Cocô de
pássaro pode ser a chave para prever próxima pandemia
Primeiro vêm os
caranguejos-ferradura. Erguendo suas conchas redondas semelhantes a tanques, eles
se arrastam para fora da Baía de Delaware, na costa nordeste dos Estados
Unidos, sob a primeira lua cheia de maio para acasalar e depositar seus ovos.
Logo depois chegam as
aves. Centenas de milhares de aves costeiras migratórias descem sobre essas praias,
grasnando e se alimentando vorazmente dos ovos ricos em proteína e gordura. Ao
longo de uma semana, algumas das aves dobrarão seu peso enquanto se preparam
para retomar suas jornadas entre a América do Sul e suas áreas de reprodução de
verão no Ártico. Até 25 espécies diferentes de aves param aqui a cada
primavera.
É uma maravilha
ecológica não vista em nenhum outro lugar do mundo e uma oportunidade única
para cientistas que buscam deter a próxima pandemia.
Este ano, o trabalho de
pesquisadores ganhou nova urgência à medida que um perigoso vírus da
gripe, H5N1, devasta
rebanhos de gado leiteiro e aves nos Estados Unidos. O mundo observa para ver
se a ameaça vai escalar. A pesquisa feita nesta praia pode ajudar a esclarecer
essa dúvida.
“É um verdadeiro tesouro
por aqui”, diz Pamela McKenzie, acenando para seu parceiro de pesquisa, Patrick
Seiler.
McKenzie e Seiler fazem parte
de uma equipe financiada pelos Institutos Nacionais de Saúde no Hospital
Infantil St. Jude, que vem visitando as praias da região há quase 40 anos para
coletar fezes de aves.
O projeto é idealizado
pelo Dr. Robert Webster, um virologista neozelandês que foi o primeiro a entender que os vírus da gripe vêm do
intestino das aves.
“Ficamos muito surpresos. Em vez de estar no
trato respiratório, onde pensávamos que estaria, o vírus estava se replicando
no trato intestinal e eles estavam excretando na água e espalhando”, explica
Webster, que agora tem 92 anos e está aposentado, mas ainda participa da viagem
de coleta quando pode.
As fezes, ou guano, das aves infectadas estão repletas de
vírus. De todos os subtipos conhecidos de influenza, apenas
dois não foram encontrados em aves. Os outros dois subtipos só foram
encontrados em morcegos.
Em sua primeira viagem à
Baía de Delaware em 1985, Webster e sua equipe descobriram que 20% das amostras
de fezes de aves que trouxeram continham vírus da influenza, e perceberam que a
área era um observatório ideal para rastrear vírus da gripe enquanto viajavam
em aves ao longo da rota migratória do Atlântico, que vai da América do Sul ao
Círculo Ártico no norte do Canadá.
Encontrar um novo vírus
da gripe aqui pode dar ao mundo um alerta precoce sobre um contágio iminente. O
projeto tornou-se um dos mais longos projetos de amostragem de influenza das
mesmas populações de aves em todo o mundo, segundo Richard Webby, que assumiu o
projeto iniciado por Webster. Webby dirige o Centro Colaborador da Organização
Mundial da Saúde para Estudos sobre a Ecologia da Influenza em Animais no St.
Jude.
Prever pandemias, na
visão de Webby, é um pouco como tentar prever tornados. “Para prever as coisas
ruins, seja um tornado ou uma pandemia, você precisa entender o normal agora”,
diz Webby. “A partir daí, podemos detectar quando as coisas estão diferentes,
quando muda de hospedeiro e o que impulsiona essas transições.”
Os EUA estão no meio de
uma dessas transições agora. Alguns meses antes da equipe do St. Jude chegar a
Cape May este ano, o H5N1 havia aparecido pela primeira vez em gado leiteiro no
Texas.
A descoberta de que o
H5N1 poderia infectar vacas colocou especialistas em gripe, incluindo Webby, em
alerta. Vírus da influenza tipo A como o H5N1 nunca haviam se espalhado em vacas antes.
Cientistas têm
acompanhado o H5N1 por mais de duas décadas. Alguns vírus da gripe não causam
sintomas ou causam apenas sintomas leves quando infectam aves. Esses vírus são
chamados de influenza aviária de baixa patogenicidade, ou LPAI. O H5N1, que
deixa as aves muito doentes, é chamado de HPAI, para influenza aviária
altamente patogênica. Ele devasta rebanhos de aves de criação como galinhas e
perus.
Nos EUA, rebanhos
infectados são submetidos à eutanásia, ou abatidos, assim que o vírus é
identificado, tanto para prevenir a propagação da infecção quanto para mitigar
o sofrimento das aves.
