O mito da democracia racial
no Brasil
Antes de falar sobre o mito da democracia, é importante
ter em mente, o conceito desses termos, para entender a construção dessa
ideologia. O termo democracia é derivado da palavra grega “Demokratìa”, composta de Dèmos (povo)
e Kràtos (poder),
democracia em seu conceito, seria “poder do povo”. Esses termos, da ideia de
participação popular e harmonia social e política.
Durante a contemporaneidade, a democracia se tornou
ampla nas esferas sociais, como a participação sociopolítica da população de um
determinado país, nas diversas esferas que afetam a coletividade, desde
participação em movimentos sociais e estudantis, protestos, discussões
públicas, ou seja, atividade que abrange outras questões, além da política
formal. Quanto ao conceito de “mito”, que se deriva do “mythos”, significando
“narrativa” ou história”, por outro lado, no senso comum, o mito é considerado
uma mentira ou algo falso, é nesses dois conceitos que o “mito da democracia”
se encontra.
Na sociedade se acreditou e se acredita na ideia da
“democracia racial”, uma ideologia nacional que se expandiu em 1930, durante a
Era Vargas (1930-45), em que uma forte onda de nacionalismo se intensifica,
trazendo uma característica de Estado Ocidental, a “essência unificadora”
(CLASTRES, 2004, p. 61), transformando o “múltiplo no Um” (CLASTRES, 2004, p.
59), em que uma ideia de “brasileiro”, como um único povo, se torna base.
Essa concepção é reforçada por intelectuais e
intérpretes brasileiros, como Gilberto Freyre, autor de Casa Grande e Senzala, um livro que
contribui com a construção de uma possível “democracia racial” no brasil.
Segundo essa ideologia, o povo brasileiro, teria se misturado tanto, que teria
chegado a uma dita “democracia racial” no qual as desigualdades não se dariam a
uma questão racial, trazendo enfoque que existe uma harmonia entre as etnias
brasileiras, a negra, indígena e branca.
Como no Brasil não havia “apartheid” e uma
“segregação racial explícita”[iii]como nos Estados
Unidos, como “não tinha” essa explicita forma do racismo, acreditava-se que as
pessoas não poderiam ser racistas e que o país estava livre do racismo. Porém
não se precisa desses aspectos do racismo explícito, para existir o racismo em
um país.
A tendência de comparar outros países com o Brasil, é
um dos pontos chaves para uma ilusão de Brazil (Brasil com “z”, remete a
idealização e narrativa do que é o Brasil, mas não a verdadeira realidade do
país, que é cruel e perverso) internacional e nacional não racista, o racismo
velado “é sofisticado e perverso, essa forma de racismo”(CARNEIRO, 2022,
Youtube), é uma democracia falsa, que não existe, essa ideologia reproduz uma
forma de pensar do que seria o “Brazil” com “Z”, e não o “Brasil” com “S”, o
verdadeiro, o da violência, da descriminação, a do racismo. O filme Rio de Janeiro: city of
splendour (1936),
mostra como essa falsa democracia racial é vista internacionalmente, e
reforçada nacionalmente.
“A cor de pele nem sempre determina a posição social de
alguém, a linha de cor racial, na verdade, parece tão tênue que se tornou um
refúgio de tolerância para todas as raças.” (JAMES A. FITZPATRICK, 1936).
Perpetuando uma ideologia que não condiz com a
realidade, que é reforçada, através de uma cegueira racial. No país em que a
maioria da população é negra, e esse grupo étnico estão em situações de
desvantagens, como desigualdades econômicas, as moradias e condições de vidas
são precárias, uma não representação de pessoas negras nas mídias, cultura e
sistema de educação, maioria no sistema carcerário, e o extermínio da população
negra, sendo assim, sim, a cor de pele influencia na posição social.
O “mito da democracia racial” foi difundido e se
intensificado internamente e externamente, mostrando uma ideia de “Brazil”, que
não é verdade. Essa concepção coloca a coletividade e individualidade negra em
um lugar de permanecer estático, pois se não existe racismo, não existe um
problema, e se não existe um problema, ele não precisa ser combatido e
contestado culturalmente, socialmente, politicamente e psicologicamente.
A narrativa tem como premissa a ideia de que no
Brasil não existe racismo, ela tem uma perspectiva distorcida sobre as relações
raciais brasileira, trazendo uma “realidade” de harmonia racial entre os grupos
étnicos no país, que na realidade é apenas uma narrativa, como trás o conceito
e senso comum do que é um mito. Essa falsa democracia nas décadas seguintes se
tornou uma parte fundamental do Estado brasileiro e da narrativa de uma
branquitude e Brasil “não racista”, que é reforçada até os dias de hoje,
trazendo uma profundidade da teoria, que se enraizou no imaginário popular da sociedade.
Nesse contexto, durante toda construção de um
Brasil, a participação política das pessoas negras, era restrita, limitado,
excludente e seletiva, pessoas negras eram excluídas desse sistema, de forma
totalmente sistemática, em que a coletividade negra, eram considerados
sub-humano, e por isso não eram cidadãos para participar da “democracia”
no país. O mito passou a ser questionado por autores como Abdias do Nascimento,
que levaram para o debate público e acadêmico, as distorções dessa premissa, colocando
enfoque as situações de genocídios, preconceitos, discriminação e estereótipos
raciais, em relação ao povo negro, na sociedade e Estado brasileiro.
