“Ainda Estou Aqui” e a representação da ditadura militar no
cinema brasileiro
Fenômeno de público e aclamado pela crítica, o
filme “Ainda Estou Aqui”, dirigido por Walter Salles, retrata o drama e o luto
da família Paiva – especialmente de Eunice Paiva – após o
desaparecimento/assassinato de Rubens Paiva, ex-deputado federal, durante a
ditadura militar iniciada em 1964. Em entrevista por e-mail ao Instituto
Humanitas Unisinos – IHU, o historiador Fernando Seliprandy ressalta que, em um
mundo onde a extrema-direita avança com força e truculência, “não é pouca coisa
a realização de um filme empático com as vítimas da violência de Estado”. O
pesquisador, especialista nas relações entre história, memória e cinema nas
representações das ditaduras do Brasil e do Cone Sul, pontua que a escolha de Ainda Estou Aqui em focar sua
narrativa no drama familiar gera uma despolitização da violência ditatorial e
torna a obra mais palatável, mas que é justamente esta a proposta do filme e é
por conta disto que ele virou um fenômeno social. “Essa projeção da obra como
fenômeno social não ocorre ‘apesar’ da dramatização (em detrimento da
politização), mas justamente por causa dela. O apelo à dramatização em um
produto bem-acabado, com uma reconstituição de época impecável, com uma trilha
sonora envolvente, todos esses são traços estilísticos que favorecem a
transformação do filme não só em sucesso comercial, mas também em fenômeno
social”, afirma.
<><> Confira a entrevista.
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O golpe militar de
1964 foi efetuado em um momento histórico no qual o cinema brasileiro,
especialmente o Cinema Novo, estava ascendendo e criando uma identidade
estética nacional. Quais foram os primeiros impactos do golpe neste movimento e
quais foram as primeiras representações do regime militar?
Fernando Seliprandy – Em um primeiro olhar, os
impactos do golpe de 1964 sobre o cinema e a cultura em geral parecem nos levar
a um paradoxo. Afinal, mesmo após o golpe, a cultura brasileira continuou
florescendo nos anos 1960, com obras até hoje consideradas marcos da cultura
engajada. Um texto de época de Roberto Schwarz, escrito entre 1969 e 1970,
fazia o seguinte diagnóstico: “Apesar da ditadura da direita, há relativa
hegemonia cultural da esquerda no país”. Esse ponto deve ser revisto com
cautela hoje em dia. Primeiro, porque há uma narrativa de extrema-direita que
poderia vir a se apropriar de má-fé dessa constatação para alimentar a fantasia
paranoica da “guerra cultural”. Segundo, porque, entre setores mais liberais,
esse argumento poderia ser mobilizado em função do nefasto trocadilho da “ditabranda”.
O que a historiografia vem demonstrando nos últimos anos é que a relação entre
ditadura e cultura sempre foi complexa, indo além da simples proibição,
incluindo fomento e censura seletiva. A própria censura levou um tempo para se
estruturar de maneira mais orgânica naquele contexto, tendo havido um período
inicial mais desorganizado de abertura de Inquéritos Policiais Militares – IPMs
em algum grau motivados pelo voluntarismo anticomunista de agentes do regime.
Já em 1965, o historiador Nelson Werneck Sodré escrevia um artigo intitulado “O
terrorismo cultural”, no qual denunciava abertamente uma série de violências
cometidas contra o setor da cultura. Nesses primeiros anos após o golpe, o
florescimento do cinema e da cultura devem ser vistos também à luz dessa
violência contra o setor cultural, uma violência que, mesmo desarticulada, não
tinha nada de branda.
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Filmes como “O
Desafio”, de Paulo César Saraceni, e “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, foram
feitos antes do AI-5. Como o AI-5 mudou a forma de fazer cinema destes artistas
mais “políticos” e quais foram os principais filmes censurados?
