sábado, 11 de janeiro de 2025

Celso Lungaretti: Brasil continua em débito com muitas outras famílias, inclusive as de Marighela e Lamarca

Eunice Paiva e Zuzu Angel tiveram eternizadas nas telas as suas corajosas lutas por entes queridos que foram exterminados pela ditadura dos generais. 

Merecem o respeito e gratidão dos melhores brasileiros, assim como todas as famílias que passaram por dramas semelhantes, durante a imensa tragédia do totalitarismo que se abateu sobre nosso país no período 1964-1985.

Nunca deixarei de lamentar quão pouco pude fazer por três dessas famílias.

Como a do meu colega desde o primário e companheiro de lutas desde o movimento secundarista, Eremias Delizoicov.

Quando terminou minha temporada no inferno e voltei em frangalhos às ruas, duas vezes encontrei seu pai no ponto de ônibus. Em ambas ele quis (praticamente me obrigou) que fosse à sua casa, para ajudar a alimentar as esperanças de que o Eremias ainda estivesse vivo, foragido pelo mundo.

Tudo isto porque a repressão anunciou inicialmente a morte de outro companheiro e só um ou dois dias depois retificou a informação. Como os verdugos se negaram inclusive a entregar ao sr. Jorge os restos mortais do filho (provavelmente para evitar que constatasse as dezenas de disparos com os quais estraçalharam seu corpo, uma bestialidade a mais dentre tantas que cometeram), o sr. Jorge e a esposa continuavam sonhando com um impossível happy end.

Naquelas duas tardes em que passei horas na casa deles, resisti à tentação de simplesmente dizer-lhes o que queriam escutar. Aconselhei-os a esquecerem tal ilusão e buscarem a felicidade possível no que restara da família: eles dois e o filho mais velho, que não participou da luta.

Então, lembro-me dessas ocasiões como um interminável sofrimento a três, do qual eu tinha a obrigação de participar até poder ir-me embora, arrasado, para voltar a juntar os cacos da minha própria existência.

Como a família do Massafumi Yoshinaga, que eu nem sequer conhecia (mas um tio dele me contatou no final de 2005, quando eu estava lançando o Náufrago da Utopia).

Foi então que tomei conhecimento de quanto o Massa & família sofreram com a estigmatização por parte de pessoas de esquerda mais rápidas em condenar as vítimas do terrorismo de Estado do que em lutarem contra ele quando tiveram a oportunidade de fazê-lo.

Percebi que o tio Akitoshi queria de mim uma espécie de desagravo e isto, pelo menos, estava ao meu alcance. Divulguei vários artigos deplorando o abandono ao Massa quando ele decidiu sair da organização e foi largado no mundo sem grana, sem ajuda nenhuma para deixar o país, sem ter sequer onde esconder-se (chegava a dormir nas barracas do Mercado Municipal!), depois de haver se tornado procuradíssimo pela repressão graças à sua atuação na VPR.

Era desesperadora sua situação quando aceitou o conselho de um antigo guru, que intermediou sua rendição ao Dops, com a garantia de não ser torturado. Teria de participar de showzinhos montados pelos serviços de guerra psicológica das Forças Armadas, sendo solto logo em seguida, mas não para reencontrar, como sonhava, o calor do povo, e sim para viver execrado em seu próprio país, a ponto de enlouquecer (tinha alucinações de que seus pensamentos estariam sendo captados pela repressão) e de tentar três vezes o suicídio, até obter sucesso!

Fiz o máximo que pude, com meu teclado, para que ele passasse a ser visto com um pouco de compreensão, como mais um jovem destruído pelo arbítrio então vigente no Brasil. E me orgulho de haver rebatido firmemente o uso calhorda de sua desgraça por um antigo companheiro de movimento secundarista, depois economista burguês (um dos pais do Plano Cruzado).

Num momento em que estava praticamente esquecido em sua profissão, tal indivíduo divulgou um artigo choramingas numa revista chique, não se vexando de atacar a memória de um morto para valorizar a dele própria. Desafiei-o para uma polêmica, mas ele preferiu ignorar. Refutei o artigo, mas a revista não concedeu direito de resposta. De qualquer forma, impedi que tal baixeza passasse inteiramente em branco.

Por último, indignei-me ao perceber que as viúvas da ditadura, com o apoio da imprensa canalha, lançavam uma ofensiva avassaladora contra a correta decisão da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, de fornecer uma reparação à altura do sacrifício do comandante Carlos Lamarca, executado por agentes do Estado brasileiro quando estava rendido e combalido.

