Musk, o oráculo de
uma direita nunca vista e aquela esquerda ancorada no passado
"As direitas neoconservadoras e neoliberais mantêm
apenas como ornamento ideológico, para fins demagógicos, algumas das conotações
das direitas históricas: retóricas nacionalista-identitárias, ambições civilizatórias (a
ideia da própria civilização como a única e autêntica), a exaltação do
instrumento penal como fator de segurança. Na realidade, sua força consiste na
capacidade de aderir plenamente ao poder global
do sistema econômico-financeiro que impulsiona
a revolução tecnológica do novo
milênio", escreve Massimo
Cacciari,
filósofo italiano.
Segundo ele,
"como não estamos no meio e nem no fim da história, como as contradições
se multiplicam, nada está decidido. O que é certo, no entanto, é que as
esquerdas ocidentais terão um futuro se conseguirem realmente entender as
razões objetivas de seu fracasso, razões que ultrapassam em milhões de léguas
limites e defeitos táticos ou erros de líderes, e souberem não apenas se
'reposicionar' à altura das novas formas sociais de produção, mas representar,
dentro dessas formas, um sinal vivo de contradição".
"Contradição",
continua refletindo o filósofo, "entre o pensamento necessariamente único
da Máquina 'espiritual' e consciência crítica, entre trabalho
dependente e comandado, por um lado, ao qual também pertence cada vez mais o
trabalho do pesquisador e do cientista, e, por outro, a prepotente instância de
liberdade que vem da própria ciência".
<><> Eis
o artigo.
Os senhores
da “Máquina Inteligente” são os atuais governantes do mundo. Mas é
necessária uma política que saiba como distribuir
a riqueza de forma justa.
“Coloque os Musk no comando!”
Essa parece ser a marca da época em que já entramos. Nenhum projeto político,
nenhuma estratégia definida, marcam esse processo. Trata-se de uma evolução,
precisamente em sentido cultural-antropológico, do sistema que agora governa
nosso mundo. A opinião pública participa, sujeito ativo e objeto, tanto quanto
seus “líderes” políticos. O poder da Tecnologia (o aparato global formado por
economia, finanças, ciência, inovação e desenvolvimento) há muito tempo deixou
de ser percebido como aquilo capaz de responder às nossas necessidades, de
superar as necessidades, mas a Autoridade soberana que as produz e dita. A
Tecnologia domina o ‘ter de ser’ da humanidade e se tornou, com toda evidência,
sua nova religião. É ela que nos guia através do nevoeiro, prometendo, se
confiarmos em sua inteligência, eliminar a angustiante imprevisibilidade do
próprio futuro. O que a Tecnologia afirma, se transforma em um tipo de
profecia. Quão explicáveis são os algoritmos nos quais ela se baseia? Quão
responsáveis são seus oráculos? Perguntas que se tornam dia após dia mais
ociosas — o que universalmente se sente é que a Máquina, uma Máquina
que já se tornou inteligente, “espiritual”, representa o fator
fundamental em nossas vidas. E seus senhores são, portanto, necessariamente,
seus soberanos. Portanto, assombrar-se com a afirmação política
de Musk poderia soar aos ouvidos de um saudável realismo como um
patético lamento.
Nas últimas
décadas, afirmaram-se culturas políticas que atenderam esse processo e que nada
têm a ver com as direitas e as esquerdas do século XX. Todas elas expressavam,
em formas até contrapostas, a vontade política de usar o poder do sistema
técnico-econômico para
seus próprios fins. Elas ainda concebiam a Tecnologia como um
instrumento.Tudo muda entre as décadas de 1970 e 1980. Aí está a verdadeira
revolução. Marcada pelos Reagan e pelas Thatcher. As direitas
neoconservadoras e neoliberais mantêm apenas como ornamento ideológico,
para fins demagógicos, algumas das conotações das direitas históricas: retóricas
nacionalista-identitárias, ambições
civilizatórias (a
ideia da própria civilização como a única e autêntica), a exaltação do
instrumento penal como fator de segurança. Na realidade, sua força consiste na
capacidade de aderir plenamente ao poder global do sistema
econômico-financeiro que
impulsiona a revolução
tecnológica do
novo milênio. Eliminar os impedimentos que limitam sua afirmação, administrar o
contexto cultural e social de modo a internalizar seus “valores” (o primeiro
dos quais será o sucesso individual, a ser perseguido por todos os meios,
segundo o modelo dos grandiosos sucessos da Tecnologia), é apenas isso que
deve restar da “vocação política”.