Não é a primeira vez que
os agricultores americanos precisam lidar com uma gripe aviária altamente
patogênica. Em 2014, aves migrando da Europa trouxeram os vírus H5N8 para a
América do Norte. O abate agressivo, resultando na morte de mais de 50 milhões
de aves, interrompeu aquele surto e os EUA permaneceram livres de vírus da
gripe aviária altamente patogênicos por anos.
A mesma estratégia não
deteve o H5N1, no entanto. O H5N1 chegou aos EUA no final de 2021 e, apesar da
redução agressiva da população de aves infectadas, continuou se espalhando. Nos
últimos dois anos, os vírus H5N1 também desenvolveram a capacidade de infectar
uma variedade crescente de mamíferos, como gatos, raposas, lontras e
leões-marinhos, aproximando-se de uma transmissão mais fácil em humanos.
Os vírus H5N1 podem infectar humanos, mas essas infecções até agora não se transmitem de pessoa para pessoa
porque as células em nosso nariz, garganta e pulmões têm receptores
ligeiramente diferentes das células que revestem os pulmões das aves.
No entanto, não seria
necessário muito para que isso mudasse. Um estudo recente na revista Science
descobriu que uma única alteração fundamental no DNA do vírus permitiria que
ele se acoplasse às células dos pulmões humanos.
A equipe em Cape May
nunca havia encontrado H5N1 nas aves que amostravam lá. Mas com o vírus se
espalhando em vacas em vários estados, eles se perguntaram onde mais ele
poderia estar. Teria chegado a essas aves também?
McKenzie e Seiler
pisaram cuidadosamente na praia pantanosa nesta primavera usando botas, luvas e
máscaras faciais. Seus bolsos estavam cheios de dezenas de cotonetes que usavam
para coletar guano branco fresco da areia e depositá-lo em frascos plásticos
que encaixavam habilmente entre os dedos. Os frascos voltavam para bandejas que
eram empilhadas ordenadamente em um cooler bege que Seiler carregava no ombro
enquanto se movia pela praia. Ao longo de uma semana, a equipe coletaria de 800
a 1.000 amostras.
Quaisquer vírus da gripe
nas amostras seriam sequenciados — as letras exatas do código genético dos
vírus seriam lidas — e carregadas em um banco de dados internacional, uma
espécie de biblioteca de referência que ajuda os cientistas a rastrear cepas de
influenza enquanto circulam pelo globo.
Os maiores excrementos
brancos pertenciam às gaivotas — gaivotas-risonhas de cabeça preta e
gaivotas-prateadas de cabeça branca — explica McKenzie. A equipe planejava
fazer um estudo separado focado em gaivotas este ano. “Existem alguns vírus que
só encontramos em gaivotas”, esclarece Seiler.
Algumas manchas brancas,
aquelas que ainda tinham linhas visíveis de ovos, pertenciam a pequenas aves
chamadas maçaricos-semipalmados.
A alguns metros de
distância, um bando de aves marrons chamadas pilritos estava sondando a areia
em busca de ovos de caranguejo com seus longos bicos pretos e observando
nervosamente Seiler e McKenzie enquanto a dupla seguia pela praia.
Algumas das amostras
coletadas seriam enviadas expressamente em gelo para Memphis, Tennessee, onde
fica a St. Jude, mas outras viajariam pela cidade até um parque de RVs, onde
Lisa Kercher estava esperando por elas.
Kercher, diretora de
operações laboratoriais da St. Jude, converteu um RV típico em um laboratório
móvel que estava estacionado entre outros campistas. Este ano, ela estava
testando-o em campo para ver se poderia agilizar o trabalho da equipe.
“Coletamos amostras no
campo e as enviamos de volta ao laboratório, e então temos um exército de
técnicos que trabalham diligentemente nessas milhares de amostras”, diz
Kercher. Pode levar meses até que a equipe saiba os subtipos exatos dos vírus
que encontraram. “Se eu estiver aqui em maio, por exemplo, não saberei os
subtipos desses vírus até setembro ou outubro”, completa.
O objetivo de Kercher é
examinar rapidamente as amostras em campo para ver se contêm vírus da influenza
ou não. A cada ano, cerca de 10% das amostras que eles trazem de volta contêm
vírus da gripe. Se ela pudesse enviar apenas as amostras positivas de volta ao
laboratório, elas poderiam ser processadas mais rapidamente.
Após o sequenciamento
completo das amostras este ano, eles não encontraram H5N1 nas amostras de Cape
May nem nas amostras de patos do Canadá.
“Não sabemos exatamente
o porquê”, diz Kercher em uma entrevista na semana passada. “Sempre ficamos um
pouco curiosos sobre isso.”
