quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

'Churrasco agora é luxo': Argentina registra menor consumo de carne em 20 anos

Com o impacto da queda na renda e na diminuição da produção, a venda de carne bovina atingiu mínimos históricos na Argentina. Embora a inflação esteja caindo, os preços de produtos básicos ainda seguem em níveis muito elevados. E o consumo de carne continua em queda livre na Argentina. Durante 2024, as vendas despencaram 11,1% em relação ao ano anterior, atingindo seu nível mais baixo desde 2002, ano em que o país estava imerso em uma das piores crises socioeconômicas de sua história.

Segundo a Câmara da Indústria e Comércio de Carnes e Derivados (CICCRA), o consumo de carne bovina por habitante foi de 47,4 quilos entre janeiro e novembro de 2024: cada argentino consumiu, em média, quase 6 quilos a menos do que no mesmo período de 2023 e muito abaixo da média histórica (72,9 kg.), resultando na pior marca em mais de duas décadas. O fenômeno responde principalmente a fatores econômicos. "Com o preço de um quilo de carne bovina, é possível comprar três de frango. Obviamente, em uma situação tão frágil como a que atravessam milhares de famílias, a decisão final é influenciada pelo bolso", explicou à Sputnik Miguel Schiariti, presidente da CICCRA e responsável pelo estudo.

A pesquisa aponta que não só a demanda caiu: a própria oferta também foi afetada por fatores climáticos e o abate diminuiu 8% em relação ao ano anterior, devido à seca que atravessou o país. "Estamos consumindo a mesma quantidade de frango que de carne bovina, algo impensável há 30 anos. Grande parte da população do país — jovens menores de 30 anos de setores vulneráveis — já se acostumou ao consumo de alternativas como carne suína ou de aves, após muitos anos de declínio no consumo de carne vermelha", destacou o empresário. No entanto, as vendas internas contrastam com o grande aumento nas exportações: durante o período, foram enviadas mais de 784 mil toneladas ao exterior, resultando em um aumento significativo de 12% em relação ao ano anterior. A carne que não é consumida pelos argentinos está nas mesas estrangeiras, principalmente nas famílias da China (que absorve 65% da demanda externa), Israel e Estados Unidos.

<><> O colapso das vendas

"Estamos vendendo cada vez menos carne, mas isso não é novidade. O que é novo é que, por exemplo, notamos que, no final do ano, muitas famílias optaram por não fazer um churrasco, uma privação muito forte pela tradição cultural argentina", disse à Sputnik Fernando Savore, presidente da Federação de Almaceneiros da província de Buenos Aires (centro).

Segundo um estudo do Centro de Economia Política Argentina (CEPA), a privação mencionada pelo empresário tem uma explicação: a perda de renda, o que leva ao consumo de produtos substitutos como carne de frango e suína. "Em 2024, pela primeira vez na história, o consumo de carne de frango quase igualou o de carne bovina, atingindo 44,5 kg per capita anual", indicou o relatório.

A queda tem a ver com a política econômica de austeridade do atual governo de Javier Milei. A O desemprego diminuiu, mas a taxa de informalidade tem crescido e os trabalhadores informais recebem, em média, rendimento 46% inferior aos registrados em empregos relativamente semelhantes, segundo Instituto Nacional de Estatística e Censos (INDEC) do país. Além disso, quase 60% dos trabalhadores informais não conseguem cobrir o valor da cesta básica com os seus rendimentos, enquanto no caso dos trabalhadores registrados o valor é de apenas 8%.

Para Savore, "o churrasco é um luxo que cada vez menos famílias podem se dar. Embora a inflação tenha caído, o preço da carne ainda está em níveis muito elevados: está claro que, à medida que isso não se recupere, será muito complicado manter os níveis de venda aos quais estávamos acostumados até pouco tempo atrás". Embora certas tendências de consumo que alteram a dieta típica da cultura nacional — como o veganismo ou o vegetarianismo —, a espiral descendente no consumo de carne que a Argentina enfrenta tem uma explicação estrutural: a queda da renda pelo sétimo ano consecutivo impacta diretamente o poder de compra das famílias. Assim como nos últimos três anos de mandato de Alberto Fernández (2019-2023), o salário mínimo passou a equivaler de 56 a 48 quilos de carne (uma queda de 14%), sob a presidência de Mauricio Macri (2015-2019), esse indicador havia sofrido um declínio de 60 a 55 quilos (8%), após a recessão que culminou com uma queda do poder aquisitivo dos salários superior a 17%.

