Histórias que
destacam o poder da cura e do recomeço
Recomeçar,
dar uma nova chance para si mesmo, um ato que exige um bocado de coragem e
muita persistência. "Perdi minha face, e a face é a identidade da
pessoa", constata Gaivota Naves. Para Kauã, de 10 anos, recomeçar tem o
significado de renascer. "No último sonho que tive, eu falei com Deus e
Ele disse que ia me dar uma nova oportunidade, que não tinha chegado a minha
hora". Para Evaldo Saraiva, a palavra remete ao frescor de um sonho que
começa a ser realizado. Cada um ao seu modo, esses brasilienses vivem a
concretude de escrever a própria história a partir de vivências marcantes, e
com todos os desafios de construir uma nova relação consigo mesmo e com os
outros.
A
noite de 13 de outubro passado era como uma outra qualquer. A família de Kauã
Pereira, 10 anos, saiu para jantar em um restaurante no Riacho Fundo II. Um
cliente decidiu que sairia sem pagar a conta. Ao ser impedido pelo segurança,
abriu fogo contra o trabalhador e uma bala atingiu a criança na cabeça,
deixando-o em coma durante uma semana. "Foram dias muitos difíceis, muito
angustiantes e dolorosos", declara a mãe de Kauã, Michelle Pereira.
Enquanto
o menino lutava pela vida no hospital, familiares e amigos se agarravam à fé,
mesmo com os médicos acreditando que dificilmente ele não sobreviveria.
"Foram muitos grupos de oração, muitas campanhas e muita gente
intercedendo pela vida dele. Na época eu me aproximei muito da Josy, mãe do
Jorny, o segurança que faleceu no dia. Apesar do momento de luto que ela estava
vivendo ela me deu muitas forças", completa.
E
o milagre aconteceu. Em 30 de outubro, Kauã deixou o Hospital de Ceilândia. A
cena do menino de joelhos, braços abertos, cabeça erguida em direção ao
céu agradecendo a Deus comoveu o Distrito Federal. A experiência do coma
foi agitada. Kauã conta ter tido vários sonhos. Um deles, com Deus. "No
último sonho que tive, eu falei com Deus e Ele disse que ia me dar uma nova
oportunidade, que não tinha chegado a minha hora. Aí eu acordei. Ainda não
conseguia falar direito, não estava completamente recuperado, mas sobrevivi".
Para
o garoto, sair do hospital foi como ganhar a liberdade de novo. Foram 18 dias
sem ver a luz do sol. "Todos os dias agradeço a Deus por esta nova
oportunidade", diz. Os dias seguintes exigiram paciência e muito
esforço. O pequeno teve de reaprender a andar e a falar. Apesar da recuperação,
Kauã ainda não pode retomar a sua paixão: jogar bola. "Para nós, foi como
se ele tivesse nascido de novo, porque realmente teve que recomeçar",
comenta Michelle.
O
próprio Kauã revela sua empolgação em retornar às quadras e realizar um grande
sonho. "Não vejo a hora de voltar a jogar. Meu maior sonho é conhecer o
Neymar, nem que seja apenas por um vídeo. Sou muito fã dele, ele é meu ídolo.
Isso me tornaria a pessoa mais feliz do mundo", declara emocionado.
·
O
frescor de sonhar
Entrar
na universidade trouxe um sopro de frescor à vida do cearense Evaldo Saraiva.
"Chego à Universidade de Brasília (UnB) e sento no chão com a molecada,
embora peça uma alavanca para me levantar depois", conta, aos risos, o
analista de sistemas. Lá, ele cursa matemática. Faz parte da primeira turma do
UNB 60 , um processo seletivo para pessoas idosas.
Nascido
em Quixeramobim, interior do Ceará, Evaldo é casado com Leda Maria de Sousa,
72, e pai de três filhos: Marllus, Igor e Iuri. Luisa, a única neta, é o xodó
do casal, e suas fotos ocupam quase uma parede inteira do apartamento. Evaldo
tem uma jornada de 8h diárias num banco privado de Brasília.
Leda,
cozinheira de mão cheia, cuida da casa e fica abismada com a disposição do
marido em trabalhar e estudar a essa altura da vida. "Às vezes ele vai
dormir meia noite. Chega da faculdade e ainda vai pegar os livros. Quando é 8h,
eu acordo e a mesa (do café da manhã) já está pronta. Eu não teria esse
pique. Acho muito bonito da parte dele", elogia.
A
decisão de entrar na UnB aos 72 anos foi de supetão. Sabendo do desejo do
marido em fazer um curso superior, Leda não teve dúvidas quando viu uma
reportagem na tevê sobre o programa da UnB para pessoas com mais de 60 anos.
"Eu disse, 'venha, benzinho, venha! Olha, tem vestibular na UnB para
idoso. E hoje é o último dia para inscrição!'".
Evaldo
não perdeu um minuto sequer. "Achei muito nobre e bonito da parte dela. É
um desprendimento dela querer me proporcionar essa realização, porque tivemos
que abrir mão de outras atividades que poderíamos fazer juntos na nossa faixa
etária", reconhece.
