Brasileiros e
colombianos: Tanto aqui como lá o racismo atua conformando as relações sociais
e políticas
A América Latina é
uma terra de muitos encantos e de desencantos. De certa forma, é até mesmo
certo clichê falar das belezas naturais que o continente nos apresenta, são
cachoeiras, montanhas, florestas, rios, mares, linguagens e uma rica
diversidade que a todos cativam. A formação social dessa parte do planeta é
também um caso à parte, marcada por uma história de lutas e resistências; por
aqui se formaram povos, que lutam ainda hoje pelo simples direito de existir.
Foram batalhas,
guerras, processos de luta e resistências que desafiaram e desafiam inúmeros
intelectuais, que buscaram e buscam criar interpretações para tentar capturar e
traduzir em linguagem qual, ou melhor, quais os sentidos que perfazem as formas
de viver e de existir dos inúmeros “pueblos latinoamericanos”.
Dentre esses
inumeráveis intelectuais, uma que se destaca é a historiadora, antropóloga e
psicanalista Lélia González, professora em instituições públicas e privadas,
Lélia formulou uma rica e densa epistemologia que buscou articular raça, classe
e gênero muito antes da popularização do termo interseccionalidades.
Para compreender a
importância da atuação de Lélia, pode-se recorrer ao relato de outra grande
intelectual, Angela Davis, que numa de suas passagens pelo Brasil disse: “Eu
sinto que estou sendo escolhida para representar o feminismo negro. Mas porque
no Brasil vocês precisam buscar essa referência nos Estados Unidos. Acho que
aprendi mais com Lélia González do que vocês aprenderão comigo”.
Porém, mesmo
referenciada por intelectuais de outros países, e com uma obra que apresenta
uma interpretação altamente sofisticada sobre a nossa história, a pensadora
brasileira ainda é uma fonte desconhecida para muitos. Conceitos como
pretoguês, duplo édipo, neurose cultural brasileira, entre outros ficaram/ficam
muita das vezes restritos aos muros das universidades, quando muito circulam em
grupo de movimentos sociais, que se inspiram no legado dessa mineira-carioca
para articular suas lutas.
Você já ouviu falar
em Améfrica Ladina? Formulado por Lélia González no já clássico texto “A
categoria político-cultural de amefricanidade” (1988), o conceito está para
além de apenas referenciar a condição geográfica dos povos negros nas Américas.
Pelo contrário, amefricanidades se refere ao marcador étnico incorporando
dinâmicas culturais, sociais e políticas que vão de encontro ao capitalismo
racial brasileiro e sua principal tecnologia de dominação, o racismo.
Segundo González
(1988, p. 92-93), “trata-se de um olhar novo e criativo no enfoque da formação
histórico-cultural do Brasil que, por razões de ordem geográfica e, sobretudo,
da ordem do inconsciente, não vem a ser o que geralmente se afirma: um país
cujas formações do inconsciente são exclusivamente europeias, brancas. Ao
contrário, ele é uma América Africana cuja latinidade, por inexistente, teve
trocado o T pelo D para, aí sim, ter o seu nome assumido com todas as letras:
Améfrica Ladina (não é por acaso que a neurose cultural brasileira tem no
racismo o seu sintoma por excelência)”.
Lélia González,
intelectual engajada, extremamente atenta aos desafios impostos ao seu tempo,
rechaçou qualquer perspectiva romântica sobre o continente africano. Bebendo da
história de luta e resistências dos povos afrodiaspóricos, ela já enunciava que
todas essas potencialidades se faziam presente nas rebeliões, na organização de
táticas e estratégias de resistência cultural, assim como no desenvolvimento de
maneiras alternativas desses povos se organizarem, de forma livre, soberana e
independente cuja a materialização se observa nos quilombos, cimarrones,
cumbes, palenques e outras formas de resistir e existir que se espalharam por
todo o continente “amefricano”.
Lélia González
sempre dizia da necessidade de reconhecer o trabalho gigantesco articulado por
inúmeras tecnologias socioculturais que nos conecta com o outro lado do
Atlântico, e que nos constitui como sendo o que nós somos: amefricanos.
