terça-feira, 14 de janeiro de 2025

O que é a masculinidade tóxica?

Uma faca está em cima da mesinha ao lado uma rosa azul, provavelmente de plástico. O chamado "influenciador masculino" antifeminista, o anglo-americano Andrew Tate está sentado em uma cadeira de couro com as pernas abertas e os olhos cobertos com um óculos de sol.

"Eu analisei a Terra toda. Tudo", diz ele antes agitar uma espada no ar. Segundo ele, a causa para todos os problemas do mundo seria o fato de poucos homens andaram por aí com uma espada. "Não há homens suficientes como eu, que fazem o que querem", acrescenta. "Eu sou um cara que faz o que quer. E agora quero fumar um charuto, mas é difícil achar o charuto no meio de tanto dinheiro no meu bolso."

Agora, Tate chega ao cerne de sua "análise", ou seja, quem é realmente culpado por tudo: as mulheres. Tate as chama de "fêmeas". Em sua opinião, as fêmeas manipulam os homens e controlam a sociedade.

"Em todo o processo de vida da fêmea, da cabeça aos pés, ela nunca pensa por ela mesma. Elas são apenas um recipiente vazio esperando para alguém instalar o programa e elas então se tornam conservadoras, liberais, feministas ou o que for", acrescenta Tate no vídeo intitulado "A verdade sobre as mulheres" publicado em 2022 no YouTube.

O vídeo original, assim como Tate foram bloqueados na plataforma. O influenciador, que se declara abertamente misógino – quem odeia e despreza mulheres –, porém, é seguido por mais de 10 milhões de usuários na rede social X (antigo Twitter). No Telegram, seus dois canais são lidos por mais de meio milhão de usuários.

·        Carros, dinheiro e misoginia

Para muitos, o influenciador misógino e antifeminista é um sinônimo para a masculinidade tóxica. Mas Tate não é o único exemplo na cultura pop. Segundo o autor e filósofo alemão Ole Liebl, não há uma definição padrão para a masculinidade tóxica.

"Tóxico significa venenoso. O termo descreve homens que se comportam como babacas. Ou seja, um comportamento nocivo, destrutivo ou ofensivo que é codificado por gênero", afirma Liebl.

Ativistas dos direitos das mulheres popularizaram o termo na década de 1980 para descrever um comportamento masculino caracterizado pela dominância e insensibilidade.

Esse termo, porém, incomoda muitos. "Ele contribuiu muito pouco para análises científicas de estruturas patriarcais. Críticos também alertam que ele coloca sob suspeita a masculinidade em geral e prejudica a saúde mental dos homens", afirma Liebl. Uma pesquisa com 255 entrevistados da Universidade Qassim da Arábia Saudita e do Centro para Psicologia Masculina de Londres chegou as mesmas conclusões.

"É um conceito emocional e conceitos emocionais são importantes para as lutas de libertação. Eles nos ativam. Mas não é útil para a ciência", acrescenta Liebl.

·        Enriquecendo com misoginia

Tate pode falar muito sobre mulheres, mas elas não são seu público alvo. Ele usa suas redes sociais para atrair clientes para seu site, onde vende cursos on-line, nos quais promete riqueza, sucesso e a libertação da "matrix" para todos por 500 dólares por ano (R$ 3.097).

O modelo atraiu inúmeros imitadores. No X e no YouTube, outros milhares vendem guias e cursos semelhantes para homens. Eles se intitulam "homens alfa" e criam fóruns para discutir como "pegar" mulheres para sexo e como redescobrir a masculinidade.

O fenômeno não se limita ao mundo virtual. Workshops de finais de semana chamados "ser autenticamente masculino" ou "viver a masculinidade" são oferecidos também por influenciadores que se autodenominam coachs ou treinadores de motivação pessoal. Alguns oferecem cursos intensivos de "oito dias de poder masculino por 1.990 euros (R$ 12.846)". Clientes podem pagar em parcelas, informam prestativamente.

Esses workshops visam supostamente introduzir aos participantes os arquétipos do "homem selvagem, menino interior, guerreiro, e o sedutor".

Epidemia de "salvadores da masculinidade"

No Reddit, é possível ter uma noção de quão problemática é a influência da ideologia pregada por Tate. A plataforma reúne depoimentos de centenas de mulheres, cujos parceiros ou filhos se tornaram fãs de Tate e se radicalizaram.