Segundo Schiariti, o consumo de carne "vai continuar caindo até se estabilizar em níveis um pouco mais baixos por uma questão de preços, a menos que a situação econômica se inverta drasticamente e vejamos um forte aumento da renda, algo que ainda não aconteceu." No entanto, a persistente queda no consumo de carne bovina levanta uma dúvida sobre a sustentabilidade da emblemática tradição gastronômica. "Argentina é o maior consumidor de carne bovina per capita, muito à frente do resto do mundo. Além disso, somos o segundo maior consumidor de proteína animal no mundo, só atrás dos Estados Unidos", destacou Schiariti. "O que vimos nos últimos anos", apontou o empresário, "é uma queda gradual que provavelmente nos levará a nos estabilizar em sintonia com outros países, até próximos daqueles que não têm o churrasco como sua insignia", opinou.

 

¨      Javier Milei e a fábrica da pobreza na Argentina. Por Fernando Lionel Quiroga

Por detrás do disfarce da excentricidade – um disfarce performático, artificialmente projetado pelo novo modus operandi da extrema direita global – esconde-se o verdadeiro projeto do autointitulado anarcocapitalista Javier Milei. Ele aproveita-se da esperança do povo argentino, que clama por mudança em um país que, há décadas, vem aprofundando seus índices de pobreza extrema e indigência, segundo o Instituto Nacional de Estatística e Censos (INDEC). Segundo o instituto, a Argentina tem apresentado dados preocupantes em relação à pobreza na última década. Embora tal cenário varie em razão de diferentes contextos econômicos, as crises financeiras e os modelos econômicos explicam, em grande parte, a situação vivida pelo país.

Este é o contexto de uma Argentina arruinada pela elevadíssima taxa de inflação e recessão econômica que, traduzida na realidade social, significa insegurança alimentar, aumento dos índices de desemprego, indigência (pessoas que não têm acesso a uma cesta de alimentos capaz de suprir as necessidades diárias de energia e proteína) e o crescimento exponencial da pobreza na capital do país. No segundo trimestre de 2024, Buenos Aires alcançou o alarmante número de 989 mil pessoas em situação de pobreza, representando aproximadamente um terço de sua população, de acordo com dados do Instituto de Estatísticas e Censos da Cidade de Buenos Aires (Idecba). Esse cenário de total insegurança – não mais como algo distante, encontrado apenas em matérias de jornais, mas como uma realidade que invade diariamente as vidas das pessoas – obriga milhões de argentinos a deixarem suas casas por não conseguirem pagar as despesas básicas de sobrevivência. Dignidade é uma palavra distante da sociedade argentina contemporânea.

É desse ambiente de medo, fome e humilhação que a razão – solapada por fracassos e crises acumuladas na história recente do país – perde sua legitimidade como guia nas escolhas. Diante de um desespero brutal, o que resta é a aposta na sorte: a esperança de que, por uma brecha da história, possa surgir uma solução. Essa solução é frequentemente projetada na figura de um “salvador” ou “messias”, como já vimos em nossa breve passagem da necropolítica bolsonarista.

A extrema direita global aproveita-se dessa crise da razão para aprofundá-la, desacreditá-la e torná-la sem efeito. Por isso, sufoca a ciência e as universidades. A recusa ao conhecimento e o negacionismo são suas principais armas. A ignorância como ideologia é o expediente central da extrema direita porque, ao negar a razão, as decisões políticas voltam a ser questões de sorte ou azar.

Em um mundo onde o debate público é reduzido à lógica de influenciadores digitais e memes recheados de cinismo, as interpretações críticas tornam-se ainda mais marginalizadas. Governos como o de Javier Milei são exaustivamente chancelados por uma mídia tradicional que, em muitos casos, reverte sua função crítica para apoiar "grandes mentiras" – como o apoio incondicional ao genocídio do povo palestino pelo governo israelense. Essa narrativa ajuda a consolidar o avanço de modelos de governança apocalíptica pelo mundo.

