Rafia Zakaria: “O
problema do feminismo branco é acreditar que a cultura ocidental é a mais
adequada para a igualdade”
Por trás de um
título um tanto provocativo – Contra el feminismo
blanco (editora Continta me tienes) - há um livro para pensar e
aprender. É assinado por Rafia
Zakaria,
uma advogada feminista paquistanesa, escritora, colunista em diversos meios de
comunicação, que cansada de ver como o racismo e a branquitude são
reproduzidos na academia, no ativismo, nas ONGs e também no feminismo, propôs-se a
escrever um manual não apropriado para os ofendidinhos ou ofendidinhas
ocidentais.
Zakaria escreve
a partir da experiência concreta e de todo o conhecimento e experiência
acumulado, não só da teoria, mas da prática, que ela afirma ser fundamental,
acima de noções elitistas do feminismo que distanciam muitas mulheres dele. Há
algumas semanas, a advogada e escritora esteve em Madrid para participar do
ciclo de pensamento organizado pela associação Mulheres da
Guatemala e La Casa Encendida.
<><> Eis
a entrevista.
·
Como
você define o feminismo branco e por que acabar com ele?
Um dos conceitos
centrais do livro é a ideia de branquitude, não no sentido da cor da pele,
mas como um sistema de dominação. A branquitude é o sistema de
colonialismo e subjugação, o desejo de manter esse sistema e a sua centralidade
no nosso mundo, de modo que, direta ou indiretamente, o status quo seja
mantido. Implica colocar as pessoas brancas essencialmente no centro e
priorizar as suas preocupações e agendas.
A razão pela qual
escrevi este livro é que sentia que havia muitas interações atravessadas pela
raça ocorrendo, mas, no entanto, funcionavam sob a ideia de que em geral se dá
em igualdade de condições, com a mesma quantidade de poder. E isso estava
completamente errado. Hoje em dia, é muito raro que alguém seja abertamente
racista, a maior parte do racismo acontece sob a superfície.
Portanto, este conceito busca criar um vocabulário que permita que isso venha à
luz para que as pessoas entendam que todas as nossas interações estão repletas
de diferenças de poder e se não as reconhecemos, então, participamos disso.
·
Como
você diria que o feminismo branco funciona, com quais formas específicas a
branquitude é reproduzida, também no feminismo?
Um dos principais
problemas é que as mulheres brancas assumem que a cultura branca, ou seja, a
cultura da Europa Ocidental e norte-americana, é mais adequada à
igualdade de gênero e à liberdade das mulheres do que outras culturas. Vou dar
um exemplo que acabou de acontecer comigo. Há alguns dias, eu estava
conversando com um grupo de mulheres, a maioria delas brancas, e me perguntavam
onde eu estive recentemente. Contei que acabava de voltar do Catar e
imediatamente uma delas disse: ‘oh, a situação das mulheres lá deve ser muito
ruim, deve ter sido difícil para você estar lá’.
Quando as pessoas
ficam sabendo que sou muçulmana, sei que começarão com: ‘o que você acha do
véu?’. Não consigo dizer para você o número de vezes que, como mulher parda e
mulçumana, sofro esta suposição de que venho de uma cultura que é extremamente
repressiva, onde as mulheres não têm ideia de como lutar pela sua liberdade,
então, temos que fazer isso por elas e lhes dizer o que fazer.
Não acredito que as
mulheres brancas tenham uma intenção maliciosa ou que façam isso para que eu me
sinta inferior, mas agem assim. Expõem a suposição de que outras mulheres são
de alguma forma inferiores e têm menos ideia do que é ser feminista, quando a
verdade é que as mulheres nessas culturas, como com as que cresci
no Paquistão, lutam tanto para sobreviver como mulher que são lutadoras
melhores, grandes e fortes, porque sabem o que é enfrentar os homens o tempo
todo.
Existem muitas
mulheres brancas que tendem a falar muito e a ocupar todo o espaço, e é muito
difícil para elas ceder esse espaço para que as mulheres pardas, negras,
asiáticas etc. também possam falar. Embora essas mulheres sejam a maioria, têm
bem pouca voz dentro do movimento
feminista global.
·
Você
dá o exemplo do sufragismo, que sempre aparece como um marco na história do
feminismo, conforme costumamos ouvir e relatar.
Se sabemos alguma
coisa sobre o sufragismo é, claro, sobre o sufragismo branco.
O feminismo não começou quando as mulheres brancas decidiram lutar
pelo voto ou na Revolução Francesa. Essa é justamente a questão: que marco
consideramos feminista? Se você tem uma mulher branca e olha apenas para as
características de sua vida e de si mesma, e se essas são as únicas mulheres em
que você está pensando quando pensa no feminismo, então, é isso que você
encontrará, pois outras características que mulheres pardas, negras etc. podem ter
nem sequer fazem parte do marco, então, ficam de fora.