·
Sobre os mecanismos
Abdias do Nascimento, no capítulo IX, menciona que as
classes dominantes, que é uma elite branca, têm o controle de todos os
aparelhos sociais no país, e como isso influências nossas concepções,
contribuindo também para um genocídio do negro, através desses aparelhamentos
sociais, em que se perpetua o racismo, e uma negação dele, como por exemplo, a
ideia de uma “democracia racial” no Brasil.
Esses instrumentos são utilizados para perpetuar o
racismo, e dessa discriminação destruir o negro enquanto indivíduo e coletivo
construtor e portador de sua própria identidade cultural no país. Esses
aparelhos criam mecanismos de dificuldades teóricos e práticos, que impedem e
afetam os negros em sua construção social e psicológica dentro da sociedade,
“Tanto os obstáculos teóricos quanto os práticos têm prevenidos descendentes
africanos de se afirmarem como íntegros válidos, auto-identificados elementos
da vida cultural e social brasileira.” (NASCIMENTO, 1978, p. 94).
Os meios de controle social e cultural brasileiro, têm
como base a disseminação de ideologias falsas, como a concepção de uma democracia
racial, que ao serem reproduzidas sem questionamento influencia o imaginário
das massas, gerando um “racismo inconsciente”, que é perpetuado.
O “racismo inconsciente”, um tipo de “viés
inconsciente”, em que se cria um preconceito automático que influencia as
decisões sem que as pessoas percebam. Isso se torna tão profundo que atravessa
as próprias pessoas negras, afetando-as psicologicamente, socialmente e
fisicamente. Esses aspectos são perpetuados pela branquitude, que ocupa um
lugar de superioridade e “vantagem estrutural em sociedades estruturadas pelo
racismo” (SCHUCMAN, 2000? n.p).
A branquitude frequentemente culpa os negros,
responsabilizando-os injustamente por questões econômicas, políticas, sociais e
criminais. Essa culpabilidade perpetua o racismo “inconsciente”, estrutural e
consciente, ignorando a desigualdade sistêmica e social, a repressão
institucional, a discriminação e a exclusão social, e desvia a atenção dos
problemas sociais complexos para um grupo historicamente marginalizado, o
negro.
·
O sistema educacional
“O sistema educacional [brasileiro] é usado como
aparelhamento de controle nesta estrutura de discriminação cultural. Em todos
os níveis do ensino brasileiro – elementar, secundário, universitário – o
elenco das matérias ensinadas, como se se executasse o que havia predito a
frase de Sílvio Romero, constitui um ritual da formalidade e da ostentação da
Europa, e, mais recentemente, dos Estados Unidos. Se consciência é memória e
futuro, quando e onde está a memória africana, parte inalienável da consciência
brasileira? Onde e quando a história da África, o desenvolvimento de suas
culturas e civilizações, as características, do seu povo, foram ou são
ensinadas nas escolas brasileiras? Quando há alguma referência ao africano ou negro,
é no sentido do afastamento e da alienação da identidade negra. Tampouco na
universidade brasileira o mundo negro-africano tem acesso. O modelo europeu ou
norte-americano se repete, e as populações afro-brasileiras são tangidas para
longe do chão universitário como gado leproso. […] e constitui um difícil
desafio aos raros universitários afro-brasileiros” (NASCIMENTO, 1978, p. 95)
Abdias do Nascimento enfatiza que não existe uma
educação antirracista nesse sistema, seja nos níveis elementar, secundário ou
universitário. Nas escolas, a história africana não é ensinada, e nas
universidades, não se fala de uma identidade negra, a possibilidade de se
abordar a identidade negra no contexto educacional é “o mesmo que provocar
todas as iras do inferno” (NASCIMENTO, 1978, p. 95). Em paralelo, apesar da
crescente visibilidade da educação antirracista no século XXI, o sistema
educacional brasileiro ainda é defasado e ultrapassado, sem considerar
adequadamente a realidade do negro brasileiro.
Esse sistema educacional, profundamente eurocêntrico e
com elementos americanizados, contribui para um grande “genocídio,
efetivamente, na morte física, mas também na morte simbólica” (GARIGHAN, 2017,
n.p), caracterizando um “genocídio étnico e cultural” (NASCIMENTO, 1978, p. 155),
que é a destruição e apagamento sistêmica do conhecimento e identidade
cultural, a morte da Weltanschauung negra. O Brasil nunca reconheceu as
manifestações culturais de origem africana desde a fundação da colônia,
evidenciando uma falta de compromisso e negligência com toda uma etnia. Isso
revela a construção de um Estado estruturalmente racista, espistemicida,
etnocida e genocida, que visa apagar toda uma cultura, pois a existência dela
afeta essa “unificação”.
“O Estado se quer e se proclama o centro da sociedade,
o todo do corpo social, o mestre absoluto dos diversos órgãos desse corpo.
