Manuel Joaquim Rodrigues dos Santos:
“Quo Vadis?”
Creio piamente que
as portas do Inferno não prevalecerão sobre a Igreja. Não a derrotarão.
Garantia do próprio Cristo (Mt 16,18). Sou tomado por uma
esperança que não decepciona (Rm 5,5). Porém, constato que as mudanças
culturais e geopolíticas do atual momento histórico, estão engolindo
esta Igreja, apesar do evento Francisco. O Papa foi bem mais longe do
que seria previsível, mas vai deixar o papado, com algumas batalhas ganhas e com
inúmeros desafios em aberto. Não relativizo de modo algum o ineditismo ou a
coragem de Francisco em aplicar os conceitos do Vaticano
II,
indo bem mais além.
Ele impulsionou
a Igreja para fora da sua autorreferencialidade e lhe lembrou
qual a razão de ser da sua existência. Conclamou-a a ser pobre e a estar ao
lado dos mais desfavorecidos. Chamou-a a ser sinodal e mais “democrática”.
Levou-a a enfrentar profeticamente os poderosos, denunciando as aberrações da
destruição do planeta e as suas atitudes xenófobas com os emigrantes e
refugiados, bem como combateu a homofobia e até aumentou o número de mulheres
em cargos de poder na Cúria Romana.
Contudo,
paradoxalmente, a Igreja continua letárgica. Após um período de
euforia com o Concílio e encontrando caminhos de reflexão na práxis
libertadora latino-americana, começou apresentando dificuldades em
aceitar a perda do status adquirido ao longo da cristandade. Não aguentou
a exigência de ser uma Igreja
minoritária,
transformadora de base. Com um instinto equivocado de sobrevivência, buscou no
passado a sua melhor performance para apresentar a um mundo em profunda mudança
de época.
E encontrou espaço e aplausos! O avanço
da extrema direita mundo
afora acolhe com especial prazer e simpatia uma Igreja travestida de
idade média. A aliança com o religioso é de fundamental importância para essa
ideologia. É o glamour da volta da antiga disciplina e dos valores de uma
humanidade que “era feliz”! A Igreja sucumbiu.
Aos que me
interpelam sobre “que Igreja” estou falando, a resposta é:
a Igreja “de Francisco”! Sim! A hipocrisia e a esquizofrenia presidem
a esta Igreja espalhada pelos cinco continentes. Sob a admiração e o
respeito exterior ao atual papa, pululam nas alcovas as traições mundanas de
quem flerta com outro ideal bem diferente. A prova? Olhemos para os Seminários,
os padres jovens, as rendas medievais, as procissões, o autoritarismo,
o narcisismo, o clericalismo crescente...
Tudo conspira contra Bergoglio.
As estruturas
eclesiais são pesadas e caríssimas, os padres auferem dividendos de classe
média e os bispos ganham muito bem. As louváveis e respeitosas exceções
confirmam a regra. O “intelectualismo estéril” de quem usa diplomas pagos pelo
óbolo da viúva, enquanto deveriam servir à Comunidade. As vocações aumentam em
continentes em que a pobreza grassa, por razões que me parecem óbvias. Os padres
do primeiro mundo se debatem pela sobrevivência, num habitat
de sacramentalismo, beirando a simonia. Um salve-se quem puder, com
pouquíssimo controle público ou eclesial. Por sua vez, os do sul global ganham
acima da média dos seus concidadãos. O mundanismo felino se
instalou nas células do corpo eclesial. Um colega me dizia meses atrás: “Roma
bem fala...”!
“Se não puder
vencê-lo junte-se a ele”. O provérbio antigo ganha consistência na referência a
uma Igreja que passou de crítica do mundo nos últimos dois séculos
antes do Vaticano II, a aliada e nele bem integrada, após cinco décadas de
ensaio de diálogo propositivo, como recomenda a Gaudium
et Spes.
Nunca como hoje a “nova cristandade” se sentiu tão “em casa”. Bispos e padres
movem-se apoiando regimes totalitários ou se calam perante desafios
do Estado de Direito. No Brasil, não foram poucos os que apoiaram as
atitudes do inelegível, mesmo com o deboche pela vida humana em tempos de
pandemia! Nos EUA, sem grandes surpresas, apenas uma minoria critica as
agendas de Trump, por mais
desumanizadoras e perigosas que se apresentem! Ao discurso incisivo do
ancião Francisco apontando para caminhos de libertação, sobrepõem-se
atitudes medíocres de rigidez e aprisionamento da mensagem evangélica em
invólucros enferrujados.
A discussão sobre
percentuais é inócua. O povo não entra nessa contabilidade! Nunca entrou.