Também dessa vez pude somar minhas forças à da família que travava luta tão desigual, pouco apoio recebendo dos antigos companheiros do Lamarca. Cumpri integralmente o meu dever de solidariedade para com o combatente tombado.

De resto, não é só o reconhecimento dos pósteros a partir de filmes e livros que as famílias dos companheiros merecem, mas também o reconhecimento do próprio Estado brasileiro, que insiste em não colocar Carlos Marighella e Carlos Lamarca como dois dos maiores heróis que este país já produziu.

É ultrajante que eles não tenham seus nomes acrescentados às mais de 60 figuras históricas que já constam do Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. Trata-se de outra dívida que a nação brasileira tem para com as famílias daqueles que mais a honraram com suas ações e com o sacrifício de suas vidas.

E que não será paga de maneira branda, agora que a direita manda e desmanda no Congresso Nacional. Mas, se evitarmos todas as batalhas difíceis de vencermos, perderemos a guerra de forma cada vez mais acachapante, como vem acontecendo desde 2016.

 

¨      A certidão de óbito da ditadura e o show que não pode parar

A guerreira, procuradora da República, enxugou as lágrimas, da perda do filho querido, e partiu para a luta. Convocada para presidir, novamente, a Comissão de Mortos e Desaparecidos, Eugênia Gonzaga tirou o luto e voltou à linha de frente.

Desde que atuou no caso de Perus, décadas atrás, passou a ter uma legião de filhos, os desamparados pela ditadura, os que tiveram entes queridos desaparecidos. Sua dor era sua dor. E lutou com denodo, inclusive enfrentando as bestas feras do bolsonarismo, em um episódio histórico de resistência, quando foi à mídia questionar as acusações grotescas de Bolsonaro contra o pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil. Foi a primeira vez que Bolsonaro foi questionado publicamente.

Foi demitida e, com a redemocratização, recebeu o convite para voltar ao cargo. Superou as dores pessoais, assumiu o cargo, sem remuneração, e sem abrir mão de suas tarefas habituais como procuradora.

Retomou a luta para obter as certidões de óbito reconhecendo as mortes pelo Estado. Partiu dela a sugestão de procurar o Conselho Nacional de Justiça e solicitar que ordenasse aos cartórios a expedição de novas certidões de óbito, constando a informação de que foram mortos pelo Estado brasileiro. E foi um trabalho extenuante levantar todos os mortos cujas famílias deveriam receber as certidões retificadas.

Conseguiu com o presidente Luís Roberto Barroso o apoio do CNJ. Preparou o texto que deveria ser utilizado, de forma padronizada, nas novas certidões.

O coroamento seria uma cerimônia na qual o Estado brasileiro pediria oficialmente desculpas aos familiares – um gesto simbólico mas expressivo. Anteriormente, conseguiu esse momento, com a então Procuradora Geral Raquel Dodge pedindo desculpas em nome do Estado.

Aí entram os jogos da vaidade. Um dos cartórios – que sempre se recusou a fazer a retificação anteriormente – viu a oportunidade de aparecer no Jornal Nacional. Convocou duas ex-militantes para receber uma certidão e avisou a produção do JN. 

Foi uma reportagem emocionante, mas falsa, na qual a certidão não era a do CNJ, que nem começou a ser distribuída, e as duas senhoras não eram sequer da família do morto. Todos apareceram, vitoriosos, como se fosse uma vitória individual das duas ex-militantes, empanando a grande cerimônia de reparação, na qual haveria o pedido formal de desculpas do Estado brasileiro. 

E tudo porque o show não pode parar.

PS – A procuradora pediu ao seu marido que não contasse a história e o motivo de sua chateação porque, afinal, as duas senhoras exibidas foram vítimas da ditadura. Mas o marido desobedeceu, porque a solidariedade deveria ser uma marca dos lutadores pela democracia.

 

¨      Projeto quer suspender salário de militares da ditadura

A deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL-RS) apresentou um projeto de lei que pede a suspensão da remuneração de militares denunciados por violações de direitos humanos e crimes contra a humanidade praticados no período da ditadura civil-militar instaurada com o golpe de 1964.

Segundo o texto, protocolado nesta terça-feira (7), na Câmara dos Deputados, a suspensão de remuneração e proventos será mantida até que haja decisão definitiva do processo judicial. No intervalo da tramitação, o militar não terá direito a receber nenhum tipo de subsídio, adicional ou gratificação relacionados ao seu cargo ou função pública.