A resistente ascensão
das direitas nas democracias ocidentais encontra aqui sua explicação. Elas,
em sua versão totalmente inédita, transversalmente presentes em toda parte do
espectro político, refletem o sistema dominante, cuja natureza autenticamente
revolucionária talvez somente agora as antigas esquerdas estejam começando a
entender. Diante dos sucessos da Tecnologia, as primeiras mudaram radicalmente
sua estratégia básica (mantendo apenas os resquícios populistas de seu
passado), as segundas desempenharam o papel dos “bons conservadores”, daqueles
que gostariam de tornar “doce” uma transição que, por si só, é irreversível e
traumática.
Em vez de enfrentá-la,
em vez de tentar organizar sindical e politicamente os sujeitos concretos que
eram afetados por ela, limitou-se a tentar defender, quase nunca com eficácia
(veja a tragédia das políticas de imigração), os “direitos humanos”, que
ninguém jamais explicou o que fossem se não estivessem encarnados em normas
positivas que tornassem sancionáveis os transgressores. Desde as épocas
dos Reagan e das Thatcher, a nova direita está pronta para o
encontro com os Musk. A velha esquerda não os viu crescer. Durante algum
tempo, falou de um capitalismo
burguês que
não existia mais. Depois, ficou encantada com as ideologias do fim da história,
da globalização
econômico-financeira como
portadora universal de democracia e de paz. Enquanto as novas direitas
embarcavam no carro dos vencedores, conseguindo assim também dar a impressão de
conduzi-lo, as esquerdas defendiam formas arcaicas de centralidade dos
parlamentos e assembleias eletivas, sem sequer uma ideia sobre sua reforma.
O poder político da
direita vence? Não, o que vence é a imagem de poder que
o sistema-Musk expressa — e que as novas direitas, aquelas que
contam, completamente estranhas às geografias parlamentares do século XX,
idolatram. As esquerdas perdem porque parecem estar fora de jogo em relação aos
fatores determinantes do nosso destino. Assumiram uma forma de abstencionismo,
que perdura desde a década de 1980, tanto de qualquer efetiva participação
quanto de qualquer eficácia crítica ao estado de coisas existente. Sua
“abstenção” determina a derrocada de sua representatividade, especialmente no
que diz respeito aos setores sociais mais fracos e mais afetados. E também
isso, analisando bem, é totalmente razoável: são os menos protegidos que
precisam de proteção. E onde você vai procurá-la, se não naqueles que lhe
parecem mais aguerridos?
Como não estamos no
meio e nem no fim da história, como as contradições se multiplicam, nada está
decidido. O que é certo, no entanto, é que as esquerdas ocidentais terão um
futuro se conseguirem realmente entender as razões objetivas de seu fracasso,
razões que ultrapassam em milhões de léguas limites e defeitos táticos ou erros
de líderes, e souberem não apenas se “reposicionar” à altura das novas formas
sociais de produção, mas representar, dentro dessas formas, um sinal vivo de
contradição. Contradição entre o pensamento necessariamente único
da Máquina “espiritual” e consciência crítica, entre trabalho
dependente e comandado, por um lado, ao qual também pertence cada vez mais o
trabalho do pesquisador e do cientista, e, por outro, a prepotente instância de
liberdade que vem da própria ciência. Sem utopias, com os pés firmemente
plantados nas possibilidades reais que justamente as conquistas do intelecto
humano hoje nos oferecem, mas que desaparecerão como neve ao sol sem uma
política que saiba distribuir de forma justa a riqueza produzida e criar as
condições para uma federação entre povos e nações além de qualquer delírio
hegemônico.
¨ Elon Musk se torna o motor da nova onda global de
extrema - direita
Além de usar o
algoritmo de X a seu favor para impor sua visão, Musk está
aplicando as mesmas estratégias que ajudaram Donald
Trump a
vencer a eleição com forças extremistas em outros países.
Em 1864, sindicatos
comunistas, anarquistas, socialistas e operários da Europa se uniram
para coordenar estratégias e políticas no que ficou conhecido como
a Primeira Internacional. "A conquista do poder político tornou-se o
grande dever da classe trabalhadora [...] A experiência do passado nos ensina
como o esquecimento dos laços fraternais entre os trabalhadores de diferentes
países é punido pela derrota comum de seus esforços isolados [...] Proletários
de todos os países, uni-vos!", dizia o manifesto do movimento escrito
por Karl
Marx.