Começar o seu marco
com o movimento sufragista deixa de fora milhões e milhões de
mulheres e muitíssima história. A consequência, e digo isto como alguém que
cresceu no Paquistão, é que se você é uma garota paquistanesa pensa que
ali de modo algum houve feministas, que todas estão na América ou
na Europa. Isto é simplesmente incorreto, e se estamos tentando criar
um movimento feminista que seja inclusivo, mas continuamos agindo
assim, naturalmente muitas dessas mulheres e garotas dirão: ‘não temos nada a
ver com isso, não se aplica às nossas vidas’. Quando você cria uma história que
deixa tanta gente de fora, naturalmente essas pessoas não vão se interessar
pelo propósito dessa história.
·
No
livro, você faz uma diferenciação muito interessante entre os termos ingleses
‘expertise’ e ‘experience’, que em espanhol seria como diferenciar entre as
mulheres que são especialistas no sentido mais teórico, de ler, escrever,
estudar, e aquelas que têm experiências no feminismo, quem vivem a partir de
suas feridas e vivências. Quais são as consequências de criarmos essa
diferença?
Comecei a minha
carreira como advogada, trabalhando com mulheres em um refúgio para vítimas de
violência. Tinham perdido suas casas, estavam lá com seus filhos, não sabiam o
que aconteceria no futuro e a elas se pedia que demonstrassem um grau incrível
de força para basicamente ser capazes de sobreviver. Existem milhões de
mulheres em todo o mundo que vivenciam isto em um nível ou outro.
No entanto, ao
mesmo tempo, minhas experiências como estudante de pós-graduação em aulas de
teoria feminista eram muito diferentes, pois não se falava dos desafios reais
que as mulheres enfrentam no dia a dia. Havia conversas teóricas muito
profundas sobre o que é o feminismo e sobre se deveríamos incluir
isto ou aquilo. Não estou dizendo que essas conversas não sejam importantes,
mas me sentia frustrada porque acreditava que era urgente falar sobre o que as
mulheres precisam e merecem da sociedade. E não havia urgência nessas
conversas.
Tinha a sensação de
que essas mulheres se sentiam cômodas em seu papel de teóricas. Também via que
no caso das mulheres que estavam criando um importante discurso feminista
antirracista dentro do mundo acadêmico, seu trabalho não vinha à luz. Em última
instância, queria ressaltar que as mulheres que sobrevivem a estas situações
difíceis, suas vozes, devem ser fundamentais para o feminismo.
·
Considera
que essa diferenciação que se faz está de alguma forma relacionada com as tensões
e debates feministas dos últimos anos, com a 'luta' para demarcar qual deve ser
a agenda feminista e quem pode falar em nome do ‘verdadeiro’ feminismo?
Absolutamente. Em
inglês, a palavra que usamos para isso é gatekeeping, o que significa que
essencialmente estão buscando controlar quem pertence e quem não pertence. Isto
acontece de muitas formas, por exemplo, quando se diz às mulheres que precisam
estudar feminismo ou que a sua compreensão das partes teóricas do feminismo é
falha ou que não conhecem a definição de feminismo.
Todas essas
respostas me parecem discriminatórias e excludentes. É uma forma de manter as
mulheres fora do feminismo, de intimidá-las para que guardem silêncio,
porque, então, pensam: ‘talvez eu não saiba nada sobre feminismo’. Tira
delas a confiança para falar e participar. Por isso, quando as pessoas me
perguntam qual é a definição de feminismo, uso uma muito simples: qualquer
pessoa que esteja comprometida com a justiça igualitária de gênero e com a
transformação das instituições sociais, políticas e culturais para que reflitam
essa igualdade. E a prática é crucial. Isso é tudo.
As mulheres devem
ser capazes de falar sobre as suas experiências e se conectar a partir delas. E
as mulheres que têm menos poder na sala são as que mais deveriam poder falar,
porque são as que mais precisam que a sua voz seja ouvida. Seria bom se algumas
pessoas parassem de se preocupar tanto com a definição de feminismo e
vissem como diferentes tipos de discriminação, alienação e subordinação interagem
em suas vidas.
·
Esta
forma diferente de entender ou definir o feminismo está na base da disputa
pelos direitos trans, a autodeterminação de gênero e o queer? Ou seja, é a
tentativa de definir e controlar o que é o feminismo que está condicionando
alguns a apontar isso como um problema, uma espécie de inimigo para as
mulheres?
Existe uma conexão
muito importante. Pessoalmente, penso que toda a controvérsia em torno
dos direitos trans é uma distração. O verdadeiro perigo para as
mulheres não são as mulheres ou os homens trans. Isto que se repete para as
mulheres nos esportes, por exemplo. O fato é que as oportunidades para as
categorias femininas de todos os esportes são muito pequenas em comparação às
que os homens têm.
Então, uma forma de
abordar a questão seria, talvez, aumentar a quantidade de recursos disponíveis
para o esporte feminino. Mas, é claro, ninguém fala sobre isto porque é muito
mais fácil que as mulheres briguem entre si e peçam para definir o que é isto
ou aquilo. É parte da forma como o patriarcado cria
ansiedade interna entre as mulheres, mesmo pelo pouco que possuem. É uma
mentalidade de escassez que acontece quando você é subjugada por muito tempo.
