança as costas texana e da Louisiana; aos países da América Central, para
que não "exportem" imigrantes ilegais, pois serão todos mandados de
volta à força; e à China e ao Brasil, que repensem taxações que incidem sobre
produtos que compõem a pauta comercial — e nisso está embutido o incômodo com o
avanço do Brics.
O primeiro
sinal de como serão conduzidas as relações entre Brasil e Estados Unidos será o
novo embaixador a desembarcar em Brasília. Em passado recente, o então
representante diplomático norte-americano, Todd Chapman, fez questão de
evidenciar alinhamento, ao promover um churrasco comemorativo ao 4 de Julho e
receber um grupo de políticos brasileiros em plena pandemia de covid-19.
O recado ao Palácio
do Planalto virá daí. A deduzir pela formação do primeiro escalão do governo
Trump, será alguém diretamente conectado a ele, que terá uma função bem
específica: acompanhar de perto a desenvoltura com que o presidente Lula busca
se impor como liderança para além do campo regional.
Sob o escrutínio
norte-americano, dois eventos incômodos para Washington e que colocam o Brasil
na liderança. O primeiro, a cúpula do Brics no Rio de Janeiro, possivelmente em
julho, que debaterá, além das mudanças climáticas, a utilização da inteligência
artificial, assunto que mexe com o humor das big techs, já devidamente
abrigadas no governo Trump. A presidência brasileira do bloco — que, além de
China e Rússia, tem como integrantes Irã, Emirados Árabes, Arábia Saudita e
Indonésia, todos islâmicos e potências energéticas — é um desconforto que se
estende, inclusive, ao acordo Mercosul-União Europeia, cuja implementação pode
ser acelerada em função da mudança de ventos nos EUA.
O segundo assunto
que é um aborrecimento para Trump é a COP 30, em Belém, em novembro, no qual o
Brasil, mais uma vez, ocupará posição central. Trata-se de um evento para o
qual o futuro governo norte-americano torce o nariz. Tanto que, à frente da
Agência de Proteção Ambiental (EPA, sigla em inglês), estará o ex-deputado Lee
Zeldin. Trumpista de primeira hora e inexperiente na área, assume com o
propósito de promover o enfraquecimento das leis ambientais norte-americanas,
segundo a jornalista Coral Davenport, do The New York Times.
Apesar de arroubos
retóricos, em condições normais as relações entre as nações se baseiam no
pragmatismo conduzido pelo discreto balé da diplomacia. Mas, a partir de
amanhã, essa regra pode se alterar no caminho entre Brasília e Washington — e a
ruidosa (e ruinosa) ideologia assumir o protagonismo.
¨ Volta de Trump ao
poder deve acirrar concorrência agrícola entre Brasil e EUA
O retorno de Donald
Trump à presidência dos Estados Unidos no próximo dia 20 deve acentuar a
concorrência no agronegócio entre Brasil e Estados Unidos. Trump volta ao poder
com o anúncio de políticas comerciais protecionistas que, por um lado, podem
favorecer o comércio de produtos agropecuários brasileiros a países
importadores, como a China mas, de outro lado, tendem a embaraçar negociações
para ampliações e aberturas de mercados entre os países. Para especialistas em
comércio exterior, representantes de entidades privadas e do governo, ouvidos
pelo Broadcast Agro, o agronegócio brasileiro pode ganhar com as políticas
protecionistas de Trump nas exportações a outros países, mas perder no próprio
comércio com os Estados Unidos.
Nessa equação, um
dos principais fatores é a potencial retomada da guerra comercial entre Estados
Unidos e China. Trump promete aplicar tarifas elevadas sobre produtos
importados pelos Estados Unidos e repetir o conflito com o gigante asiático -
tônica da sua primeira gestão. Em eventual troca de retaliações entre os
países, o Brasil pode se favorecer do redirecionamento da demanda chinesa de
soja e milho, embora em menor grau ao observado na primeira fase da guerra
comercial sino-americana no primeiro mandato de Trump.
A tendência é o
Brasil ocupar mais espaço no fornecimento de grãos ao mercado asiático, se
confirmada uma escalada do conflito comercial sino-americano, pelo menos no
curto prazo. "Hoje exportamos 64% de soja, carne, algodão e milho para a
China, enquanto os Estados Unidos exportam 34%. Portanto, os ganhos não seriam
tão grandes como foram na primeira fase da guerra comercial, mas pode haver
benefícios no curto e médio prazo", avalia o coordenador do Insper Agro
Global, Marcos Jank. Jank pondera que a China, entretanto, tende a não querer
abrir mão da possibilidade de adquirir soja do Hemisfério Sul e do Hemisfério
Norte em diferentes períodos do ano a preços mais competitivos. "Outra
preocupação a médio prazo seria um eventual acordo de trégua entre os países, o
que faz parte do jogo político de pressão e ameaças do Trump em uma possível
cessão da China", pontua Jank.
Na avaliação da
diretora de Relações Internacionais da Confederação da Agricultura e Pecuária
do Brasil (CNA), Sueme Mori, o Brasil tem condições de ampliar o fornecimento
de alimentos para a China e demais destinos, seja a demanda adicional gerada
por uma guerra comercial ou por questões climáticas adversas. Mori pondera que
a disputa sino-americana pode ser mais crítica em comparação com a primeira
fase. "A composição do governo Trump 2 será diferente do Trump 1 pela
situação geopolítica global. Trump volta com maior legitimidade, apoio político
interno e liberdade para, inclusive, intensificar uma guerra comercial com a
China. Por outro lado, a China mantém uma influência geopolítica muito grande",
observou. "Temos de aguardar a chegada de Trump ao governo para ver as
medidas implementadas e também como o Brasil vai se comportar nesse cenário.