Um século e meio
depois, uma internacional muito diferente está tomando forma e força
na Europa e no resto do mundo. Forças nacionalistas e de
extrema-direita em ascensão estão se unindo para combater o "globalismo"
como um inimigo comum. Em uma sociedade digitalizada e de sua posição
privilegiada ao lado do presidente dos EUA, o homem mais rico do
mundo, Elon Musk, emergiu como o motor e o combustível dessa
'internacional reacionária' – um conceito que vem sendo usado na academia há
algum tempo e que foi recentemente adotado por líderes políticos como Emmanuel
Macron e Pedro
Sánchez para
denunciar a agenda do empresário.
O magnata da
tecnologia começou a aplicar a mesma estratégia com outras forças de
extrema-direita em países europeus que ajudaram Donald Trump a vencer
as eleições e está usando o algoritmo de sua rede social X a seu
favor para impor sua visão ao resto do mundo. O próprio Musk se gabou
de modificar o algoritmo para multiplicar a visibilidade de seus tuítes. Na
semana passada, ele prometeu uma nova mudança na rede social para
"promover mais conteúdo informativo e de entretenimento".
"Há uma
internacional de extrema-direita que, apesar de suas grandes diferenças entre
si, se sente parte da mesma família política, compartilha a maioria de suas
referências ideológicas e propostas-chave, participa dos mesmos fóruns e redes
e tem os mesmos inimigos, que são o progressismo, o globalismo, a esquerda ou o
que eles chamam de marxismo cultural e a ditadura do pensamento único",
diz Steven
Forti,
historiador especializado em extrema-direita e autor do livro Democracias
em extinção (Akal). Ele também conta à El Diario que
"Musk é um membro recente dessa internacional e serve como uma força
motriz e nexo nela", acrescenta.
Além de suas
publicações no X e da coluna no jornal Die Welt apoiando
a Alternativa para a Alemanha (AfD), uma das formações mais radicais
dessa internacional reacionária, Elon Musk manterá uma conversa ao
vivo com a candidata do partido, Alice
Weidel,
na quinta-feira, como fez com Donald Trump. A Alemanha realiza
eleições em 23 de fevereiro e a AfD é a segunda nas pesquisas. Essa
conversa com o então candidato à presidência americana foi cheia de elogios a
Trump e se tornou um crivo de mentiras.
Outro dos
principais alvos do homem mais rico do mundo tem sido o Reino Unido, também
governado pelo Partido Trabalhista. Musk pediu a prisão do
primeiro-ministro Keir
Starmer e
até conseguiu liderar a agenda e o discurso político no país ao acusar o líder
trabalhista de ser cúmplice de um escândalo de estupro infantil sem
provas. Musk também pediu a libertação de Tommy Robinson, um dos ativistas
de extrema-direita mais conhecidos da Grã-Bretanha.
Na Espanha, o
conselheiro de Trump retuitou recentemente informações de uma conta
polonesa ligada à direita radical populista que fala sobre a porcentagem de prisioneiros
imigrantes condenados por estupro na Catalunha. A Vox, por sua vez,
aplaudiu a agenda de Musk. "Vemos progressistas muito nervosos com as
redes sociais que eles não controlam e não podem impor essa censura sobre o que
não gostam, sobre qualquer opinião contrária aos mantras globalistas",
disse José Antonio Fúster, porta-voz da formação de extrema-direita, na
terça-feira. "O tempo do globalismo e da ditadura progressista
acabou".
Ele também apoiou a
primeira-ministra de extrema-direita italiana, Giorgia
Meloni,
com quem também está negociando um grande contrato de 1,5 bilhão de euros para
obter comunicações seguras por satélite, e elogiou as políticas de Viktor
Orbán,
com quem se encontrou no mês passado durante uma visita do líder húngaro ao
complexo Mar-a-Lago na Flórida.
"O magnata da
tecnologia já exerce o poder político global a partir do poder que lhe dá o
controle do megafone mais poderoso da sociedade digitalizada e com uma agenda
ideológica muito específica", disse Carme
Colomina,
pesquisadora sênior especializada em União Europeia, desinformação e
política global do think tank CIDOB.