Descobre-se assim, no núcleo mesmo da substância do Estado, a força atuante do
Um, a vocação de recusa do múltiplo, o temor e o horror da diferença. Nesse
nível formal em que nos situamos atualmente, constata-se que a prática etnocida
e a máquina estatal funcionam da mesma maneira e produzem os mesmos efeitos:
sob as espécies da civilização ocidental ou do Estado, revelam-se sempre a
vontade de redução da diferença e da alteridade, o sentido e o gosto do
idêntico e do Um”. (CLASTRES, 2004, p. 60, 61.)
A estrutura brasileira não é pensada para o negro, mas
sim para que ele falhe. Os negros são a maioria da população; porém, são
minoria econômica e minoria no sistema educacional, principalmente no ensino
superior. No contexto do século XX, as escolas públicas eram consideradas de
boa qualidade, e os negros eram excluídos da participação nessas escolas.
As condições de moradia são de péssima qualidade;
muitos moram em favelas (a população negra depois da abolição da escravidão no
Brasil, foram morar em favelas, e com uma falta de planejamento do governo para
poder realocar essa população), “[…], mas não teve medidas posteriores de
cidadania para a população negra. O negro deixou a senzala para morar na
favela” (SANTOS, 2008, n.p), e, sem “necessidades mínimas de higiene e conforto
humano, esses locais são habitados principalmente por grupos negros.”
(NASCIMENTO, 1978, p. 84). Essa estrutura, que não considera o negro brasileiro,
porque vê ele como “mau, selvagem, imoral e feio”, é constituída a partir do
Estado.
·
Negro é mau, é feio, é imoral, é selvagem
Abdias do Nascimento, no Capítulo VII, enfatiza que a
associação entre “boa aparência” e “branco” se torna quase sinônima, a ponto
de, na prática, serem consideradas equivalentes na lei. No dicionário Aurélio,
que é uma das grandes referências em pesquisas de conceitos e semânticas de
palavras utilizado no Brasil, reforça essa ideia:
“O ’Aurélio’ quanto aos termos
negro e branco. Branco: ‘Diz-se do indivíduo da raça branca. Sem mácula,
inocente, puro, cândido, ingênuo: alma branca’ (FERREIRA, 1986. p. 282, grifos
nossos). Negro: ‘Diz-se do Indivíduo da raça negra, Sujo, encardido. Maldito,
perverso. Escravo’ (op. cit.: 1187). Assim também refere-se aos derivados da
palavra como por exemplo negrada, definido como ‘grupos de indivíduos dados a
pândegas ou desordens’. (SOUZA, 2005, p. 106).
O “figurino” do branco é vestido por pessoas
brancas, especificamente a branquitude, e o negro não precisa vestir um
figurino, pois ele já existe na verossimilhança da inverossimilhança, isto
é, uma verdade dentro de uma mentira, no imaginário da narrativa da
branquitude, sempre se estigmatizando uma negritude. De acordo com o filósofo
Frantz Fanon (1925-1961), no “inconsciente coletivo”, o negro é percebido como
“mau”, “feio”, “imoral” e “selvagem”, mas o Branco, através desse figurino se
torna o oposto: bom, bonito, moral e civilizado, ele pode não ser isso, mas na
estrutura social não importa que ele não seja, pois no inconsciente social e
ideário, o negro vai ser mau e o Branco Bom.
O ideal da branquitude é imposto sobre as pessoas na
sociedade e nas instituições brasileiras forçadamente. E como isso é colocado
de forma em que, principalmente pessoas alienadas, e as que também não são
alienadas, de forma que elas não percebam essa manifestação do racismo
inconsciente, por isso, esse “racismo”, se torna também “inconsciente”, pois
ele está no “inconsciente social”.
Nesse contexto também revela a “ignorância branca”, na
qual as pessoas que estão no topo dessa estrutura acreditam estar plenamente
conscientes de suas ações, mas, na verdade, estão perpetuando ideais racistas
que foram incutidos nelas ao longo de gerações e séculos, resultando em um racismo
“consciente-inconsciente”, que consiste em reproduzir conscientemente e
inconscientemente o racismo. Isto é, quando o racismo é reproduzido, as pessoas
têm uma individualização desse racismo, entrando em processo de
responsabilidade individual nessas relações raciais, mas como ele é
“reproduzido”, e não produzido se torna também inconsciente, porque foi imposto
no imaginário psicológico, cultural, social, educacional e político. Sendo
assim, “inconsciente” esta depois do “consciente”, pois o inconsciente se
sobressai, controlando sem você perceber.
Isso está longe de tirar a responsabilidade individual
de quem está reproduzindo, mas o ponto principal ao entrar nessa questão, sobre
“O genocídio do negro brasileiro”, é que o problema central reside na estrutura
social e estatal da sociedade brasileira, que foi historicamente construída
para “genocidar”, marginalizar e desfavorecer a população negra, que não
só reproduz, mas produz esse ideário da branquitude, em que o branco sempre
estar na situação de bom, e o negro na situação de mau.
Fonte: Por Daniel Santiago B. da Silva, em A Terra é Redonda
Nenhum comentário:
Postar um comentário