Uma dessas mulheres que buscam ajuda é a usuária Mystic_Falls36, de 27 anos. Em uma publicação, ela descreve como seu parceiro de longa data passou a consumir o conteúdo de Tate e como ele mudou. Primeiro, ele pediu para ela largar o emprego e virar dona de dona.

Agora que ela está em casa há um ano e grávida de gêmeos, seu parceiro começou a fazer comentários abusivos, como "você fica em casa o dia inteiro e não consegue mantê-la limpa" ou "você tem tempo suficiente para ir para a academia, então vá".

Com o tempo, os comentários abusivos se tornaram agressões físicas. Na presença da família dele, o fã de Tate deu um tapa na cara dela. "O que eu devo fazer?", pergunta Mystic_Falls36 no Reddit.

·        Incapaz de se relacionar

Esse comportamento não prejudica apenas mulheres, mas também os próprios homens que agem dessa maneira. Vários estudos atribuíram a esses homens menores índices de inteligência emocional, maior agressividade, taxas de suicídio mais altas, menos amigos próximos e menos consultas de saúde.

Segundo Liebl, esse comportamento também resulta na incapacidade de se envolver em relacionamentos íntimos e significativos.

Em 2022, Andrew Tate e seu irmão Tristan foram presos em Bucareste, na Romênia, acusados de estupro, tráfico humano e formação de uma organização criminosa. Eles teriam aprisionado mulheres simulando ter sentimentos por elas, antes de as forçarem a produzir filmes pornográficos. Os crimes teriam acontecido na Romênia, nos Estados Unidos e no Reino Unido.

Os irmãos ainda são acusados de lavagem de dinheiro e evasão de divisas pela Justiça britânica. Eles negam todas as acusações.

Em 19 de novembro, a Justiça romena devolveu o caso para a promotoria devido a erros processuais. A decisão evita que os dois sejam processados no momento.

 

¨      Movimento de abstinência ganha força após eleição de Trump

Christine Ivans diz que foi difícil quando começou a se afastar de relacionamentos com homens, aos 30 anos. A decisão partiu de uma reavaliação de suas prioridades: investir toda a sua energia em si mesma em vez de tentar encontrar o "homem ideal".

Alguns meses se passaram. Depois, alguns anos. "Estou feliz. Fui promovida, ganhei um aumento e minha saúde mental melhorou", diz Ivans oito anos depois.

Mas foi somente quando descobriu o movimento 4B (sigla que significa "quatro nãos") no TikTok, que ela percebeu que não estava sozinha. "Os quatro nãos são: nada de casamento, nada de filhos, nada de namoro ou relacionamentos sexuais com homens – tudo isso eu venho praticando há algum tempo", explica.

O movimento 4B, que surgiu na Coreia do Sul em meados da década de 2010, se popularizou gradualmente entre o público americano.

No início deste ano, por exemplo, a atriz americana Julia Fox declarou sua abstinência sexual em resposta à revogação de uma decisão judicial de 1973 da Suprema Corte dos EUA queestabelecia o direito constitucional ao aborto até a 24ª semana de gravidez. Em 2022, o mesmo tribunal anulou este entendimento e devolveu aos 50 estados do país a jurisdição sobre a questão. "Senti que, se eles iriam tirar os direitos que temos sobre os nossos corpos, essa seria minha forma de recuperá-los", disse Fox em um episódio do podcast Zach Sang Show.

Mas foi após a eleição americana deste ano, que reconduziu o republicano Donald Trump à Casa Branca, que o movimento 4B ganhou força. As buscas no Google sobre o termo explodiram entre a véspera e os dias seguintes ao pleito americano, em 5 de novembro. Milhares de mulheres compartilharam suas experiências de abstinência em vídeos no TikTok. Muitas inclusive rasparam o cabelo – uma marca entre as adeptas ao movimento.

A sul-coreana Mingyeong Lee, que faz parte do movimento desde sua fundação, se diz feliz em ver o perfil da 4B crescer tão rapidamente. "Eu estava esperando que isso acontecesse. Demorou oito anos para chegar até vocês", disse ela à DW.

Mingyeong vê semelhanças entre as lutas pelos direitos das mulheres nos EUA e na Coreia do Sul. "Há oito anos, descobrimos que nossos amigos, pais ou outros homens próximos a nós não compartilhavam nossa perspectiva sobre questões de gênero", explica ela.

Ela se refere a um feminicídio que aconteceu em Seul, capital da Coreia do Sul, no qual um homem matou uma mulher no banheiro de um bar e alegou que o fez porque ela o havia ignorado a vida inteira.