"Os magnatas
digitais há muito exercem o que Renée DiResta chama de 'governantes
invisíveis', mas Elon Musk, com sua capacidade de influenciar a partir do
próprio Salão Oval, tornou-se a personificação mais descarada, barulhenta e
influente desse poder executivo que, no caso dele, não é mais invisível",
explica ele. "Elon Musk se apresenta ao mundo como um visionário
alternativo, defensor de uma liberdade de expressão que, no entanto, se baseia
em falsidades e incitação ao ódio. O X não é mais apenas uma rede social,
é um aparato de propaganda com a capacidade de amplificar algoritmicamente
determinado conteúdo.
"Agora, Musk aplica
o mesmo manual que elevou Trump para promover diferentes formações
conservadoras e de extrema direita em países tradicionalmente aliados
dos Estados Unidos. Estamos diante de uma concentração de poder sem
precedentes nas mãos daqueles que, justamente, controlam a esfera pública, onde
deveríamos ser capazes de nos informar para estar cientes disso",
conclui Colomina.
Fora
da Europa e dos EUA, Musk também insultou o
ex-primeiro-ministro canadense Justin
Trudeau e
mostrou seu apoio ao polêmico candidato conservador e
anarcocapitalista, Pierre Poilièvre, que alguns analistas comparam
a Donald Trump. Na América Latina, ele reforçou Javier
Milei e
enfrentou o Brasil de Lula. O Supremo Tribunal Federal concluiu
que o X foi fundamental na disseminação de boatos que incitaram o
ataque dos apoiadores de Bolsonaro ao Congresso e ordenou
que Musk fechasse essas contas. O magnata recusou e os juízes
ordenaram o fechamento da plataforma no país. Musk acabou cedendo às demandas e
a rede social já está em operação no país. "A justiça brasileira pode ter
dado um sinal importante de que o mundo não é obrigado a aturar a
extrema-direita de Musk, vale tudo só porque ele é rico", disse o
presidente Lula.
<><> A
luta contra o 'globalismo'
"Musk tem um
objetivo duplo em sua agenda. Além de seus interesses econômicos como o homem
mais rico do mundo, há uma questão ideológica", diz Forti. "Musk
mudou nos últimos quatro anos, especialmente desde o Covid, de posições
libertárias e até pró-sociedade aberta, para posições muito reacionárias e
claramente de extrema direita, pensando que o mundo ocidental está
desaparecendo e chegando ao ponto de quase defender a segregação racial em
alguns tweets que ele fez alguns anos atrás", adiciona.
"Ele se sente
parte dessa internacional de extrema-direita que tem inimigos comuns e que,
segundo eles, está lutando para salvar o mundo ocidental do
desaparecimento."
Em um comício
realizado um mês antes das eleições nos EUA, Musk declarou: "Sou
contra o poder globalista, a ONU não deveria ter muito poder, quem
votou neles? Eu não. Não devemos ter nenhum tipo de tratado internacional que
restrinja a liberdade dos americanos e minimize a interferência do governo
federal."
"É um paradoxo
que Musk se posicione como uma das vozes mais audíveis na luta
contra o 'globalismo' e
que o faça, precisamente, enquanto exerce o poder político global, que se
concede o direito de exigir a dissolução de governos e a libertação de
ativistas de extrema-direita e promover ultra formações e candidatos em ambos
os lados do Atlântico", Colomina mantém. "O problema é que
quanto mais perturbador o X se torna, mais fraca e mais dividida
a Comissão Europeia está para aplicar sua própria legislação e
colocar certos limites nela."
Carlos
Corrochano,
professor de Teorias Críticas das Relações Internacionais na Universidade
Sciences Po, em Paris, disse em uma entrevista na El Diario que
"a internacional reacionária não é necessariamente construída sobre
grandes convicções compartilhadas, mas sobre a percepção de que existe um
inimigo comum e a necessidade de operar de forma coordenada. Também responde a
uma certa ansiedade civilizacional que os empurra para essa união, apesar das
diferenças que podem ser vistas, por exemplo, com a teoria da grande
substituição."
Muitos compararam a
figura de Musk ao papel desempenhado há oito anos por Steve
Bannon,
o ultraestrategista de Trump que tentou liderar uma primeira versão
da internacional de extrema-direita com o Movimento. "Elon Musk é um
homem muito mais poderoso do que Steve Bannon e conseguiu muito mais
do que ele, forjando relacionamentos com líderes da extrema-direita. Quando
Bannon desembarcou na Europa, seu projeto para o Movimento falhou
miseravelmente", diz Forti. "Musk é muito mais do que Steve
Bannon".
Fonte: La Stampa/El Diário, tradução de Luisa
Rabolini, para IHU
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