Fernando Seliprandy – Após o AI-5, a censura se
sistematizou melhor, tendo superado aquela primeira fase desarticulada que
acabei de mencionar. Em seu livro Coração civil, o historiador
Marcos Napolitano descreve essa passagem, destacando a nova legislação e a nova
estrutura burocrática da censura estatal. Em poucas palavras, é possível dizer
que a censura se profissionalizou no Brasil a partir de 1968. Porém, novamente,
não podemos cair em uma visão simplista desse processo. A proibição não se dava
em bloco, ela variava conforme a forma artística, oscilando entre critérios
políticos e morais. Além disso, a censura era seletiva. Renato Ortiz tem uma
formulação interessante para compreendermos essa seletividade: “São censuradas
as peças teatrais, os filmes, os livros, mas não o teatro, o cinema ou a
indústria editorial. O ato censor atinge a especificidade da obra, mas não a generalidade
da sua produção”. Isso explica por que, mesmo com a censura sistematizada, os
anos 1970 foram um momento de estruturação do setor cultural no Brasil,
incluindo o cinema. A censura era a outra ponta da política cultural do regime,
sua face restritiva que atingiu tantos artistas e mutilou tantas obras. Mas
havia também a faceta do fomento, do estímulo (nem sempre exitoso) ao
estabelecimento de uma indústria cultural nacional, na esteira da modernização
conservadora e autoritária do período. Para o cinema, a principal medida nesse
sentido foi o fortalecimento da Embrafilme. Mais uma vez, é preciso entender o
período autoritário em suas complexas relações com o cinema e a cultura.
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Muitos destes
cineastas do Cinema Novo ou foram para o exílio filmar fora do Brasil ou
ficaram aqui e se adaptaram às regras da Embrafilme e da censura, o que gerava
um paradoxo, pois muitos filmes eram financiados pelo governo militar. Qual foi
o papel da Embrafilme nesta época? E como foi a produção destes cineastas que
acabaram se exilando?
Fernando Seliprandy – O paradoxo mencionado na
pergunta tem tudo a ver com a dupla faceta da relação entre ditadura e cultura:
uma faceta repressiva, outra faceta de fomento. O caso dos cineastas opositores
que, nos anos 1970, começaram a produzir filmes financiados pela Embrafilme
gerou muitas polêmicas. Jean-Claude Bernardet, na história do cinema brasileiro
que publicou em finais da década de 1970, criticava os cineastas cinemanovistas
que se abrigavam dentro do que ele chamava de “espaço legal” para produzir
filmes engajados. A crítica de Bernardet ia no sentido de acusar uma cooptação
desses cineastas pelo Estado ou pelo mercado, o que resultaria na diluição do
potencial crítico dos filmes. A historiografia da cultura do período vem se
afastando dessas polêmicas de época. Note-se que o texto de Bernardet foi
escrito no calor da hora, ainda nos anos 1970, quando aquelas disputas do campo
cinematográfico ainda estavam ocorrendo. Novos estudos têm tentado, mais uma
vez, compreender a complexidade dessas relações, sem cair na caça às bruxas de
supostos cooptados pelo sistema. O que significava, por exemplo, um cineasta de
esquerda produzindo filmes sob os auspícios do Estado autoritário? Ou um
dramaturgo comunista escrevendo novelas para a Rede Globo? Apenas dizer que
eram “cooptados” não ajuda em nada na compreensão das estratégias culturais em
jogo naquele momento.
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A partir desta
cisão do Cinema Novo, outros movimentos e cineastas surgem, como o Cinema
Marginal e a Boca do Lixo em São Paulo, com uma proposta estética diferente.
Como essa nova cena no cinema brasileiro retratava a ditadura e burlava a
censura?
Fernando Seliprandy – Sobre essa pergunta, de saída
sugiro a leitura do livro fundamental de Ismail Xavier intitulado Alegorias
do subdesenvolvimento. Nele, o autor aborda de modo muito rico esses
movimentos cinematográficos, identificando os usos da alegoria como modo de
abordar as questões políticas da época. Mas quero fazer um desvio aqui na minha
resposta. Porque a própria pergunta já é um sintoma de certa tendência a sempre
enfatizarmos a cultura de resistência quando falamos desse período histórico.
