Falta de justiça
para atrocidades da ditadura faz do Araguaia uma ferida ainda aberta
Marco da luta
contra a ditadura e pelo socialismo, a Guerrilha do Araguaia foi um dos
movimentos de resistência que mais suscitaram a ira das Forças Armadas durante
o regime militar (1964-1985). E ainda hoje, é um capítulo inconcluso da
história brasileira.
Passados mais de 50
anos da última incursão de agentes da ditadura que deu fim ao grupo, muitas
dúvidas pairam sobre o episódio, entre elas, o paradeiro dos corpos e a chamada
“Operação Limpeza”. Meio século após as mortes, apenas dois participantes
tiveram seus despojos localizados e identificados.
Ocorrida na região
amazônica, em partes dos estados do Pará, Maranhão e Tocantins entre 1972 e
1974, a Guerrilha do Araguaia foi capitaneada por membros do PCdoB que, junto
com camponeses que aderiram ao movimento, buscavam restabelecer a democracia e
colocar em prática um sistema que garantisse igualdade e direitos à população
mais sofrida.
Nos primeiros dias
de janeiro de 1975, militares teriam ido à região onde ocorreram os
assassinatos para retirar os corpos dos guerrilheiros e queimá-los na Serra das
Andorinhas, como forma de acabar com seus vestígios e evitar futuras
investigações.
Um dos que assegura
a existência dessa “Operação Limpeza” é o coronel da Aeronáutica Pedro Corrêa
Cabral, cujo depoimento compõe processo a cargo do Ministério Público Federal.
Mas, como tudo que
diz respeito às mortes e desaparecimentos da ditadura, esse episódio também é
bastante controverso e nebuloso. Há quem diga que tal operação pode ter
existido, mas também não se descarta a possibilidade de que tenha sido uma
história criada para desviar a atenção dos locais onde os corpos, de fato,
estariam.
Com o fim da
ditadura, uma série de comissões e caravanas de familiares e especialistas
foram organizadas, a partir de meados dos anos 1980, para tentar desvendar o
paradeiro dos corpos. Depoimentos, sobretudo de camponeses que presenciaram o
conflito, foram colhidos e esses grupos visitaram os locais onde poderiam
estar.
Até hoje, 28
ossadas foram resgatadas na região do Araguaia, mas não foram analisadas, de
maneira que não é possível afirmar que sejam de membros do grupo. A maioria
delas está na Universidade de Brasília. De um total estimado em torno de 70
guerrilheiros, apenas duas ossadas foram identificadas: as dos comunistas
Bergson Gurjão e Maria Lúcia Petit.
Arquivos seguem
fechados
Considerando as
inúmeras buscas infrutíferas e o fato de não haver confirmação oficial da
operação — uma vez que os arquivos das Forças Armadas não foram tornados
públicos, as investigações não são conclusivas e muitos documentos estão em
acervos particulares —, pairam muitas dúvidas sobre a operação.
“Não há arquivo
aberto por meio do qual possamos comprovar sua existência. A operação pode ter
sido uma fake news para tirar nosso foco e pararmos de procurar, ou realmente
pode ter acontecido. Não sabemos de fato”, explica, ao Portal Vermelho,
Sônia Haas, irmã de João Carlos Haas Sobrinho, médico que fez parte da
Guerrilha e ficou conhecido como Doutor Araguaia — nome que, aliás,
batizou o filme lançado em
2024,
produzido por sua irmã e dirigido pelo documentarista Edson Cabral.
De acordo com
relatório sobre os mortos e desaparecidos pela ditadura, realizado pela
Comissão Nacional da Verdade, “João Carlos Haas Sobrinho foi vítima de desaparecimento
forçado durante a Operação Papagaio. Realizada entre 18 de setembro de 1972 e
10 de outubro de 1972, esta operação teve como objetivo alijar da área os
guerrilheiros que ali atuavam, sendo realizada com a utilização de força
militar ostensiva, comportando operações de contra-guerrilha, ocupação de
pontos e suprimento da tropa pelo ar, bem como pela execução de operações
psicológicas e ações cívico-sociais”.
Ainda de acordo com
a CNV, tendo como base o “Relatório Arroyo” — feito pelo dirigente do PCdoB
Angelo Arroyo, que sobreviveu aos ataques à Guerrilha, mas acabou sendo morto
na Chacina da Lapa, em 1976 — Haas teria sido morto nas redondezas de Porto
Franco (MA). Já a documentação militar aponta para a região de Xambioá (TO).
