Maduro no poder:
como Brasil pretende lidar com 'nó' nas relações com a Venezuela
Nicolás Maduro tomou posse
nesta sexta-feira (10/1) pela terceira vez consecutiva como presidente da Venezuela, mais uma vez sob
intensa contestação
internacional e
da oposição, para governar o país por mais seis anos.
Por um lado, a
recondução de Maduro ao cargo indica sua força doméstica. Por outro,
representará um novo desafio para a política externa do Brasil, avaliam três
diplomatas brasileiros ouvidos pela BBC News Brasil em caráter reservado e três
especialistas em relações internacionais.
Isso porque o
governo brasileiro não reconheceu a
vitória de Maduro na
votação de julho do ano passado — assim como outros países, como os Estados Unidos, e instituições
como a União Europeia e a
Organização dos Estados Americanos (OEA).
Ao mesmo tempo, as
relações entre os dois países estão estremecidas depois que o governo
brasileiro criticou o processo eleitoral venezuelano e se recusou a aceitar a
vitória de Maduro sem que fossem apresentadas as atas de votação
que atestam o resultado.
Maduro rebateu as
suspeitas de fraude argumentando que sua eleição foi justa e disse ser alvo de
uma campanha difamatória internacional.
Neste capítulo
inédito que se abre nas relações entre Brasil e Venezuela, os entrevistados
ouvidos pela reportagem apontam que o primeiro desafio a ser enfrentado pelo
Brasil será se equilibrar diante de uma ambiguidade óbvia.
Como manter
relações com um governo que se manteve no poder por meio de um processo
eleitoral não reconhecido pelo Brasil?
Diplomatas e
especialistas afirmam ainda que a tendência é que, ao menos no curto prazo, o
Brasil mantenha as relações com a Venezuela em nível técnico, sem maiores
engajamentos políticos, enquanto o cenário sobre o novo governo de Maduro não
ficar mais claro.
Segundo eles, um
dos elementos decisivos para saber qual direção a Venezuela tomará e,
consequentemente, como isso vai afetar o Brasil, é a posse do presidente eleito
dos Estados Unidos, Donald Trump, marcada para 20
de janeiro.
De acordo com os
especialistas, Trump pode ser tanto um elemento de estabilização do governo
Maduro como pode tentar desestabilizá-lo, o que teria consequências para o
Brasil.
·
Como
as relações entre Brasil e Venezuela ficaram estremecidas
Nos últimos dois
anos, o presidente Luiz Inácio Lula da
Silva (PT) passou
de uma posição de apoio quase incondicional a Maduro um posicionamento crítico.
Lula havia definido
como uma de suas prioridades internacionais do atual mandato a reaproximação
com a Venezuela após a ruptura nas relações diplomáticas no governo de Jair Bolsonaro (PL).
O Brasil reabriu
sua embaixada em Caracas e recepcionou Maduro em Brasília
com honras de chefe-de-Estado em maio de
2023.
Lula declarou na
ocasião que as acusações de autoritarismo contra Maduro fariam parte de
uma "narrativa". A fala foi
criticada no Brasil e no exterior.
"Aquilo foi
terrível porque inviabilizou um projeto brasileiro mais amplo de coordenação
regional", diz Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da
Fundação Getúlio Vargas (FGV).
"Esse encontro
em Brasília acabou sendo lembrado pelas discordâncias de presidentes como
Lacalle Pou [ex-presidente do Uruguai] e [Gustavo] Boric [presidente do Chile]
em relação ao Lula."
Nos bastidores, o
governo brasileiro aguardava as eleições de 2024 na Venezuela como um
importante teste para a liderança de Maduro.
O rumo que a
votação tomou fez o Brasil começar a mudar sua postura em relação ao país.
As autoridades
eleitorais venezuelanas impediram a candidatura da principal líder da
oposição no país, María Corina Machado, e de sua sucessora, Corina Yoris. O
governo brasileiro, então, reagiu.
Lula qualificou o
episódio como "grave", e o Itamaraty publicou nota expressando
preocupação quanto à condução do processo eleitoral na Venezuela.
O governo
venezuelano, por sua vez, respondeu afirmando que o teor do pronunciamento
brasileiro se assemelhava a algo produzido pelo "Departamento de Estado
dos Estados Unidos".
A saída encontrada
pela oposição foi se aglutinar em torno do diplomata aposentado Edmundo
González.
Às vésperas da
eleição, Lula criticou declarações de Maduro, que disse que haveria um
"banho de sangue" se não fosse o vencedor das eleições.
Na avaliação do
presidente brasileiro, a Venezuela só retornaria à normalidade política por
meio de um processo eleitoral reconhecido por todos.
Em 2 de agosto,
quatro dias após o pleito, o Conselho Nacional
Eleitoral (CNE) divulgou que Maduro teria sido reeleito com 67% dos votos.