Calcula-se que no Brasil uma boa parcela dos bispos indicados
por Francisco não esteja sintonizada com a sua eclesiologia! Se
estivessem e exercessem a sua responsabilidade pastoral e governativa na Igreja
Particular, coibiriam abusos que desafiam à luz do sol o atual papa! Inibiriam
e admoestariam os verdadeiros mestres dos nossos seminaristas, acabando com
este jogo de faz de conta em que se encontra a formação atualmente! E não
empoderariam com cargos e “paróquias cobiçadas” os jovens deslumbrados com o
poder clerical que acabaram de receber na ordenação. Assim eles pensam!
Não acredito que
este modelo de Igreja sobreviva muito tempo. Mas estou convicto que
no momento atual ele tenda a se impor, consolidando-se majestosamente através
de imponentes liturgias e assédio ao poder, para continuar usufruindo dos
dividendos dos velhos e saudosos tempos da cristandade. Um papa, por mais
longevo que seja, não conseguirá mudar esta configuração. Desde o saudoso Paulo
VI vemos
iniciativas fortes e brilhantes, mas insuficientes para uma mudança profunda
que devolva à Igreja o caráter testemunhal dos primeiros séculos. Na
minha terra se diz que “Roma e Pavia não se fizeram num dia”!
A esquizofrenia, já
denunciada em vários textos, aponta para belíssimas reflexões com baixíssima
incidência nas bases. Um distanciamento anacrônico (visto que
o Concílio o aboliu) entre os batizados em geral e a hierarquia que
ainda é detentora do poder deliberativo e executivo. Observa-se, agora,
uma tirania
do Direito Canônico atraindo inúmeros presbíteros para o mestrado e
doutorado e impondo-se sobre a pastoral. O mesmo Direito Canônico que
reclama (após o Sínodo) por uma revisão profunda.
Abordar
a Igreja sob esta visão não nos impede de entendê-la na ótica de um
“entardecer estonteante” repleto de promessas para o dia seguinte, como já foi
indicado. É a um modelo de cristianismo falido que nos referimos. A
uma Igreja que não dança conforme a música de Francisco. Talvez
esta Igreja falida aguarde ansiosamente a passagem deste papa. Sinto dizer que,
graças a Deus, podem ficar decepcionados tendo em vista o perfil dos novos
cardeais. A confirmar!
Uma Igreja acoplada
por uma cultura pós-moderna é uma Igreja prisioneira
do exibicionismo, narcisismo, superficialidade, mediocridade,
que tende a enveredar pelos caminhos da autoajuda e do coach, longínquos
do Evangelho. E assim não nos surpreendemos com a exposição saturada de
padres jovens na mídia, anunciando todo tipo de curso online, exceptuando-se
a Doutrina Social da Igreja! Voltou a apologética com toda a intensidade e
a exposição da “sã doutrina” intrepidamente. Ora, este modelo esquiva-se
furtivamente à eclesiologia
de Francisco,
como a areia entre os dedos.
A queda da
cristandade ocorreu oficialmente em 11 de outubro de 1962, com o belíssimo
e profundo discurso de S.
João XXIII na
abertura do Concílio. Sabemos que a recepção do Vaticano
II encontrou imensas dificuldades, que expressaram as tensões já
existentes na elaboração dos documentos. Passados cinquenta anos,
a cristandade não saiu da Igreja, manifestando-se agora mais
atrevida do que nunca! O mundo que emergiu no século XXI, repleto de incertezas
e inseguranças, arrastou a Igreja para a busca desenfreada de um
passado perdido. A crise das e nas instituições, fomentou oportunistas que sem
pudor defendem teses anti-Francisco e anti-Concílio! Este modelo de
Igreja é francamente majoritário e só parará num evento cismático ou com a
tomada do poder. A conferir!
As indicações
sinodais têm potencial para frear este processo. Os critérios e os moldes da
nomeação de bispos, uma revisão da necessidade dos núncios apostólicos,
a valorização
efetiva das mulheres,
a ordenação
de homens casados e
o acesso dos leigos ao poder decisório. Uma Igreja que escuta...
A Igreja ainda
não acredita que o mundo que conhecemos acaba em 20/01/25 e que arroubos
autocráticos não cabem mais. Francisco, um profeta, vislumbrou em 2013 (ou
bem antes) que a fidelidade ao Evangelho passava por caminhos bem
distintos dos que trilhávamos. De lá para cá teve o evento Trump e
com ele tudo mudou. Para pior! O profetismo da Igreja é hoje mais
necessário do que nunca, porque neste “admirável mundo velho” o homem será
ultrajado, escravizado e descartado e viverá num planeta exponencialmente
agredido. Os panos classificatórios da classe clerical só servirão
para legitimar a demência deste novo caldo cultural (peço perdão ao termo).
A esperança que
nos torna peregrinos atentos é a mesma que nos impele a lutar por
uma Igreja que acreditamos e cujo fundamento é o Profeta Jesus
de Nazaré e os Apóstolos. A denúncia do revisionismo do
passado recente e da adoção de eclesiologias ultrapassadas deve ser
o nosso dever. Francisco agradece!
Fonte: IHU OnLine
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