E toda essa
potência de Lélia Gonzalez, continua até hoje a inspirar, sejam os movimentos
sociais, seja a institucionalidade do Estado a propor novos velhos caminhos a
percorrer. E foi assim, tendo Lélia González como uma espécie de madrinha
intelectual, que o Programa Caminhos Amefricanos, uma iniciativa do Ministério
da Igualdade Racial, do Ministério da Educação, e da Comissão de
Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior (CAPES) e a Universidade Federal
do Maranhão (UFMA) possibilitaram que 50 docentes, de educação básica no
Brasil, pudessem realizar um intercâmbio de curta duração na cidade de Bogotá,
capital da Colômbia, onde foi possível conhecer, vivenciar e trocar
conhecimentos com estudantes, educadores, gestores, intelectuais e
pesquisadores daquele país.
A edição colombiana
esteve na capital do país andino, localizado no Norte da América do Sul, e
possibilitou para muitos de nós nossa primeira experiência além das fronteiras
brasileira. Bogotá é uma cidade incrível, com seus 2640 metros acima do mar, a
localidade é hospitaleira e convidativa para todos aqueles que amam a rica
cultura e diversidade amefricana. Na capital colombiana, ao subir o Monserrate,
é possível tocar o céu, com seus incríveis 3152 metros de altitude, de lá de
cima você tem uma das melhores vistas de Bogotá. A Basílica Santuário do Senhor
de Monserrate é um show a parte, além de uma feira de produtos locais, onde é
possível experimentar um pouco da rica diversidade da cidade.
Na fria Bogotá,
pude observar a paixão dos colombianos pelo futebol. No El Campin, estádio onde
o Independente Santa Fé e Milionários manda seus jogos, a atmosfera lembra os
charmosos estádios brasileiros da década de 1990.
Nas “calles” (ruas)
de Bogotá, é possível adquirir bons livros espalhados por vendedores ambulantes
em tapetes, que estão sempre prontos a serem recolhidos, pois a qualquer
momento pode cair aquele “aguacero” (chuva). Outro aspecto interessante é a
grande abundância dos cafés, dos mais variados tipos e especialidades. O mais
comum é o “tinto nigro”, que você pode comprar por 1000 pesos colombianos (R$
1,40 centavos), e o realismo mágico se mostrava aos sentidos, no Distrito de
Santa Fé, onde eu sempre era atendido por uma balconista que se chamava
Alegria. Na Casa da Moeda, localizada no bairro La Candelaria é
possível conhecer um pouco da história da Colômbia, com excelentes guias e por
falar em moeda, na nota de 50.000 pesos encontra-se estampada o rosto de um
colombiano ilustre, Gabriel Garcia Marques.
A Colômbia, assim
como o Brasil, é um país de desigualdades. Apesar de representar algo próximo a
10% da população colombiana, os negros são as principais vítimas da violência,
a cada 10 mortes violentas naquele país, oito são afrocolombianos. Tanto aqui
como lá o racismo atua conformando as relações sociais e políticas, se
mostrando de forma estrutural, orgânica e funcional.
Na Colômbia pode-se
inferir algumas sínteses do racismo no Sul Global: “Ele é estrutural,
institucional e cotidiano; é negado e invisibilizado no sistema educacional; é
um fenômeno estranho a si mesmo, configurando um problema do outro abstrato;
cria estereótipos, prejudica e nega a ideia de sujeito; omite a história e
cultura de uma perspectiva afrocêntrica; é epistemológico, opera por meio do
currículo em um ambiente de controle disciplinar e na gestão dos conflitos; a
branquitude é o desejável, o negro é o inferior; predomina um discurso
colonial, que cria um regime de representação e modelo de civilização que age
no controle das subjetividades”.
Porém, tanto na
Colômbia como no Brasil há resistência, ânimo, força e energia que vem das
ruas, dos palenques, dos raizales, do Almirante José Prudencio
Padilla, da poesia de Candelario Obeso; e de Manuel Zapata, que nos ensina que
“La presencia africana no puede reducirse a um fenómeno marginal de nuestra
historia. Su fecundidade inunda todas las artérias y nervios del nuevo hombre
americano.”
Fonte: Por
Edergênio Negreiros Vieira, m A Terra é Redonda
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