O projeto também destaca que, antes de que a suspensão seja executada, o militar será devidamente notificado e que, conforme asseguram a Constituição Federal e a legislação brasileira, terá direito ao contraditório e à sua própria defesa perante a Justiça. A interrupção do pagamento da remuneração e proventos pode ser cancelada, caso haja elementos suficientes que provem sua inocência quanto aos crimes imputados ao militar.

A proposta da parlamentar prevê que em caso de absolvição definitiva, transitada em julgado, ou seja, quando a sentença judicial é de absolvição do acusado e foram esgotados todos os recursos possíveis, o militar terá direito ao pagamento retroativo dos valores suspensos, devidamente corrigidos pela inflação.

No documento protocolado, a parlamentar menciona que a proposta tem como respaldo o Estatuto dos Militares (Lei nº 6.880/80), em que são descritos tanto os direitos como deveres dos membros das Forças Armadas.

Fernanda Melchionna diz que o Brasil deve honrar os compromissos que sela com a comunidade internacional, no que diz respeito à salvaguarda dos direitos humanos e ao combate à impunidade.

“O caso de Rubens Paiva, ex-deputado torturado e morto em 1971, ilustra a relevância da medida. Ele nunca mais foi visto após ser levado para prestar depoimento em 1971, período da ditadura militar, podendo ser considerado um caso de desaparição forçada. Apesar das graves acusações e do reconhecimento formal das violações, militares denunciados pelo crime, como o general José Antônio Nogueira Belham, continuam recebendo remunerações públicas, mesmo diante de fortes evidências de seu envolvimento neste crime de lesa humanidade”, exemplifica.

Rubens Paiva teve sua história recontada no filme Ainda estou aqui. O longa-metragem foi dirigido por Walter Salles e protagonizado por Fernanda Torres, que venceu o Globo de Ouro no último domingo (5), e Selton Mello, que interpreta Rubens Paiva.

A deputada disse ainda que apresentou o projeto após as notícias dos valores pagos aos militares denunciados no assassinato de Rubens Paiva. “Recentemente, veio à tona a realidade que o Brasil paga R$ 140 mil por mês aos militares denunciados pelo assassinato de Rubens Paiva. Isso é uma vergonha. Esse privilégio tem que acabar”, afirmou à Agência Brasil.

A proposta também ‘incorpora o reconhecimento de violações documentadas por decisões da Comissão Nacional da Verdade, criada pela Lei nº 12.528/2011, que investigou e reconheceu graves violações de direitos humanos ocorridas no Brasil, especialmente durante o regime militar. Conferir a importância merecida e validar as recomendações da Comissão da Verdade em relação aos militares que atuaram durante o período da Ditadura Militar e praticaram crimes contra os direitos humanos e crimes contra a humanidade reforça o dever do Estado de agir em conformidade com o Direito Internacional e com os princípios de verdade e reparação”.

 

¨      Imprensa precisa “virar a chave” na cobertura do dia a dia das Forças Armadas. Por Carlos Wagner

Tenho lido todos os textos, escutado as notícias no rádio e assistido às entrevistas aos noticiários das TVs do criminalista José Luiz de Oliveira Lima, advogado de defesa do general de quatro estrelas da reserva Walter Braga Netto, 67 anos. O general foi preso preventivamente pela Polícia Federal (PF) no sábado, dia 14 de dezembro, por estar atrapalhando as investigações sobre uma série de episódios de cunho golpista que foram desencadeados com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), 79 anos, nas eleições presidenciais de 2022. Braga Netto concorreu a vice na chapa encabeçada pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL), 69 anos, que buscava a reeleição. Um desses episódios, que foi chamado de Operação Punhal Verde Amarelo, planejava os assassinatos de Lula, do vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB), 72 anos, e do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, 56 anos. Mas o episódio mais conhecido aconteceu em 8 de janeiro de 2023, quando bolsonaristas insuflados pelos golpistas invadiram e quebraram tudo que encontraram pela frente no Palácio do Planalto, no Congresso e no STF, localizados na Praça dos Três Poderes, em Brasília (DF). As imagens do 8 de janeiro circularam o mundo.