No caso do cinema, o olhar se dirige para o Cinema Novo, para o Cinema Marginal
e a Boca do Lixo, justamente porque as obras ligadas a esses movimentos têm
propostas estéticas e políticas mais interessantes, fazendo parte da
resistência cultural ao regime. Minhas pesquisas atuais têm se encaminhado para
o outro espectro político da produção audiovisual: para aqueles produtores
cinematográficos alinhados ao regime, que produziam documentários
institucionais ou filmes de propaganda exaltando os feitos dos militares, com
destaque para a economia. Não é uma questão de gosto pessoal, obviamente. Minha
impressão é que há um ponto cego nos estudos do audiovisual do período, e que é
preciso compreender criticamente esse audiovisual conservador alinhado ao
regime. Eu venho desenvolvendo a hipótese de que se estruturou naquele momento
um circuito audiovisual implicado na sustentação simbólica do regime. Porque
existia todo um audiovisual produzido por produtoras privadas que tinham o
Estado autoritário como cliente. É um audiovisual no varejo, feito de
documentários institucionais, filmetes de propaganda de um minuto de duração,
entre outros formatos curtos. Não estou falando aqui, portanto, das grandes
obras artísticas, autorais, do cinema de longa-metragem. Quando se explora os
arquivos audiovisuais oficiais com atenção, sem preguiça estética ou política,
descobrimos uma série de filmes “menores” que testemunham as vinculações do
setor cinematográfico com o regime autoritário. Essa é uma faceta da relação
entre civis e militares que venho explorando nas minhas pesquisas atuais: como
a ditadura era civil-militar também no que dizia respeito à produção da
propaganda oficial para o cinema e para a televisão .
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É possível dizer
que os filmes feitos a partir de 1990 e da Retomada do Cinema Brasileiro
suavizam a parte política das obras que abordam a ditadura militar? Como estes
filmes se diferem do cinema feito nos anos 1960, 1970?
Fernando Seliprandy – Essa “suavização” da parte
política não é uma exclusividade do cinema dos anos 1990 na representação da
ditadura brasileira. Pensemos no exemplo de “Pra frente, Brasil”, de Roberto
Farias, produzido lá em 1982, ainda durante o processo de transição
democrática. Ali o centro da narrativa é o drama da família de um inocente que
é sequestrado e assassinado pela repressão clandestina, a história de alguém
que é desaparecido só porque estava no lugar errado na hora errada, com um quê
de thriller político. Já analisei esse filme em outros contextos, não é o caso
de me estender aqui. Mas o fato é que existe uma tendência, nas representações
do cinema comercial de matriz melodramática, de amenizar o aspecto político e
representar o período na chave moral de um confronto do Bem contra o Mal. Esse
maniqueísmo é o oposto da tentativa de compreendermos o período em sua
complexidade, como venho insistindo nesta entrevista. Nos anos 1990, o exemplo
mais eloquente nesse sentido é O
que é isso, companheiro?, de 1997, adaptação cinematográfica do livro de
Fernando Gabeira dirigida por Bruno Barreto. Nesse segundo filme, desaparece o
drama familiar e ganha destaque o gênero thriller político, ainda dentro da
grade maniqueísta da matriz melodramática. Os guerrilheiros são representados
como jovens inocentes e sonhadores, o torturador tem crises de consciência, o
diplomata sequestrado é a encarnação do Bem. Também já analisei este filme em
outros contextos. A questão não é só de busca de êxito comercial. Lembremos
que O que é isso, companheiro? foi
inclusive indicado ao Oscar. Há nesse movimento de simplificação melodramática
uma tendência de circunscrever as culpabilidades aos torturadores e ampliar o
alcance da inocência a toda a sociedade durante aqueles anos. São filmes que
reforçam uma memória conciliatória do período, que começou a ser construída já
durante a redemocratização. O problema é que a conciliação democrática no
Brasil está calcada na Lei de Anistia de 1979, que garantiu impunidade a
perpetradores de violações dos direitos humanos.
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IHU – “Ainda Estou
Aqui” é um filme baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva e é dirigido por
Walter Salles, duas pessoas que passaram suas vidas jovens na ditadura e
trabalharam, já adultos, o tema em suas obras. Essa visão posterior sobre o
tema se reflete de quais formas no filme? Há uma busca em tratar o filme por
meio do olhar familiar e íntimo e não abordar a política explicitamente?