O
desejo era tanto que ele — egresso de Letras, que cursou até o 4º semestre e
teve que abandonar —, optou pelo curso com a menor relação candidato/vaga.
"Eu gosto de matemática. Não sou um 'cabeção', como dizem por aí, mas
gosto de desafios. Minha vida sempre foi cheia de desafios", diz.
Entre
os candidatos, ele passou em 3º lugar. "Infelizmente, os outros
abandonaram. Um por problema de saúde, os demais, eu não sei", lamenta. Na
turma de Evaldo, tem estudantes de diferentes perfis. Muitos com idade para
serem netos dele. "A rotina é maravilhosa, com um clima
descontraído. Uns chegam de pijama, outros de chinelo, paletó… é uma liberdade
de expressão muito grande", encanta-se.
O
caminho até a formatura é longo. Faltam cinco anos para Evaldo pegar o canudo.
Uma jornada que ele pretende seguir ao lado da mulher e incentivadora. "A
Baixinha (como ele a chama carinhosamente) me acompanha desde o 1º dia. Ela
estava comigo quando a UnB convocou todo mundo no auditório. Pode ver por aí
que tem foto nossa em algum lugar".
·
Salva
pela música
"Perdi
minha face, e a face é a identidade da pessoa". Assim começa a entrevista
com Gaivota Naves, cantora, atriz e designer gráfica. A frase não tem sentido
figurado. Ela é literal mesmo. Em janeiro próximo completa oito anos de um
acidente gravíssimo no qual ela teve 80% dos ossos do rosto esmagados pelo
choque com o volante. Sobreviveu por um milagre, disseram os médicos. Foram três
anos de cirurgia para reconstrução e muita terapia.
"Foi
um período muito complicado de entender. Quando perdi minha face, não sabia se
eu voltaria a cantar porque a voz acontece pela estrutura do rosto",
relembra. Três meses depois do acidente, Gaivota teve outra perda brutal: o
namorado, melhor amigo e parceiro de trabalho, o músico Pedro Souto, teve um
aneurisma e morreu nos braços da cantora. "Lidar com nossa própria
morte e vencer é mais fácil do que lidar com a morte de alguém que a gente
ama", diz.
Para
continuar vivendo, ela mergulhou na música, uma grande paixão que salvou sua
vida. Foram ao menos cinco anos de luto. Até o momento em que ela decidiu que
precisava sair daquele longo processo de dor profunda. "Me lembro que eu
parei e elaborei. Falei assim: 'vou sair do luto conscientemente. Já vivi e
agora eu decido, com plena consciência, que vou sair dele para honrar essa
pessoa onde quer que ela esteja. E também para ser justa comigo. Sou uma mulher
com 30 anos, vou viver mais uns 60. Preciso viver bem e cuidar de mim, estou
viva'".
Gaivota
nasceu em Brasília, mudou-se com a família para Aracaju, em Sergipe, voltou
para a capital um tempo depois, morou uma temporada em São Paulo, mas sua base
sempre foi o Quadradinho. O (re) batismo com nome social e artístico
ocorreu há mais de uma década protagonizado pelo dramaturgo uruguaio Hugo
Rodas, com quem trabalhou. "Eu sou muito franzina, magrelinha e uso muito
os braços para me expressar, jogo para cima, para o lado, giro, então, ele
gritava comigo: 'Voa gaivota, voa, gaivota'. Hoje, até minha mãe me chama por
Gaivota", conta.
E
Gaivota continua alçando voos. Aos 36 anos, a cantora tem uma rotina de shows
com a banda Joe Silhueta e divide um apartamento decorado com muitos livros e
discos, com o também músico Pedro Sampaio.
Entre
tantas lições impostas pela dor, ela aprendeu a dar um novo significado à
própria vida. "Hoje eu me sinto muito mais forte do que antes do acidente.
Todas as experiências que vivi, agregaram força à minha produção artística. Se
aquilo não me derrubou, não há mais muita coisa que me derrube",
brinca.
Lidar
com a própria imagem, foi um desafio, especialmente em uma sociedade da
ditadura dos corpos rotulados como perfeitos. "Muitas de nós não se sente
bonita, capaz, suficiente por uma série de razões. Vivemos nessa sociedade
machista, patriarcal e opressora que mais mata mulheres. Tem que ter o corpo
assim, o nariz assado, alta, magra.. Ter rosto deformado, corpo estranho em
muitas partes, virou uma linguagem para o meu trabalho, uma forma também de
falar sobre o pertencimento dos diferentes corpos".
Passados
quase oito anos desde o acidente que mudou sua vida, Gaivota se sente curada de
todos os lutos. E hoje, escolhe suas memórias. "A memória é uma coisa que
começa a escorrer pelas mãos, você vai tendo que escolher, negociar com sua
memória o que fica, que machuca e juntar esses caquinhos", diz.
"Espero que outras pessoas possam sentir um abraço forte e entender que o
amor fica, a dor passa, o amor fica", finaliza.
Fonte: Correio
Braziliense
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