A oposição, porém,
contestou os números, alegando que González teria saído vitorioso e acusando o
governo de fraude eleitoral.
Os opositores e
países como o Brasil e Colômbia pediram que o CNE tornasse públicas as atas de
votação, que poderiam comprovar os votos em Maduro. O governo venezuelano nunca
divulgou as atas.
Diversos protestos
contrários ao governo foram realizados em várias partes do país.
Como resposta,
houve relatos de que o governo Maduro teria reforçado a repressão contra
manifestantes. O governo venezuelano nega as acusações.
Em decorrência
dessas tensões, a Venezuela chamou de volta a Caracas o embaixador que mantinha
no Brasil, um sinal de discordância grave entre as nações.
·
Diplomacia
em 'banho-maria'
Apesar do atual
distanciamento entre os dois governos, as relações com o governo venezuelano
são consideradas estratégicas para o Palácio do Planalto.
Por isso, uma fonte
diplomática ouvida pela BBC News Brasil afirma que a definição sobre a
estratégia a ser adotada não cabe ao Itamaraty, mas à assessoria internacional
da Presidência da República, comandada pelo embaixador Celso Amorim, homem de
confiança de Lula. Após definida a linha de ação, ela é repassada ao corpo
diplomático.
Para este
diplomata, o futuro mais imediato das relações entre o Brasil e a Venezuela
deverá ser marcado por duas expressões: ambiguidade criativa e
"banho-maria".
Essa ambiguidade
criativa, segundo ele, decorre justamente do fato de o Brasil reconhecer a
existência de um governo na Venezuela ainda que o país não tenha reconhecido o
processo eleitoral que o colocou no poder.
De acordo com este
diplomata, essa postura parte de uma visão pragmática sobre a realidade da
Venezuela agora e nos próximos anos.
Como não se
vislumbra uma queda de Maduro no curto ou médio prazos, o governo brasileiro
terá que lidar, goste ou não, com o governo que está no poder.
"Bilateralmente,
vamos manter as coisas da forma como estão", diz o diplomata.
"Não
encerramos os contatos, mas também não faremos nenhuma grande coisa ou
manifestação de apoio. Como se diz, as relações ficarão em 'banho-maria'."
Mas, na prática, o
que isso quer dizer?
Segundo outro
diplomata ouvido pela BBC News Brasil, a expectativa é de que o Brasil
continuará a manter contatos com o governo venezuelano a partir dos canais que
já existem, por meio da sua embaixada em Caracas e da assessoria internacional
da Presidência.
Entre os fatores
que pesam na balança para essa postura estão a tradição brasileira de não
cortar relações diplomáticas com outros países e a complexidade dos interesses
brasileiros na Venezuela.
Dados do Ministério
das Relações Exteriores apontam que haja pelo menos 11 mil brasileiros vivendo
na Venezuela.
Em 2024, o comércio
entre os dois países movimentou US$ 1,6 bilhão (R$ 9,8 bilhões) com um saldo
positivo de US$ 777 milhões (R$ 4,76 bilhões) para o Brasil.
Além disso, Brasil
e Venezuela dividem uma fronteira com 2,2 mil quilômetros em uma região
particularmente sensível para o Brasil, que é a Amazônia.
Na área de
influência dessa fronteira, o Brasil enfrenta atividades ilegais como o tráfico
de drogas e o garimpo ilegal em terras indígenas.
Oliver Stuenkel
disse à BBC News Brasil compreender a escolha brasileira por um relacionamento
técnico e politicamente "morno".
"A Venezuela é
um país vizinho e isso traz diversas questões que o Brasil precisa resolver,
como o crime organizado na fronteira, a degradação ambiental no sul da
Venezuela, a proteção a povos indígenas, a questão migratória e toda a questão
consular", diz Stuenkel.
Na avaliação de
Stuenkel, mesmo sem reconhecer o processo eleitoral ocorrido no ano passado, o
Brasil não deveria cortar relações com a Venezuela.
"Existe no
Itamaraty uma percepção de que é preciso preservar esse tipo de cooperação, que
funciona no nível mais técnico", diz o especialista. "Não acho que o
Brasil deve cortar as relações por completo porque, ao final, é preciso lidar
com a Venezuela."
Para Carol Pedroso,
doutora em Relações Internacionais e professora da Universidade Federal de São
Paulo (Unifesp), o Brasil deverá se manter politicamente distante da Venezuela
no momento.
"Ao mesmo
tempo em que o Brasil se colocará à disposição se houver alguma necessidade de
mediação ou conciliação interna", diz Pedroso.
A professora
destaca que pode haver percalços nesta tentativa de moderação das relações
entre Brasil e Venezuela.