A Argentina de hoje não é mais apenas o país do tango ou do futebol. É o país dos desvalidos, dos humilhados, dos famintos, desalojados e desnutridos. Esses aspectos se agravam em um cenário dominado pela alta inflação e por políticas de choque, como as propostas por Milei, que levam o povo a acreditar em uma narrativa “oficial” contraditória. Enquanto o custo de vida aumenta, os preços dos alimentos, da habitação e de outros bens essenciais disparam. A metáfora da "motosserra" utilizada pelo presidente Javier Milei para simbolizar o enfrentamento ao “Estado inchado” revela-se, na prática, um ataque direto às políticas sociais do país. Se em 2024, a situação já é de pura desilusão; em 2025, a guerra imperialista liderada pelo economista fake, o projeto de destruição dos direitos fundamentais do povo argentino seguirá em marcha. Marcha rumo ao apocalipse argentino.

O cenário não oferece muitas alternativas: ou o povo reage em massa, tomando as ruas do país, ou a fome e a epidemia de dengue que se alastra serão apenas o prenúncio de uma nação devastada pela pobreza extrema. Se ainda há um sentido pedagógico, apesar da catástrofe enfrentada pelo povo argentino, é o de que, no Brasil, não se pode perder a oportunidade histórica de expor ao mundo a anatomia da extrema direita, punindo exemplarmente o principal líder – Jair Bolsonaro - da tentativa de golpe contra a democracia.

 

¨      O que mudou na vida e na economia do país, um ano após o Plano Motosserra

Há pouco mais de um ano, a Argentina foi às urnas e escolheu a mudança. Quem venceu foi o polêmico Javier Milei, um ultraliberal de direita que prometia uma revisão completa da economia para resolver problemas crônicos, que se arrastam há anos. Logo nos primeiros dias, colocou em prática sua principal proposta de campanha, o “Plano Motosserra”, com cortes de todos os tipos: de gastos, de normas burocráticas e de tudo que Milei via como intervenção excessiva do estado no dia a dia da economia. Foram flexibilizadas regras trabalhistas e políticas de aluguéis. Empresas públicas foram privatizadas e funcionários públicos, demitidos.

Restrições a exportações deixaram de existir. Essas restrições costumam ser adotadas como uma forma de preservar a oferta e evitar o encarecimento de produtos, principalmente alimentos. O princípio dos liberais, porém, é deixar o mercado livre para operar como quiser e, além disso, mais exportações também impulsionam a moeda nacional contra o dólar. Também foram derrubados antigos congelamentos de preços e subsídios a serviços básicos, como transporte público, contas de água e luz. A ideia com tudo isso era reduzir os gastos do governo, liberalizar a economia, gerar maior entrada de dólares no país e aumentar a confiança no futuro da Argentina. E, claro, o principal: reduzir uma hiperinflação, que era de impressionantes 211,4% em 12 meses ao final de 2023.

A inflação cedeu e se tornou a grande vitória de Milei em seu primeiro ano. O índice mensal passou de 25,5% em dezembro de 2023 para 2,4% em novembro de 2024. Em 12 meses, ainda são 166%. Vieram também os superávits: pela primeira vez em 13 anos, a Argentina terá um ano em que arrecadou mais do que gastou. Depois de registrar superávit de 357 bilhões de pesos em novembro (cerca de US$ 337,43 milhões), 11° mês consecutivo de resultado positivo, o governo espera encerrar o ano com um superávit primário correspondente a cerca de 1,9% do PIB. Esse é um pilar fundamental das políticas de Milei, já que o país precisa urgentemente fazer reservas em dólar, mostrar que pode cumprir seus compromissos e é um porto seguro para investidores.  Mas esse resultado veio a duras penas para a população mais pobre. Com desemprego e preços em alta, a pobreza subiu e passou a atingir mais da metade da população — consequência direta dos cortes de subsídios e fim dos controles de preços, que encareceram transporte, energia, água e outros produtos e serviços básicos. Quando Milei tomou posse, eram 41,7% de pobres (12,3 milhões). Ao final do primeiro semestre de governo, eram 52,9% (15,7 milhões de pessoas). Com a paralisação da economia, causada pela motosserra, a atividade econômica desabou. No terceiro trimestre de 2024, o último que se tem dados divulgados até aqui, o Produto Interno Bruto (PIB) argentino teve queda de 2,1% em relação ao mesmo período do ano anterior. Deve fechar o ano com contração de 3,5%, segundo as projeções do Fundo Monetário Internacional (FMI). Mesmo assim, a popularidade de Milei continua alta. Por mais dolorosas que sejam as medidas, os argentinos parecem considerar que esse é um caminho necessário para uma melhora da economia e que o presidente ainda tem um tempo para reverter o jogo. Há, porém, quem tenha pouca esperança de que a vida vá melhorar. São esses os relatos que o g1 ouviu em Buenos Aires, capital da Argentina. São analistas, trabalhadores, empreendedores, empresários e estudantes que vivem no país, para entender como as mudanças na economia marcaram o primeiro ano de Milei – e o que esperar adiante.