Fernando Seliprandy – “Ainda Estou Aqui” é um drama
familiar. Melhor dizendo, adapta para o cinema o drama de uma família impactada
pelo desaparecimento do pai causado pela violência ditatorial. Não podemos
julgar um filme por aquilo que ele não se propôs a ser. Seria, no mínimo,
incongruente cobrar de Walter Salles um filme panfletário contra a ditadura. É
claro que a opção pelo drama familiar tem suas implicações ideológicas: um grau
de despolitização da violência ditatorial; a ênfase, mais uma vez, na vítima
inocente, muito mais palatável como vítima na comparação com aqueles que
pegaram em armas contra o regime; a representação do sistema repressivo como
uma descida ao inferno que tem como principal efeito a ruptura da harmonia da
casa da família de classe alta à beira-mar. Esse são traços que podem ser
apontados quando se mede o filme com uma rigorosa régua política.
Mas há outro lado que deve ser levado em conta:
esse drama familiar empático com uma vítima da ditadura vem sensibilizando
muitas plateias, e isso fica demonstrado pelo êxito do filme em festivais e
prêmios internacionais, para não falar no sucesso de bilheteria. Ora, após toda
a truculência que a extrema-direita escancarou no Brasil, exaltando abertamente
torturadores, não é pouca coisa a realização de um filme empático com as
vítimas da violência de Estado, e ainda mais que um filme assim empático com a
vítima atinja tamanha repercussão. À luz da conjuntura atual brasileira, quando
a extrema-direita truculenta ainda não saiu de cena, talvez seja preciso levar
em conta essa dimensão política da sensibilização, da compaixão com uma vítima
da ditadura.
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IHU – Acredita que
o filme despolitiza o tema da ditadura e a militância da Eunice Paiva como meio
de deixar a obra mais palatável para o público geral?
Fernando Seliprandy – Uma questão que enxergo no
filme é a transformação da militância pública de Eunice Paiva em uma elipse,
uma espécie de epílogo após o encerramento do arco narrativo que vai da casa
ensolarada à casa tomada e, desta, à casa esvaziada. Como já disse, a ênfase no
filme está no drama familiar do pai desaparecido e da mãe resiliente. É nessa
dimensão privada, no microcosmo da casa, que a adaptação da história se
constrói. Mas essa é justamente a característica que faz com que o filme tenha
essa projeção social toda. “Ainda Estou Aqui” não é só um drama familiar sobre
o passado ditatorial. Ele vem se tornando hoje um fenômeno social. E essa
projeção da obra como fenômeno social não ocorre “apesar” da dramatização (em
detrimento da politização), mas justamente por causa dela. O apelo à
dramatização em um produto bem-acabado, com uma reconstituição de época
impecável, com uma trilha sonora envolvente, todos esses são traços
estilísticos que favorecem a transformação do filme não só em sucesso
comercial, mas também em fenômeno social.
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IHU – O filme vem
sendo sucesso de público, coisa que muitos “filmes de ditadura” têm dificuldade
em realizar. Qual o grande mérito do filme em levar o público brasileiro ao
cinema?
Fernando Seliprandy – Eu venho levantando uma
hipótese tentando compreender toda a euforia em torno de “Ainda Estou Aqui” .
Apenas dizer que é um filme talhado para o mercado é pouco. É isso também, mas
o sucesso de público e o êxito nos prêmios faz pensar se esta repercussão toda
não seria o sintoma de uma demanda por repactuação democrática. Explico-me.
Falei agora há pouco em como o filme “Pra frente, Brasil”, de 1982, colocava no
centro da narrativa uma vítima inocente da violência ditatorial. Essa era então
uma forma de tornar a vítima mais palatável e mais inaceitável a violência
cometida contra ela. Em 1982, vivíamos o processo de redemocratização em chave
conciliatória, como já ficou dito. Ou seja, ao longo dos anos 1970, no curso do
processo de transição, diversos setores da sociedade reviam criticamente a
ditadura, passando a considerar a democracia como um valor a ser perseguido. Naquele
momento de conciliação democrática, atores políticos e sociais colocavam
diferenças de lado em nome de uma grande “frente” democrática que pressionasse
pelo fim do regime. Muitos liberais apoiadores de primeira hora do golpe de 1964
se repaginaram nesse processo, passando a reivindicar uma memória resistente.