Depois que terminaram em
Cape May, Kercher levou o laboratório móvel para o Rio Peace, no norte de
Alberta, Canadá, para testar patos que se reproduziriam lá durante o verão. A
equipe faz essa jornada para testar patos no Canadá há 45 anos, mas este é o
primeiro ano em que usaram o laboratório móvel lá. Após a viagem a Alberta,
Kercher dirigiu seu trailer até o Tennessee para testar mais patos onde eles
hibernam durante o inverno.
Enquanto isso, o vírus
circulava ao redor deles, surgindo em rebanho após rebanho de vacas no
Meio-Oeste e depois na Califórnia. Dezenas de infecções humanas em
trabalhadores rurais haviam sido relatadas, mas as relacionadas ao gado
leiteiro foram majoritariamente leves. Nenhuma transmissão entre humanos havia
sido relatada.
Os surtos em bovinos pareceram
diminuir brevemente no final do verão. Então vieram as infecções humanas
graves.
Primeiro, houve o
adolescente em Vancouver, Canadá, hospitalizado com dificuldade respiratória.
Depois, mais recentemente, uma pessoa na Louisiana ficou gravemente doente com
H5N1 após exposição a um rebanho doméstico. Em ambos os casos, o vírus era de
um tipo ligeiramente diferente daquele que circulava em vacas.
O vírus identificado em
vacas é do genótipo B3.13, enquanto o encontrado em ambas as infecções humanas
graves é do genótipo D1.1, que tem circulado em aves selvagens e aves
domésticas, segundo os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA.
Houve outros casos de infecções D1.1 em humanos também, no estado de
Washington, em pessoas que auxiliavam no abate de aves. Esses casos não foram
tão graves.
Após não detectar o
vírus na primavera e no verão, a equipe do St. Jude moveu o laboratório móvel
para um local que nunca haviam tentado antes: uma enorme área de invernada para
patos-reais e outras espécies no noroeste do Tennessee.
Eles coletaram amostras
de 534 patos entre novembro e dezembro e encontraram o genótipo D1.1 do vírus
em cerca de uma dúzia de amostras.
“Encontramos a mesma
cepa que está causando todo o transtorno nas pessoas e nas aves selvagens”, diz
Kercher.
D1.1 é um grupo mais
novo de vírus. Os cientistas não sabem tanto sobre ele quanto aprenderam sobre
os vírus do gado. Mas as amostras da equipe, segundo eles, ajudaram a conectar
o vírus à rota migratória do Mississippi, que atravessa o centro do Canadá e
segue o Rio Mississippi até o Golfo do México.
Os cientistas ainda não
sabem quando a cepa surgiu e começou a circular como seu próprio tipo distinto.
Webby diz que eles analisarão os dados de vigilância que acumularam ao longo do
último ano para tentar descobrir isso.
O vírus parece ser
produto de um rearranjo, onde dois vírus infectam o mesmo animal ao mesmo tempo
e trocam genes. Vírus rearranjados tendem a ter mudanças maiores em seus
genomas do que vírus que mudam gradualmente conforme são transmitidos de animal
para animal.
Os dados de vigilância
que a equipe coletou recentemente contribuíram para um novo estudo preliminar,
que foi publicado na semana passada antes da revisão por pares.
O estudo foi liderado
pela Louise Moncla, uma cientista que estuda a evolução de vírus na
Universidade da Pensilvânia.
Ao analisar dados de
vigilância como os coletados pela equipe de Webby, a equipe da Penn descobriu
que o surto de H5N1 que começou em 2021 na América do Norte foi impulsionado
por oito introduções separadas do vírus por aves aquáticas selvagens
migratórias e aves costeiras ao longo das rotas migratórias do Atlântico e do
Pacífico.
Moncla e sua equipe
acreditam que o surto atual não foi contido pelo abate intensivo, como ocorreu
em 2014, porque aves selvagens continuam introduzindo o vírus em populações de
aves de criação e de quintais. Eles concluem que as aves selvagens são um
reservatório emergente do vírus na América do Norte, e que a vigilância das
aves migratórias é crucial para deter futuros surtos.
Webby e sua equipe dizem
que planejam continuar sua vigilância. Em maio, quando a primeira lua cheia
surgir sobre a Baía de Delaware, eles estarão de volta para fazer tudo
novamente. Kercher afirma que o que encontraram este ano na Baía de Delaware
foi semelhante ao que têm visto nos últimos 40 anos: aves costeiras estão
transportando vírus por longas distâncias.
“Elas param na Baía de
Delaware para reabastecer, e então os vírus são disseminados enquanto elas
estão paradas e depois os carregam novamente”, diz Kercher. Não há como saber o
que está por vir ou se o vírus H5N1 finalmente sofrerá mutações suficientes
para se tornar um perigo para as pessoas. Se isso acontecer, segundo a
pesquisadora, eles estarão vigilantes.
Fonte: CNN Brasil
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