<><> A fórmula de Milei para salvar a economia

A motosserra foi um símbolo da campanha de Milei em 2023, e não se pode dizer que o argentino não sabia o que viria pela frente. O pacote que leva seu nome é muito mais amplo, mas a direção é sempre a mesma: corte de gastos.

Entre as principais medidas, o pacote:

·        Eliminou os subsídios governamentais para serviços básicos, como luz, água e transportes públicos;

·        Eliminou uma lei que limitava os aumentos de preços em produtos da cesta básica nos supermercados;

·        Congelou obras públicas;

·        Demitiu milhares de funcionários públicos;

·        Diminuiu o reajuste dos salários, aposentadorias e pensões;

·        Iniciou estudos e processos de desestatização e privatização de empresas estatais;

·        Abriu a economia da Argentina para mais exportações e importações.

O maior impacto veio do fim dos subsídios às contas básicas e do controle de preços, que fizeram explodir a inflação em um primeiro momento. Em novembro de 2023, o índice foi de 12,8%, já altíssimo. No mês seguinte, primeiro de vigência das medidas, passou a 25,5%. Em março de 2024, a inflação argentina chegou ao pico de 287,9% na janela de 12 meses. "A eliminação dos subsídios de luz e gás geraram um aumento muito grande em contas essenciais para famílias e comerciantes. Isso gerou um repasse nos preços e pressão sobre toda a inflação", explica Carlos Bermani, professor de economia da Universidade de Buenos Aires (UBA). Ao mesmo tempo, o governo Milei congelou os reajustes do salário mínimo e paralisou obras públicas. Os custos subiram, a economia desacelerou e o desemprego subiu.

A diarista Erica Teijeiro sentiu o impacto do Plano Motosserra duas vezes: o custo de vida subiu para ela e para seus clientes. Ela acabou perdendo trabalhos porque seus contratantes também tiveram que reduzir o orçamento familiar. Sobraram três casas durante a semana, para sustentar seus dois filhos. Mas o grande dilema é que até trabalhar ficou muito mais caro: ela vive na cidade de La Matanza e precisa de três ônibus para ir e mais três para voltar de Buenos Aires, onde estão seus clientes. Sem os subsídios ao transporte, ela gasta mais que o dobro do que costumava. Com o que sobra do dinheiro que recebe, Erica consegue apenas pagar os serviços básicos e alimentação. “Já não compro carne, produtos lácteos e frutas e verduras, porque são os alimentos mais caros. Dependo muito de doações, muitas vezes. Menos ainda compro roupas ou calçados para mim ou para as crianças”, diz a diarista. Há casos menos dramáticos, mas que não deixam de sentir as mudanças. A estudante e servidora pública Victoria D’Astoli afirma que a vida se transformou, e é preciso fazer contas o tempo todo. “Desde maio, não vou ao cinema. Agora preciso escolher o tanto que vou colocar no Sube (cartão do transporte público) e torcer para que isso dure por uma ou duas semanas. Se chega a durar duas semanas, é uma glória”. É por situações como essa que Milei luta contra o tempo. O número de argentinos que vivem abaixo da linha da pobreza chegou a 15,7 milhões no primeiro semestre deste ano, atingindo 52,9% da população, de acordo com o Indec. Trata-se de uma alta de 11,2 pontos percentuais em relação ao segundo semestre de 2023.

O agente imobiliário Patricio Bernabé sentiu a baixa de consumo dos primeiros meses de 2024, que reduziram a busca por imóveis. Mas está otimista porque a desaceleração da inflação traz novas perspectivas. Aos 37 anos de idade, ele comenta que os argentinos de sua faixa etária “não sabem o que é viver sem inflação” e conta a dificuldade que é não ter referência de quando um produto está barato ou caro. “Você pergunta ‘quanto custa uma bebida cola?’. Não sei! Se eu não compro todo dia, não sei, porque vai aumentando e você perde a referência. Quando o cara vai falar o preço, você não sabe se é caro ou se é barato. Você paga”, comenta Patricio. “Eu acho que isso [a redução da inflação] é o melhor: você pode começar a planejar um pouquinho mais a sua vida, se tem que fazer um investimento, umas férias, uma viagem. Muda um pouquinho a sua cabeça”, diz.