Muitos guerrilheiros, após a autocrítica do engajamento revolucionário armado,
passaram a considerar a democracia como valor inegociável. Essa conciliação
demandou uma série de concessões, sendo a Lei da Anistia de 1979 a mais
marcante delas, vigente até hoje. “Ainda Estou Aqui” também coloca no centro da
narrativa uma vítima inocente da ditadura, em chave conciliatória, após um
período de truculência política e mesmo de tentativa da nova extrema-direita de
dar um golpe para chamar de seu, em 08-01-2023. A pergunta que me faço é se
toda essa repercussão em torno de “Ainda Estou Aqui” não seria um sintoma de um
desejo de repactuação democrática. Se for isso, a questão crucial é o Brasil
não repetir agora a anistia para golpistas.
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IHU – Como
conciliar uma dramatização mais romântica com um tema político? Acredita que o
filme é eficiente neste sentido?
Fernando Seliprandy – Voltamos aqui à questão da
dramatização versus política. Reitero que acho que existe uma dimensão política
implícita à dramatização nesse filme, justamente esse atendimento de uma
possível demanda social por repactuação democrática. A eficiência política de
“Ainda Estou Aqui”, se é que se pode falar nesses termos, seria catalisar uma
demanda por conciliação difusa socialmente, isso se minha hipótese da
repactuação democrática fizer algum sentido. Se for isso, esse filme sobre a
ditadura tem uma dimensão política própria à época que vivemos. Um filme
histórico nunca fala só do passado, mas também de seu presente, essa é uma
lição que os historiadores que lidam com o cinema sabem faz tempo. O ponto
crucial é que esse impulso conciliatório não resulte agora em uma nova anistia,
como aconteceu em 1979.
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IHU – Quais as principais
diferenciações que você faz de filmes de ficção e documentários que discutem a
ditadura militar brasileira?
Fernando Seliprandy – Não sou daqueles relativistas
que acham que tanto faz documentário ou ficção, que, no fundo, sempre estamos
diante de uma narrativa. O atual negacionismo da extrema-direita nos alerta
como esse relativismo é perigoso. É claro que a mediação da linguagem é
incontornável, mas ficção e documentário têm modos de enunciação próprios,
relações diferentes com a referencialidade, para não falar nas distintas
tradições. Como historiador, tenho me dedicado ao estudo tanto da ficção quanto
do documentário voltado à elaboração da memória da ditadura. Não quero cair em
generalizações, mas, se for para indicar as linhas de força em um e outro campo
na representação da ditadura brasileira, podemos esboçar, não sem hesitação, o
seguinte: no cinema de ficção, a matriz melodramática muitas vezes dá o tom,
levando a representação do período para a esfera dos maniqueísmos em chave
moralizante (o torturador psicopata, o herói da resistência, a sociedade
inocente etc.); no cinema documental, predomina o documentário de entrevista,
isto é, aquele em que o discurso fílmico vai sendo alinhavado pela montagem de
uma série de depoimentos ilustrados por imagens de arquivo, em geral narrando
uma história de resistência. Nota-se aí como, nos diferentes modos de
enunciação, a pauta da resistência prevalece, e esta é uma problemática que vem
sendo discutida pela historiografia pelo menos desde 2004, mais ou menos. É
claro que há exceções notáveis, às vezes de filmes injustamente desconhecidos –
ocorre-me aqui o caso do documentário Orestes, de 2015, dirigido por Rodrigo Siqueira, sobre o qual já
escrevi e que traz uma visão muito original sobre as continuidades da violência
de Estado do passado no nosso presente. E é claro que alguns novos filmes vão
acompanhando os debates mais atuais da historiografia, como a ênfase em outros
tipos de vítimas da ditadura, levando em conta os perfis e interseccionalidades
de raça, classe e gênero – para além da figura do resistente branco de origem
urbana e de classe média. Mas a verdade é que essas “exceções” circulam pouco e
têm pouca repercussão fora dos circuitos mais especializados.