"Caso haja
movimentações mais bruscas, como a prisão de González, a posição mais
'ensaboada' do Brasil será colocada à prova e exigirá do governo um consenso
sobre o tema que, neste momento, ainda não existe nem dentro da própria base
aliada."
A possibilidade de
prisão de González veio à tona
depois que ele afirmou, na semana passada, que iria à Venezuela tomar posse do
mandato que ele reivindica como seu.
Em setembro de
2024, as autoridades do país expediram um mandado de prisão contra ele. Naquele
mês, González fugiu para a Espanha.
Um dos diplomatas
ouvidos pela BBC News Brasil disse, que além dos interesses do país na
Venezuela, também pesam, agora, o fato de o Brasil estar responsável pela custódia das
embaixadas da Argentina e do Peru desde agosto do ano passado.
O Brasil assumiu a
custódia das embaixadas a pedido dos dois países depois que a Venezuela
expulsou o corpo diplomático argentino e peruano em meio à onda de protestos
pós-eleições.
·
Fator
Trump
Para os analistas e
diplomatas ouvidos pela BBC News Brasil, um dos principais fatores a se
observar sobre o futuro da Venezuela é a postura que será adotada pelo governo
Trump.
No primeiro mandato
de Trump, de 2017 a 2021, o governo americano impôs sanções à Venezuela que
impactaram a economia do país.
Entre elas, a
proibição à compra de petróleo venezuelano por empresas dos Estados Unidos e
oferta de recompensa de US$ 15 milhões, em 2020, pela prisão de Maduro,
acusado pelo país de narcotráfico e terrorismo internacional.
Durante o governo
de Joe Biden, algumas das sanções
econômicas foram aliviadas após promessas do governo venezuelano de retorno
à normalidade democrática. Isso permitiu que os Estados Unidos voltassem a
comprar petróleo do país.
No total, as
exportações de petróleo da Venezuela para os Estados Unidos aumentaram 64% em
2024 na comparação com 2023, chegando a 220 mil barris de petróleo por dia,
segundo a agência Reuters.
Atualmente, o país
é o segundo maior comprador de petróleo venezuelano, atrás apenas da China.
A dúvida entre os
analistas é sobre que postura Trump adotará em relação ao governo de Maduro.
Trump nomeou o senador
Marco Rubio como seu futuro secretário de Estado, cargo equivalente ao de
ministro das Relações Exteriores.
Rubio é conhecido
por ser um duro crítico de Maduro e ter defendido o não reconhecimento de sua
vitória nas eleições de 2024.
Para Pedroso, uma
possibilidade é que Trump aprofunde as sanções que já haviam sido impostas à
Venezuela, criando dificuldades ainda maiores para o país.
"As sanções
podem até evoluir, nesse segundo mandato, para um embargo econômico 'à la
cubana', o que certamente traria desafios sem precedentes para a já combalida
economia venezuelana", diz Pedroso à BBC News Brasil.
A professora afirma
ainda que, dado o caráter imprevisível de Trump, outras alternativas como
intervenções mais diretas dos Estados Unidos não estão descartadas.
"Isso poderia
levar os Estados Unidos, no limite, a intervirem na Venezuela em distintos
graus: desde apoio logístico, financeiro e militar à oposição até algo mais
direto, como os episódios da América Central nos anos 1980", diz Pedroso.
"É um cenário
possível, mas não necessariamente provável."
A pesquisadora
Stephanie Braun, doutoranda em relações internacionais pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (Uerj), por outro lado, acredita haver espaço para
mudanças nas relações entre os dois países.
"Vai ser
complicado para Maduro (lidar com Trump), mas talvez não tanto quanto foi
anteriormente", afirma Braun.
"Neste
momento, os Estados Unidos estão precisando mais do petróleo venezuelano do que
anteriormente. Talvez isso dê uma amenizada na relação entre os dois países e
novas sanções não sejam implementadas."
Um dos diplomatas
brasileiros ouvidos pela BBC News Brasil diz que é a postura do governo
americano e não a do Brasil que deverá ter maior influência sobre o futuro da
Venezuela.
"Trump pode
ser pragmático e dizer: 'Deixa como está. Eu compro seu petróleo barato,
mantenho a inflação sob controle e você não me causa problema'. Se isso
acontecer, Maduro pode ficar até o final do mandato e até mais", diz o
diplomata.
"Agora, se
Trump adotar uma postura mais dura, a tensão na região vai aumentar e tudo pode
acontecer."
Segundo o
diplomata, o receio é de que uma atuação mal calibrada do governo americano
possa trazer mais instabilidade à região.
Ele afirma que,
historicamente, há uma percepção entre diplomatas latino-americanos de que os
Estados Unidos não se interessam pela região.
Segundo ele, o
temor agora é de que essa situação mude: "A gente sempre brinca: é melhor
que eles não comecem a se interessar por nós".
Fonte: BBC News
Mundo
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