Já Carolina De Maio, empreendedora que tinha uma casa lotérica, fechou seu negócio durante a crise e hoje vive como motorista de aplicativo, diz que, por mais que ainda tenha cautela com suas economias e um pouco de medo do futuro, “há uma esperança de tempos melhores”. “Tudo mudou muito rápido, por isso os primeiros meses foram muito difíceis. Mas eu estou otimista”, diz a motorista. “Aos poucos, tudo está se normalizando, as pessoas estão perdendo o medo da inflação e se atrevendo a gastar um pouco mais. Vejo que a minha vida vai, aos poucos, prosperando mais”.

<><> A paciência com Milei

Ainda há muito o que fazer, mas o controle da inflação é a base de sustentação de Javier Milei. Quando eleito, ele avisou que tudo isso aconteceria – e talvez por isso sua popularidade continue alta. Segundo a pesquisa mais recente da Opina Argentina, 53% da população aprova a gestão de Milei. No início do governo, eram 51%. Em seu discurso de posse, Milei disse que “não há alternativa ao ajuste e não há alternativa ao choque. Naturalmente, isso impactará de modo negativo o nível da atividade, o emprego, os salários reais, a quantidade de pobres e indigentes”. O presidente garantiu, porém, que o choque econômico seria o “último mal-estar antes da reconstrução da Argentina”. E boa parte dos argentinos acredita nisso, principalmente com a leve retomada do consumo da população e da atividade econômica.

Um dos setores mais afetados pela retração da economia foi a construção, tanto pelo freio do consumo como pela suspensão das obras públicas. O setor teve a maior queda percentual de trabalhadores e de empresas empregadoras. Entre novembro de 2023 e agosto de 2024, houve uma redução de 261.017 trabalhadores registrados (-2,65%) e uma queda de 12.322 (-2,4%) no número de empregadores entre todos os setores da economia, segundo o Centro de Estudos de Política Econômica da Argentina (Cepa). A construção perdeu 88.856 trabalhadores do setor privado, que representa uma queda de 18,6%. Já o número de empregadores registrou 1.447 empresas contratantes a menos, redução de 6,6%. Juan Bernabé, dono de uma empresa de construção, não nega que 2024 foi um ano muito difícil. O negócio consiste em comprar terrenos para construir imóveis, então ele precisa de investidores para tornar os projetos viáveis. Nos seis primeiros meses de governo Milei, a disparada dos preços de materiais de construção fez o setor sangrar, porque os fornecedores elevaram os preços rapidamente como forma de proteção. Os projetos ficaram inviáveis e tudo foi pausado. “A mudança repentina de regras fez com que muitos fabricantes de materiais de construção buscassem se proteger com aumento de preços, e isso levou a uma alta generalizada totalmente desmedida que impacta diretamente o custo da construção. Para nós foi muito difícil enfrentar os seis primeiros meses”, diz Bernabé.

O PIB argentino encolheu 5,1% no primeiro trimestre e 1,7% no segundo. Mas apresentou alta de 3,9% no terceiro trimestre em relação ao anterior, deixando para trás a recessão técnica. E um dado importante da composição do PIB deste terceiro trimestre é que o consumo privado das famílias e empresas apresentou uma alta de 4,6%. No dia a dia, a melhora já se percebe. A empreendedora Victoria Poggi, dona da cafeteria Demente, em Buenos Aires, conta que o negócio voltou a ter fôlego na segunda metade do ano. “Agora, os preços estão se estabilizando mais, e as pessoas voltaram a sair um pouco mais e consumir”, comenta. A empreendedora destaca também que sempre valorizou a qualidade da matéria-prima, então não podia reduzir os custos, “porque reduzir os custos implicava em usar uma matéria-prima pior”. Agora, com os preços mais estáveis, consegue planejar melhor e buscar inovação. “Eu acho que se tem um pouco mais de estabilidade e se pode projetar com os pés um pouquinho mais sobre a terra e com a esperança de que possa ser algo melhor”. O também empreendedor Alejandro Verbitsky, dono do bar de vinhos Trova, tem uma visão semelhante e conta que os meses de novembro e dezembro foram muito bons para o seu negócio. “Ainda não consigo dizer se foi melhor ou pior que (os mesmos meses do) ano passado, mas parece ser bem bom. A verdade é essa”.