Defendemos o pragmatismo nas relações porque o agronegócio brasileiro vende
para o mundo inteiro", argumenta Mori.
Já na relação com o
Brasil, além do distanciamento ideológico entre os governos Trump e Lula - que
declarou apoio à democrata Kamala Harris -, a postura de Trump de maior
protecionismo à produção local pode atrapalhar as tratativas para aberturas e
ampliações de mercados entre os países. Diplomatas que atuam nos Estados Unidos
avaliam que a possibilidade de ampliar a cota de carne bovina (hoje de 65 mil
toneladas ao ano) e de açúcar brasileiro (volumes estipulados por ano) vendidos
ao mercado norte-americano dependerão de contrapartida brasileira - como a
redução da tarifa sobre importação de etanol dos EUA. O Brasil quer também
vender mais frutas aos Estados Unidos, como limão taiti, enquanto os Estados
Unidos querem ampliar vendas de vinhos, carnes premium, peras, cerejas
americanas, salmão selvagem e proteína de leite.
Os Estados Unidos
foram o segundo principal destino dos produtos agropecuários brasileiros no ano
passado, com exportações de US$ 12,092 bilhões, respondendo por 7,4% do total
exportado pelo agronegócio no ano. Os embarques concentram-se em café verde,
celulose, carne bovina in natura, suco de laranja e couro, segundo dados do
sistema de estatísticas de comércio exterior do agronegócio brasileiro. Já o
Brasil importou US$ 1,028 bilhão em produtos do agronegócio dos Estados Unidos
no último ano.
Do lado do governo
brasileiro, a intenção é manter as negociações bilaterais em andamento e a
relação comercial "de confiança, a despeito de posições políticas",
segundo o secretário de Comércio e Relações Internacionais do Ministério da
Agricultura, Luis Rua. "Os Estados Unidos são um importante parceiro do
Brasil também do ponto de vista de investimentos e com um ecossistema de
inovação agropecuária importante. A ideia é manter uma relação fluida,
exportando produtos complementares à pauta, como o café, entre outros, e
aprofundando a relação no que for possível", afirmou Rua. "Dependendo
da política comercial que for adotada pelo presidente Trump, o Brasil sempre
estará disponível aos demais países do mundo para prover eventuais necessidades
que esses países possam ter em virtude de uma possível escalada protecionista
nos Estados Unidos com reflexo nos produtos exportados pelos
norte-americanos", acrescentou Rua, em entrevista recente à reportagem.
Para Jank, o Brasil
não é um país que apresenta ameaça à política comercial de Trump, por ser uma
balança comercial geral deficitária para os produtos brasileiros - em 2024,
exportações totais atingiram US$ 40,330 bilhões ante importações de US$ 40,583
bilhões. "Os americanos vão escolher amigos e inimigos para as políticas
comerciais. Do ponto de vista do Brasil, não há fatores comerciais que possam
afetar as relações bilaterais, pelo contrário, há potenciais similaridades e
contribuições em biocombustíveis e tecnologia agrícola", afirmou o
professor do Insper. Em contrapartida, Jank vê possibilidade de maior pressão
dos Estados Unidos para a diminuição da tarifa aplicada sobre o etanol
exportado ao Brasil, hoje de 18%. Ele enxerga também fundamentos de mercado
para o Brasil buscar o aumento da cota de carne bovina exportada aos EUA em
virtude da crise na pecuária local.
Para Mori, da CNA,
o interesse do agronegócio brasileiro em ampliar o comércio com os Estados
Unidos continua. "A expectativa é que o pragmatismo seja mantido. Não há
sinalizações de que isso vá mudar. Historicamente, já vimos outros momentos de
desgaste entre governos e ausência de impactos em números da balança
comercial", pontuou.
Já representantes
da indústria da carne e do setor sucroenergético não esperam avanços nas
negociações para ampliar a cota de exportação sem tarifas de carne bovina e
açúcar brasileiros ao mercado norte-americano. "Os Estados Unidos tendem a
continuar recorrendo à carne brasileira em virtude dos problemas domésticos de
oferta, mas a redução de tarifas é pouco provável. O cenário atual já é
favorável ao Brasil", observou fonte do setor exportador. Em 2024, o
Brasil exportou 229 mil toneladas de carne bovina aos Estados Unidos, somando
US$ 1,35 bilhão em divisas.
Os Estados Unidos
são hoje ainda o principal destino do café brasileiro, com 471,539 mil
toneladas (7,859 milhões de sacas) exportadas no ano passado. Interlocutores da
indústria acreditam que tende a prevalecer a "racionalidade
comercial" baseada no pragmatismo e no bom relacionamento entre os
traders.
O professor emérito
da Fundação Getúlio Vargas e ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues
avalia que as demandas de mercado devem prevalecer sobre as questões
ideológicas na relação entre os países. "O que importa é o mercado
funcionar adequadamente para que a gente continue participando dele também
adequadamente", diz Rodrigues. Para o professor, "pode haver mais
protecionismo" em relação aos produtos agropecuários do Brasil. "Mas
o Brasil tem de negociar. Nossa diplomacia tem de negociar com parcimônia e
competência e estar aberta para todo mundo e para o mundo todo", ressalta.
Na avaliação do ex-ministro, se considerado o primeiro mandato de Trump, os
efeitos sobre o agronegócio tendem a incluir a tendência é de maior
"desglobalização", com implicação no enfraquecimento de organizações
multilaterais, como a Organização das Nações Unidas (ONU) e Organização Mundial
do Comércio (OMC). "Isso é ruim para todo mundo, inclusive para o Brasil
também. Sem organismos multilaterais, não há rumo", conclui.
Fonte: Por Lier
Pires Ferreira e Renata Medeiros de Araújo, no JB/Correio Braziliense/O Dia
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