O assassinato deu força a uma nova onda de movimentos feministas na Coreia do Sul, liderada por mulheres jovens que denunciaram o problema da misoginia no país. Em 2019, nove entre dez vítimas de crimes violentos no país eram mulheres, de acordo com o procuradoria-geral da Coreia do Sul. Um relatório publicado pela ONU nesta semanaaponta que uma mulher ou menina é assassinada a cada 10 minutos no mundo por seu parceiro ou por um membro da família.

·        Mulheres atacadas por "parecerem feministas"

O movimento viu mulheres construindo solidariedade por meio da resistência, mas também enfrentou uma reação negativa. "As mulheres que usam cabelo curto são rotuladas como doentes, assediadas e até mesmo agredidas fisicamente, porque se parecem com feministas", diz Seohee Lee, estudante sul-coreana e ativista do 4B.

Ainda assim, Seohee diz que o movimento não se trata de vingança, mas de criar uma comunidade segura para as mulheres. "As coreanas estão resistindo às ameaças do patriarcado de uma forma silenciosa, mas altamente eficaz."

Mingyeong Lee, por exemplo, tem 32 anos e não quer ter filhos. Ela nasceu em uma época em que o aborto de fetos do sexo feminino ainda era popular na Coreia do Sul, apesar de o país ter promulgado uma lei em 1988 que proibia os médicos de revelar o sexo da criança.

Ainda assim, a Coreia do Sul tem hoje a menor taxa de natalidade do mundo – um índice que seu presidente, Yoon Suk-Yeol, atribui ao feminismo. Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), a nação está entre os países com maior disparidade salarial entre homens e mulheres. "Este é um lugar cruel para as mulheres", explica Mingyeong. "Se dermos à luz meninas, elas não estarão seguras nem felizes."

·        Políticas de Trump reforçam movimento

Ivans vive no estado de Seattle, Washington, a 8 mil quilômetros de distância de Mingyeong e também não quer ter filhos.

Assim como Mingyeong e Seohee, Ivans percebeu que pouquíssimos homens em sua vida compartilhavam de sua consideração pelos direitos das mulheres. Seu pai era um dos homens que não liga para essa questão. Apesar de quase ter perdido sua esposa devido a uma gravidez de alto risco, ele votou em Donald Trump.

Durante seu primeiro mandato, Trump indicou três dos juízes da Suprema Corte que votaram para derrubar o direito ao aborto nos EUA. O republicano chamou a decisão de "uma coisa linda de se ver" e opositores apostam que osegundo mandato do republicano pode ser ainda pior para o direito das mulheres.

A ideia de engravidar e não ter acesso a um aborto seguro aterroriza Ivans. "Meu pai diz que se preocupa com os direitos das mulheres. Mas, na hora do voto, ele diz que há coisas mais importantes", conta. "Então, a essa altura, quando influenciadores estão gritando slogans como 'seu corpo, minhas regras' por toda a internet, o próximo passo lógico é algo como o movimento 4B", acrescenta.

O slogan citado por Ivans foi propagado pelo influenciador de ultradireita e supremacista branco Nick Fuentes logo após a vitória de Trump. Ele provoca indignação, mas é mais do que apenas palavras.

De acordo com a Pesquisa Nacional sobre Parceiros Íntimos e Violência Sexual dos EUA, duas em cada dez mulheres do país são estupradas em algum momento de suas vidas, e quase metade sofre violência sexual além do estupro.

Tendo seus direitos e corpos atacados, mulheres como Ivans estão se inspirando nas feministas sul-coreanas e em seus métodos de resistência. "O sexo é uma linguagem que os homens entendem", explica. "O movimento 4B diz: 'Ei, eu vou tirar isso até que você esteja ouvindo'. Não como uma punição, mas como uma forma de chamar a atenção."

·        Linguagem universal

A ativista Seohee Lee está feliz que as americanas estejam adotando o movimento 4B. Ela se pergunta se elas estão vivenciando o que ela sentiu quando a Coreia do Sul elegeu Yoon Suk Yeol, cuja campanha prometia abolir o Ministério da Igualdade de Gênero e Família.

Seohee não se surpreende com o fato de as mulheres nos EUA também enfrentarem resistência por usarem a abstinência para defender o direito ao aborto. "Afinal, sou uma feminista que os homens odeiam e detestam", diz ela.

 

Fonte: DW Brasil

 

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