Outro ponto que alimenta o otimismo é o comportamento do dólar no país. Por conta da crise inflacionária de anos, o peso argentino perdeu muito de seu valor. Neste contexto, o dólar é visto como a moeda forte na Argentina e, por isso, a moeda virou uma forma de proteção econômica para a população. Diferentemente do que acontece no Brasil, por exemplo, é comum que os argentinos façam suas poupanças em dólares, para evitar a desvalorização do dinheiro e a rápida perda do poder de compra. Contratos importantes também são acordados em dólar no país, como os de compra e venda de imóveis e empréstimos tomados por empreendedores e empresários para seus negócios. Assim, as partes envolvidas no acordo garantem a proteção do valor do que estão negociando em uma moeda segura. E por essa busca dos argentinos pelo dólar para garantir maior estabilidade em um ambiente de inflação descontrolada, o país convive há anos com um cerco cambial que limita o acesso da população à moeda americana, numa busca dos governos de evitar a saída de mais dinheiro do país.

A Argentina já teve cercos cambiais em outros momentos de sua história recente, também em meio a disparadas da inflação, e por isso a venda paralela de dólar é muito popular no país — o chamado “dólar blue”. Por ser extraoficial e não controlado pelo governo, o preço do dólar blue varia com a demanda e com a percepção das pessoas sobre a economia, enquanto a cotação do dólar oficial é decidida pelo governo. Isso é negativo para a economia porque cria distorções nos preços dos produtos e serviços, principalmente importados, já que a taxa de câmbio acessada pela população não é unificada e previsível e pode variar muito e muito rápido — alimentando ainda mais a inflação. No ano passado, perto das eleições, que aconteceram em outubro, o dólar oficial era cotado a pouco mais de 300 pesos, enquanto o dólar blue chegava aos 1.200 pesos. Em dezembro, quando Milei assumiu, ele promoveu uma desvalorização acentuada do peso, que levou a taxa oficial a cerca de 800 pesos, diminuindo a diferença entre as duas cotações. Também aumentou temporariamente os impostos de importação. A ideia era aumentar a entrada de dólares do país com as exportações de produtos argentinos para o exterior e reduzir a saída da moeda com a compra de produtos internacionais. O ministro da Economia do país, Luis Caputo, explicou que a ideia com essa medida era estimular os setores produtivos e aumentar as reservas do país.

<><> Os riscos para o plano de Milei

Com a inflação sob certo controle e superávits consecutivos, Milei tem vitórias que saíram de seu primeiro ano de mandato. A saga, porém, tem muitos outros capítulos. Para o analista financeiro Luis de Dominicis, o maior risco no radar é que a Argentina não consiga atrair investimentos o suficiente para recompor de maneira expressiva suas reservas de dólares e reaquecer a economia do país, depois de políticas tão severas de corte de gastos às custas do bem-estar da população. Os primeiros sinais são bons. O índice S&P Merval, principal índice acionário da bolsa de valores argentina, teve uma valorização de quase 180% em 2024. É um sinal importante de que investidores estrangeiros estão olhando o país com novos olhos. Além disso, muitas empresas nacionais e internacionais estão anunciando investimentos, principalmente em setores com potencial de exportações, como energia e mineração.

Outros dois riscos importantes vêm dos lados político e social. Milei sabe que, se a economia não concluir seu trajeto de recuperação em 2025, “a paciência e confiança das pessoas poderia acabar”, lembra Dominicis. A Argentina tem eleições para escolher novos deputados e senadores em 2025. Se o governo perder popularidade até lá, a composição do Congresso argentino pode atrapalhar os planos e travar a aprovação de propostas essenciais para os planos de Milei. Para Dominicis, a queda da inflação ajuda a proporcionar mais estabilidade e confiança para que a população volte a consumir, mesmo que aos poucos. Já os cortes de gastos devem ser recompensados com a confiança dos investidores, que já estão colocando dinheiro na Argentina.

 

Fonte: Sputnik Brasil/g1

 

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