Morte das águas no
Oeste da Bahia: mapeamento identifica mais de 3 mil trechos secos
“Como pode o rio
que banhou sua vida e de seus antepassados secar diante de seus próprios
olhos?”. “Antigamente esse rio tinha água que vinha cá em cima. Hoje tá
fraco e pedindo socorro”. Entre córregos, riachos, nascentes e cabeceiras de
rios, corre a memória de um tempo que não existe mais. A abundância deu lugar à
secura. O que era fonte de vida, hoje é tragédia. Ou pior, é consequência de
crimes. No Oeste da Bahia, as vozes das comunidades gritam: nossas águas estão
morrendo.
Essa é a conclusão
do mapeamento A Morte das Águas no Oeste da Bahia - Diagnóstico das
comunidades sobre a morte das águas nas sub-bacias dos rios Corrente e
Carinhanha. O estudo, realizado entre 2023 e 2024, identificou uma extensão de
quase 11.000 km de trechos de água secos ou em estado crítico no alto e médio
Corrente e nas sub-bacias do rio Carinhanha, áreas próximas às fronteiras da
Bahia com o estado de Goiás e o norte de Minas Gerais. A iniciativa é fruto de
uma parceria entre a Pastoral do Meio Ambiente (PMA), Comissão Pastoral da
Terra (CPT), os pesquisadores Thiago Damas, da Universidade Federal Fluminense
(UFF) e Eduardo Barcelos, do campus Valença do Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia Baiano (IFBaiano/Valença), que atuaram em conjunto com as
comunidades e organizações locais.
“A identificação do ‘desaparecimento’ das
águas na região vem sendo um clamor das comunidades há anos. Em épocas de
romarias, as comunidades trazem suas cruzes simbolizando rios já secos”, relata
Amanda Alves, comunicadora da CPT Centro Oeste da Bahia, núcleo Bom Jesus da
Lapa.
“A partir da
demanda e angústia das comunidades, surge a ideia de realizar o mapeamento, com
o objetivo de identificar os rios que secaram totalmente (águas mortas) e
aqueles que estão em estado de risco (águas em estado crítico). Para isso, foi
delimitada a área, a participação efetiva das comunidades e o envolvimento dos
pesquisadores”, explica a comunicadora, que também participou do mapeamento.
·
Uma
distância entre Brasil e México de águas mortas
O estudo
identificou 3.050 trechos de águas já secos, entre córregos, riachos, nascentes
e cabeceiras de rios, num total de 7.120 km de extensão de águas mortas. A
junção dos pequenos cursos d’água ligados um ao outro alcançaria uma distância equivalente
àquela entre o Brasil e México.
Além disso, o mapa
apresenta outros 580 trechos de águas classificadas como em estado crítico, o
que corresponde a 3.837 km de extensão, com destaque às grandes calhas dos rios
das bacias apresentadas. O mapeamento também identificou trechos de áreas
desmatadas, pivôs centrais, piscinões e canais de transposição. Clique
aqui para conferir o mapa em alta qualidade.
Para a
identificação dessas áreas, os organizadores articularam oficinas nos
municípios do território mapeado e realizaram visitas in loco nas
comunidades, envolvendo uma ampla representatividade de grupos sociais, faixas
etárias, gêneros, etnias e modos de vida.
“As comunidades são
conhecedoras de seus territórios, ocupam as comunidades tradicionais há mais de
350 anos, desenvolveram historicamente seu modo de vida em torno das águas.
Somente com a participação delas foi possível colocar os nomes nos rios e
identificar as águas mortas e em estado crítico de cada um”, ressalta Amanda.
Segundo relato dos
moradores, as águas passaram a secar a partir da década de 1980, cerca de 15
anos depois da instalação de projetos de “desenvolvimento” na região, que
levaram ao desmatamento de grandes áreas para plantio de pinus e eucalipto nos
cerrados do Oeste.
·
De
quem é a culpa?
A região Oeste da
Bahia é considerada uma das últimas fronteiras agrícolas do Brasil, sendo um
polo nacional da agricultura irrigada. Conforme aponta o estudo, nos últimos 30
anos os latifúndios vêm se expandindo de forma avassaladora sobre este
território e, para isso, se apropriam da água a partir de métodos que
negligenciam as dinâmicas naturais e o modo de vida das comunidades que ali
vivem.
Esse crescimento
também se dá com o aval do Estado. Segundo dados do Instituto de Meio Ambiente
e Recursos Hídricos (Inema) levantados pela Agência Pública e
apontados na pesquisa, em 2021, o governo do estado da Bahia concedeu 1,8
bilhão de litros de água por dia em outorgas a mais de duas dezenas de
diretores e conselheiros da Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia
(Aiba) e da Associação Baiana dos Produtores de Algodão (Abapa), entidades que
controlam o agronegócio na região, e a familiares e empresas ligadas a eles.
“Um único CPF detém
a maior autorização para captação de água, com 466,8 milhões de litros por dia.
Considerando que a média de consumo de um brasileiro, segundo o Sistema
Nacional de Informações sobre o Saneamento (SNIS), é de 148 litros por dia,
somente esta outorga abasteceria a população de 97 Correntinas, 226 Coribes e
340 Jaborandis, municípios situados dentro da área mapeada”, denuncia o
levantamento.
·
Conflitos
no campo
O crescimento do
agronegócio no Oeste é também um dos pilares do aumento da violência na região.
De acordo com o relatório “Conflitos
no Campo Brasil 2023”,
lançado pela CPT no ano passado, a Bahia figura em primeiro lugar no número de
conflitos, com 249 registros. Dentre os casos identificados pela CPT no estado,
foram 20 ameaças de morte, oito tentativas de assassinato e quatro
assassinatos, além de 63 manifestações e ações de resistência protagonizadas
pelas comunidades e movimentos populares.
“Essa realidade tem
assolado o Oeste da Bahia, afetando principalmente as comunidades de fundo e
fecho de pasto e ribeirinhas, que são vítimas de grilagem de seus territórios,
onde estão concentradas as nascentes que abastecem os principais rios e
acontece a recarga do aquífero Urucuia”, explica Amanda Alves.
A comunicadora da
CPT também relembra do levante
popular em Correntina,
município a 900 km de Salvador, ocorrido em 2017, quando cerca de mil
trabalhadoras e trabalhadores ocuparam fazendas denunciando a destruição do
Cerrado e o consumo desproporcional de água. Dias depois, mais de 12 mil
pessoas foram às ruas contra a criminalização da luta e em defesa das águas.
Num município com 33 mil habitantes, essa foi uma mobilização histórica para
toda a região Oeste.
Após a finalização
do mapa, o resultado do estudo foi devolvido às comunidades. Amanda explica que
o objetivo agora é ampliar a formação local para fortalecer a organização
popular.
“Foram realizadas
impressões de diversos mapas para as organizações, escolas e comunidades
utilizarem como subsídio em palestras e reuniões, mostrando a realidade das
águas nesta região, alertando para a escassez e possível desaparecimento de
grandes rios. O mapa é uma ferramenta importante por ter um retrato da
realidade e contrapor narrativas de que o Oeste da Bahia possui ainda
abundância de água”, finaliza.
Fonte: BdF
Bahia
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