Quero dizer, é
assombroso pensar diante de todas as coisas que estamos vendo - por exemplo,
imagens ao vivo de Marte - que ainda estamos em uma situação em que
as mulheres precisam discutir se é importante para elas participar do conselho
da sua empresa, enquanto tantos homens sentem a necessidade de se afirmarem e
excluírem as mulheres da tomada de decisões, de posições importantes e da
formulação de políticas.
Parece um anátema,
mas essa é a nossa realidade. E é uma realidade urgente porque estamos em um
momento de transformação. Em todo o mundo, os sistemas políticos estão mudando
a importância que damos à democracia, à igualdade. E se nós, mulheres, não
apresentarmos ao menos alguma aparência de frente unida, na qual insistamos em
manter os nossos direitos, será um mundo muito sombrio.
O nível de misoginia no mundo
neste momento parece ser maior do quer era em tempos anteriores. Não é só o
tipo habitual que sempre existiu, sinto que há muita raiva entre os homens e o
desejo real de provocar danos e ver as mulheres subjugadas.
·
Nos
últimos anos, o termo “empoderamento” se tornou um “clássico” dos encontros,
das políticas e das medidas sobre igualdade e mulheres. Você é muito crítica em
relação à evolução desse termo e à sua aplicação. O que aconteceu com o
empoderamento?
Eu o descreveria de
duas maneiras. Por um lado, o termo provém originalmente de um coletivo de
mulheres indianas que o definiu como o movimento para transformar as
instituições sociais, culturais e políticas de modo que reflitam a igualdade de
gênero. Disto passou a ser adotado pela ONU e fazer parte de instrumentos
transnacionais. O problema é que deixou de ser uma palavra que tinha
significado para se tornar uma moda que soava bem e que todo mundo queria
colocar em seus documentos.
Agora, pode
significar qualquer coisa, da compra de um determinado tipo de sutiã esportivo
a lutar contra a guerrilhas armadas na Nigéria. Quando um termo se dilui
dessa maneira, infelizmente, provoca muito pouco impacto. Por isso, não sou
mais uma grande fã da palavra empoderamento.
Por outro lado, sou
colunista de um jornal paquistanês desde 2009. Durante grande parte
da guerra contra o terrorismo, eu estive lá e foram investidas quantias
incríveis de dinheiro no Afeganistão e
no Paquistão nesta ideia de empoderamento. Era uma situação
muito difícil: como feminista, você dirige um refúgio e, de repente, o governo
dos Estados Unidos quer oferecer 40 milhões e você quer aceitar, mas,
ao mesmo tempo, era um feminismo ‘de gotejamento’. Ou seja, você coloca
dinheiro de cima e isso permite fazer coisas, mas não há aceitação dos
interessados, de baixo. Assim que os Estados
Unidos saíram
e terminou o subsídio, o projeto acabou.
Colocaram milhões,
por exemplo, em projetos para que as meninas afegãs pudessem aprender a andar
de skate ou a jogar basquete ou coisas que são boas, mas se falamos de uma
sociedade na qual as mulheres não têm educação básica e vivem em zonas muito
distantes, separadas umas das outras, sem cuidados básicos de saúde, então,
essa priorização está errada. Por que priorizam que joguem basquete, em vez de
que recebam as vacinas básicas? Por um lado, você bombardeia a sua aldeia e,
por outro, decide que vai construir uma escola em algum lugar.
·
Entende,
então, que isso desacreditou a ideia de empoderamento...
Manchou a ideia
de empoderamento e de feminismo para toda uma região do
mundo, de modo que agora se você está falando sobre os direitos das
mulheres, é algo controverso e considerado inerentemente pró-estadunidense.
Este foi o outro motivo pelo qual cheguei à ideia da branquitude, porque o
que eu tentava demonstrar é que aquilo que rejeitam é a branquitude, não
o empoderamento das mulheres. Quando se fala ou se debate os princípios
feministas, imediatamente você é considerada pró-ocidental, pró-estadunidense,
anti-Paquistão, anti-Afeganistão.
Por isso, é muito
importante separar essas ideias, porque é perfeitamente normal que as pessoas
sintam o que sentem em relação à branquitude e ao colonialismo, porque essa tem
sido a base da sua subjugação. Mas dizer que todo o discurso sobre
a emancipação das mulheres é de alguma forma ocidental é incorreto.
Então, agora, o trabalho dentro destas sociedades tem de ser, e está
acontecendo, observar as mulheres dentro de suas próprias culturas e saber que
travam estas lutas há muito tempo e criar uma espécie de narrativa indígena do
feminismo.
Fonte: Entrevista
para Ana Requena Aguilar, em El
Diario.
Tradução do Cepat para IHU.
Nenhum comentário:
Postar um comentário