“Nós já procuramos
em várias expedições e não encontramos nenhuma ossada que tivesse
características compatíveis com as do João Carlos. Então, penso que seu corpo
pode ter sido retirado nessa Operação Limpeza, se é que existiu, ou em alguma
outra ação isolada”, diz Sônia.
Diva Santana, irmã
de Dinaelza Santana Coqueiro e cunhada de Vandick Coqueiro, guerrilheiros
igualmente mortos pela ditadura, também tem dúvidas sobre a existência ou não
de tal operação. Ela reforça a necessidade de abrir os arquivos do período, mas
admite haver indícios que apontam para alguma ação de retirada dos corpos.
“Diversos locais em
que estivemos, a partir de indicações de ex-presos e camponeses, foram
escavados e a gente não encontrou absolutamente nada”, lembra Diva, integra a
Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos.
Conforme aponta o
relatório da Comissão Nacional da Verdade, Dinaelza foi vítima de
desaparecimento forçado “durante a Operação Marajoara, planejada e comandada
pela 8ª Região Militar (Belém) com cooperação do Centro de Informações do
Exército (CIE). A Operação Marajoara foi iniciada em 7 de outubro de 1973, como
uma operação ‘descaracterizada, repressiva e antiguerrilha’, ou seja, com uso
de trajes civis e equipamentos diferenciados dos usados pelas Forças Armadas”.
Segundo depoimentos
colhidos e que constam no documento, ela teria sido presa e levada à casa de
Arlindo Piauí, ex-guia dos militares, onde teria sido sepultada. Outro ex-guia,
Cícero Pereira Gomes, afirmou que ela estaria enterrada na altura do quilômetro
114 da rodovia que liga São Geraldo (PA) a Marabá (PA). Já Wandick Coqueiro,
segundo a CNV, teria sido morto na mesma operação na localidade do Embaubal
(PA).
Procurando por seus
familiares há décadas, Diva desabafa: “Entra governo, sai governo, e na Justiça
tudo continua da mesma forma. É verdade que muita gente envolvida nesses crimes
já morreu, mas também é verdade que há muitas vivas. Mas, acho que os casos de
desaparecimento não são priorizados”.
Ela destaca que
“tudo o que se sabe até hoje foi descoberto por nós, familiares e peritos, e
não por agentes propriamente competentes para investigar”.
O jornalista
Osvaldo Bertolino, que há anos pesquisa o tema, também diz que a versão da
Operação Limpeza carece de confirmação. “As Forças Armadas precisam liberar os
arquivos secretos, só assim podemos ter mais clareza sobre o que aconteceu”. E
completa: “Os comandantes das Forças Armadas também não têm interesse em mexer
nisso, em revelar esses documentos, porque isso é um vespeiro”.
·
Novos
avanços
Considerando que o
Brasil ainda se recupera do governo de Jair Bolsonaro (PL) — marcado, entre
outras características, pelo desmonte de políticas públicas, pelo desprezo aos
direitos humanos e pelo culto à ditadura — e que o apoio à extrema-direita
ainda é forte em parte considerável da sociedade e do Congresso, alguns passos
recentes soam como um alento, ainda que muito aquém do necessário para que, de
fato, tenhamos avanços nos campos da verdade, da memória e da justiça.
Uma das mudanças
neste sentido foi a recriação, pelo governo Lula 3, da Comissão Especial
sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, em julho do ano passado. O colegiado foi
extinto por seus próprios membros em dezembro de 2022, no apagar das luzes da
gestão bolsonarista; antes, no entanto, era meramente figurativa.
Quando de seu fim,
a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) expressou preocupação e
chamou o país a “restabelecer os esforços para buscar as vítimas de
desaparecimento forçado durante a ditadura civil-militar no marco de uma
política pública integral, centrada nas vítimas e suas famílias”.
Importante lembrar
que 14 anos antes, em 24 de novembro de 2010, a CIDH condenou o Estado
brasileiro por crimes da ditadura no Araguaia, determinando que o Brasil
deveria garantir os direitos à verdade, justiça e memória; investigar,
processar e punir os agentes envolvidos; localizar os restos mortais dos
desaparecidos; elucidar as circunstâncias das mortes e capacitar as Forças
Armadas sobre direitos humanos.