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IHU – Sua tese
doutoral é sobre documentário e memória intergeracional das ditaduras do Cone
Sul e nela você fala sobre o olhar das gerações posteriores sobre as ditaduras.
Quais filmes você analisa no trabalho e qual a diferença no olhar e na
representação do tema desta geração mais nova para a que viveu sob repressão?
Fernando Seliprandy – Na tese, que vai ser
publicada em livro agora em 2025, eu analiso dois documentários
brasileiros: Diário de uma busca,
de 2010, dirigido por Flavia Castro; e Os dias com ele, de 2013, de Maria Clara Escobar. Da Argentina, eu
analiso Los rubios, de
Albertina Carri, de 2003. E, do Chile, Mi vida con Carlos, de 2009, de Germán Berger-Hertz. Todos esses
realizadores/as são filhos/as de militantes que lutaram contra as ditaduras de
seus países. Seus filmes reelaboram a memória do período a partir da
perspectiva da segunda geração, trazendo um olhar íntimo e subjetivo que
costumava ficar apagado nas versões mais grandiloquentes da memória social.
Além desses quatro filmes, a tese vai comparando dezenas de outros títulos na
mesma chave levantados na pesquisa, em uma abordagem historiográfica que não
ignora as questões da linguagem cinematográfica. A proposta é, desde o campo da
História, compreender esse fenômeno da memória intergeracional tendo como fonte
o cinema documental. O que significava ser o filho de um desaparecido político?
Como era a infância na clandestinidade? Quais eram os impactos na identidade de
crianças que não podiam dizer seu nome, sob risco de revelar o paradeiro dos
pais militantes? Como era viver em um aparelho de organização guerrilheira,
entre reuniões políticas e armas? Quais as marcas deixadas por essas
experiências na vida adulta? São questões que surgem nesses filmes, trazendo
uma novidade introspectiva para a memória do período, que no Brasil por muito
tempo foi pautada pela ideia de resistência em chave heroica. São documentários
que, estilisticamente, colocam a primeira pessoa no centro da enunciação,
explicitando as hesitações e as dúvidas com relação às experiências subjetivas
rememoradas. Agora, mesmo reconhecendo essas novidades, o olhar historiográfico
da tese (em breve livro) para o fenômeno identificou também certas
sedimentações e reenquadramentos da memória intergeracional no cinema
documentário. Sobretudo pela reiteração, nos filmes, de uma série de recursos
estilísticos voltados, justamente, a indicar a abertura e a indeterminação das
obras: a exposição das etapas da busca; as viagens aos lugares da memória
familiar; a presença do realizador e tela; a locução em primeira pessoa; as
entrevistas com parentes; o uso de arquivos privados etc. Há um problema quando
a memória intergeracional encontra uma fórmula estilística no documentário,
mesmo que essas fórmulas, paradoxalmente, tentem indicar o imponderável da
memória subjetiva. Também indico a filmografia de três realizadores desses
países cujas trajetórias abrangem desde os anos das ditaduras até reelaborações
de memória mais recentes: da Argentina, Fernando Solanas; do Chile, Patricio
Guzmán; e, do Uruguai, Mario Handler. Outros nomes poderiam ser mencionados,
mas esses três são um bom ponto de partida para quem quiser conhecer as
relações entre o cinema e as ditaduras desses países vizinhos.
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IHU – Uma última
provocação: Godard falava que fazer um filme sobre política não era o suficiente;
é preciso filmar de forma política, ou seja, conteúdo e forma precisam ser
políticos. O que acha desta afirmação e como enxerga o cenário do cinema
político contemporâneo a partir dela?
Fernando Seliprandy – A provocação é boa, mas
respondo com outra provocação: Walter Salles não é Godard. Não vamos resolver
aqui o velho dilema entre experimentalismo formal e comunicação com o público,
entre conteúdo político e forma revolucionária. É importante compreender cada
filme à luz de seus códigos internos e de seu contexto de produção. É o que
tentei esboçar, arriscando-me um tanto, ao trazer para o debate o que poderia
ser visto como uma dimensão política, ainda que conciliatória, ainda que não em
termos radicais, de “Ainda Estou Aqui”.
Fonte: Entrevista com Fernando Seliprandy, por André Cardoso, em IHU
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