Os noticiários diários estão acompanhando passo a passo as estratégias do advogado de Braga Netto. Mas há um detalhe no argumento da defesa que merece destaque. Lá no meio da conversa com os jornalistas, o criminalista lembra que Braga Netto teve uma vida profissional no Exército ilibada, íntegra, que o conduziu à quarta estrela do generalato. O relatório de 887 páginas da PF que indicia 37 pessoas por tentativa de golpe, entre elas Bolsonaro e o seu colega de chapa, mostra outra história da carreira do general no Exército. Braga Netto foi indiciado por pertencer a uma organização criminosa formada por militares de várias patentes e civis que atentou contra a democracia brasileira. A rigor, as Forças Armadas são vítimas nesta história. Aqui há um detalhe sobre o qual a imprensa precisa refletir. Vamos pegar o ano de 1964, quando as Forças Armadas, apoiadas pelo governo dos Estados Unidos e a extrema direita brasileira, deram um golpe de estado, permanecendo no poder até 1985. Naquela época, eu me lembro, nas redações a cobertura política tinha como foco as alianças e os conchavos feitos nas “conversas de caserna”, ou seja, dentro dos quartéis, entre os oficiais que disputavam a Presidência da República. Com a redemocratização do país, que se iniciou em 1985 com a substituição no poder dos militares pelos civis, a imprensa seguiu por um longo tempo concedendo generosos espaços para as “conversas de caserna”. O espaço foi diminuindo à medida que os partidos políticos se consolidaram no cenário nacional. Mas as “conversa de caserna” voltaram com muita força aos noticiários em 2018, quando Jair Bolsonaro, um capitão reformado do Exército, foi eleito presidente da República. Bolsonaro começou a tramar um golpe de estado um segundo depois de iniciar o seu mandato, em janeiro de 2019 – há farto material na internet. O golpe do ex-presidente não deu certo porque a maioria dos oficiais das Forças Armadas é legalista. E a imprensa só foi descobrir esse fato quando os golpistas começaram a ser presos.

Aimprensa precisa virar a chave e começar a tratar as Forças Armadas como um contingente de profissionais que têm como missão proteger as nossas fronteiras. Em vez de abrirmos generosos espaços nos noticiários para os “entulhos autoritários”, como eram descritos os saudosistas do golpe de 64 nas redações no tempo das máquinas de escrever, precisamos começar a olhar como estão sendo cumpridos os planos de formação dos recrutas. Fui recruta da infantaria em 1969 e lembro-me que mais da metade do treinamento não foi cumprida por falta de recursos financeiros. Como está a situação nos dias atuais? Não me lembro de ter encontrado uma matéria decente nos jornais sobre o assunto. E as escolas militares que formam graduados, sargentos e oficiais? Mais ainda: como estão sendo feitos os treinamentos destes contingentes? Antes de escrever este texto conversei com pessoas das Forças Armadas. O ideal é que nunca seja necessário a atuação dos militares para defender o território brasileiro. Mas, se for, é fundamental que eles estejam preparados para a missão. E saber se essa preparação está sendo feita é obrigação da imprensa. Vez ou outra se acha uma matéria em um pé de página sobre aviões de traficantes abatidos por caças da Força Aérea Brasileira (FAB). Sabemos que o território nacional se tornou corredor de passagem para grandes quantidades de cocaína que são enviadas para os mercados consumidores dos Estados Unidos e da Europa. Qual é o plano e os recursos que a FAB dispõe para manter o espaço aéreo brasileiro fechado para as aeronaves dos traficantes? E os batalhões de selva do Exército na Floresta Amazônica têm os meios necessários para manter pelotões patrulhando as fronteiras com os países vizinhos, grandes produtores de cocaína? Não é preciso ser especialista no assunto para chegar à conclusão que uma ação eficiente dos caças da FAB e dos pelotões da selva conseguiriam causar um imenso dano às linhas de abastecimento de drogas, armas e munições para os criminosos alojados nas grandes cidades do país, como o Rio de Janeiro.

Acredito que o episódio da tentativa de golpe de Bolsonaro e seus generais vai virar uma página na história do Brasil. Mas para que isso aconteça é necessário que a imprensa foque a sua cobertura na fiscalização da formação e treinamento das Forças Armadas para o cumprimento da sua missão de defender o território nacional. Há regiões na Floresta Amazônica onde, sem a proteção militar, os fiscais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) não entram. Sem a montagem de um sistema eficiente de patrulhamento das fronteiras, a luta contra as grandes organizações criminosas, como o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, e o Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro, se limita a enxugar gelo. As Forças Armadas brasileiras não têm uma guerra tradicional para lutar. Mas estão envolvidas em um novo tipo de conflito bem mais violento e sofisticado que as guerras tradicionais. Quem duvidar que olhe as estatísticas.

 

Fonte: Observatório da Imprensa/Jornal GGN/Agencia Brasil

 

 

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