Além disso,
declarou a invalidade da Lei de Anistia no que diz respeito ao acobertamento
desses crimes. Em abril de 2010, no entanto, o STF reafirmou a validade da Lei
de Anistia para “perdoar” crimes comuns cometidos no contexto ditatorial.
A ação que gerou o
julgamento foi movida pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e defendia que a
lei não devia ser estendida aos autores de crimes comuns praticados por agentes
públicos — como homicídio, desaparecimento forçado, abuso de autoridade, lesões
corporais, estupro e atentado violento ao pudor — contra opositores ao regime.
Sete anos antes, em
2003, a juíza federal Solange Salgado determinou a quebra do sigilo das
informações militares sobre todas as operações na guerrilha do Araguaia. Houve
muitas idas e vindas no âmbito jurídico e, até hoje, a decisão não foi cumprida
pela União.
O debate sobre o
alcance da Lei da Anistia e os crimes do Araguaia voltou à tona no final do ano
passado com a decisão do ministro do STF, Flávio Dino, de que crimes como os de
desaparecimento e ocultação de cadáver têm efeito até os dias de hoje e que,
por isso, não podem ser abarcados pela Lei da Anistia.
Embora tenha
frisado que sua intenção não era o de revisar a decisão de 2010, Dino salientou
que “a aplicação da Lei de Anistia extingue a punibilidade de todos os atos
praticados até a sua entrada em vigor. Ocorre que, como a ação se prolonga no
tempo, existem atos posteriores à Lei da Anistia”. A decisão ainda será
analisada pelo plenário do STF e, caso seja mantida, poderá ter repercussão
geral.
Dino é relator de
ação movida em 2015 pelo Ministério Público Federal (MPF). Nela, Lício Augusto Ribeiro
Maciel — conhecido na época como major Asdrúbal — é acusado pelos homicídios
dos militantes do Araguaia André Grabois, João Gualberto Calatrone e Antônio
Alfredo de Lima e pela ocultação dos cadáveres das vítimas. Sebastião Curió
Rodrigues de Moura foi denunciado pela ocultação dos cadáveres, mas faleceu em
2022. Assim, o processo busca a condenação de Maciel.
Contribui para esse
cenário mais favorável ao tema a ampla repercussão do filme “Ainda Estou Aqui”, do diretor
Walter Salles, sobre a luta de Eunice Paiva — esposa do deputado Rubens Paiva,
morto pela ditadura e até hoje desaparecido — para saber a verdade sobre a morte
do marido.
Para Liége Rocha,
dirigente do PCdoB, a volta da Comissão de Mortos e Desaparecidos e a decisão
do ministro Flávio Dino sobre a Lei da Anistia “são sintomas da retomada desse
ambiente mais propício a jogar luz sobre os crimes da ditadura. Muito ainda
precisa ser feito para que haja Justiça e para que possamos resgatar, de fato,
a memória daquele período tão sombrio. Mas, estes são passos importantes,
sobretudo se considerarmos que há alguns anos o poder central do país era
comandado pela extrema-direita golpista e saudosa da ditadura”.
Osvaldo Bertolino
ressalta que a luta pela verdade e a memória em relação aos mortos e
desaparecidos e por justiça em relação aos crimes cometidos é uma bandeira
antiga que permanece atual junto a movimentos sociais, familiares e partidos,
especialmente o PCdoB, o que mais perdeu militantes e dirigentes para a
violência do regime.
“O PCdoB luta pela
memória e a justiça desde o começo do movimento pela anistia, quando lançou
documento, em 1975, defendendo três bandeiras centrais: o fim dos atos e leis
discricionários do regime, a realização da assembleia constituinte e anistia”,
lembra Bertolino.
Liége, por sua vez,
salienta: “Para nós, do PCdoB, saber exatamente o que aconteceu com as pessoas
que foram mortas pelo Estado brasileiro, seja na Guerrilha do Araguaia, seja
nos porões ou em outras ações dos militares, é fundamental porque é um direito
dos familiares e uma necessidade para que o país conheça sua própria história,
faça justiça e avance na garantia dos direitos humanos, da democracia e da
igualdade”.
Fonte:
Por Priscila Lobregatte, do Vermelho
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