O desafio
brasileiro de levar a leitura às prisões
"A literatura é a irmã
gêmea da liberdade". A frase estava em uma carta de remetente desconhecido
endereçada a Marco Lucchesi, imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL) e
atual presidente da Fundação Biblioteca Nacional.
O autor era um detento
fazendo um pedido: a doação de livros para a biblioteca de uma penitenciária de São Paulo . O
remetente justificou a demanda dizendo que, "para tirar o homem do
erro, é preciso dar, não subtrair".
No Brasil, cada livro lido
por um preso pode contar na redução da pena. Por isso, em 2023, o
país lançou um Plano Nacional de Fomento à Leitura em Ambientes de Privação de
Liberdade. O objetivo era universalizar o acesso ao livro e à leitura nas prisões. Porém, um ano
depois de lançado o documento, o plano ainda está em fase preliminar e o país
está longe de atingir essa meta.
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Os obstáculos para reduzir a pena pela
leitura
Um levantamento realizado
pela DW junto aos tribunais de Justiça dos estados e às secretarias que
cuidam da assistência penitenciária mostra que ainda há poucas políticas
implementadas para garantir o acesso à leitura em cárceres brasileiros. A
escassez de medidas parece ser mais acentuada para pessoas com deficiência
visual ou com baixo grau de escolaridade nas prisões.
Isso compromete diretamente
o acesso à remição de pena pela leitura. Reduzir a pena em troca
de estudo é um direito garantido às pessoas privadas de liberdade no país desde
2011, garantido na Lei de Execução Penal e regulamentado por uma resolução do
CNJ de 2021.
O documento diz que cada
obra lida significa a diminuição de quatro dias de pena. Mas cada
preso só pode contabilizar até 12 livros no intervalo de um ano, o que garante
a redução de até 48 dias por ano. Para validar os dias, o preso precisa fazer
um relatório, que é legitimado por uma comissão nas Varas de Execução
Penal.
A resolução do CNJ
estabelece que deveriam ser aceitas formas alternativas de relatório, como
leitura oral ou até mesmo desenhos e músicas. Também diz que se deve garantir a
presos com baixo grau de escolaridade ou não alfabetizados alternativas
como audiobooks e
estratégias de leitura entre pares.
Mas isso não vem
acontecendo.
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Mais difícil para analfabetos e presos com baixa
escolaridade
Dados da Secretaria
Nacional de Políticas Penais (Senappen) mostram que a remição de pena pela
leitura representou 18% de todas as ações educacionais realizadas nos presídios no
primeiro semestre de 2024. Mas, na prática, não federativas para pessoas não alfabetizadas ou com baixa escolaridade.
Ela depende de portarias
locais e da ação conjunta dos poderes Judiciário e Executivo, o que não
ocorre em todos os estados. São projetos voluntários que acabam implementando
as iniciativas. E os relatórios terminam por ser validados com decisões
individuais de juízes.
No Mato Grosso do Sul,
por exemplo, o Tribunal de Justiça oferta apenas projetos de remição de pena
pelo trabalho. São Paulo, o estado com a maior população prisional do país, não
oferece iniciativas para remição de pena pela leitura para presos analfabetos
ou com baixo letramento. O estado é também o que tem a maior população
carcerária nessa condição, seguido por Pernambuco, Pará, Minas Gerais e
Ceará.
Outro estado que não oferece
programas inclusivos de leitura para analfabetos é o Espírito Santo,
segundo o TJ do estado. Em Minas Gerais, tanto a Secretaria de Estado de
Justiça e Segurança Pública quanto o TJ afirmaram que ofertam iniciativas para
pessoas analfabetas, mas não especificaram de que forma isso ocorre. O Estado
afirmou apenas que essas pessoas são inseridas no universo da leitura com apoio
de professores e pedagogos.
Roraima e o Distrito Federal
também afirmaram ter iniciativas que incluem presos analfabetos e com baixa
escolaridade. Nenhum estado soube dizer quantos relatórios produzidos por essas
pessoas foram enviados para ser avaliados pelas comissões.
O único estado que detalhou
à DW como funciona a sua política para inclusão na remição de pena pela leitura
foi Alagoas. De acordo com o Tribunal de Justiça do estado, cerca de 10%
do total de 3,7 mil atendidos no programa de remição de pena pela leitura do
estado são analfabetos.
O estado possui monitores de
leitura, um grupo formado por outros presos com habilidade de escrita e
leitura, que atuam como contadores da história do livro escolhido pelos não
alfabetizados. Atualmente, 380 pessoas exercem essa função em seis
presídios.
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Por que oferecer formas alternativas de leitura nas
prisões
O Brasil tem atualmente 15
mil presos considerados não alfabetizados, de acordo com a Senappen, o que
representa 2,2% da população prisional do país.
O número cresceu 6% entre o
segundo semestre de 2023 e o primeiro de 2024, mas pode ser bem maior. É que,
se somadas as pessoas com ensino fundamental incompleto, esse número sobe para
53%, de acordo com o Censo de Leitura no Sistema Socioeducativo.
Por isso, ampliar as ações
de remição de pena pela leitura é considerada uma maneira alternativa
de estimular o acesso à educação formal. "As prisões
historicamente produzem mais delinquência do que ressocialização. Mas isso não
justifica que a gente não tenha políticas. E o poder público tem essa
responsabilidade", afirma a professora da Universidade Católica de Pelotas
e coordenadora do censo, Christiane Russomano Freire.
Mais inscrições em programas
de educação
Em Alagoas, estima-se que
houve um aumento de 40% nas matrículas na Educação de Jovens e Adultos realizadas dentro do sistema prisional após o primeiro contato com
a leitura por meio de projetos de remição.
O plano lançado no ano
passado pelo governo federal e o CNJ tem como uma das metas ampliar em 50%
o número de pessoas com remição de pena pela leitura concedida. Até o
lançamento do documento, apenas três em cada dez presos do país conseguiam
reduzir dias de pena por meio da leitura. O plano deve ser executado até
2027.
Em meados de dezembro, o STF
homologou, com ressalvas, o Plano Pena Justa, que visa combater as
violações de direitos no sistema prisional. Entre as medidas previstas, está a
implantação de escolas em 100% das unidades prisionais e a remição de pena
padronizada no país.
Leitura para melhorar
democracia
A remição de pena pela
leitura, de acordo com Russomanno Freire, também deve ser incentivada porque
promove o autoconhecimento, a autoestima e estimula processos de
sociabilidade dos presos.
É o que também defende Marco
Lucchesi. Para ele, ampliar a leitura nas prisões significa aumentar os índices democráticos do
país. "A gente tem uma obrigação na democracia que é pedagógica. A
sociedade precisa entender que essas práticas são necessárias. Essas pessoas
presas vieram das nossas próprias contradições."
Doutora em linguística pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e autora do livro Leitura e cárcere - (entre) linhas e grades, o
leitor preso e a remição de pena, Rossaly Beatriz
Chioquetta viveu exemplos práticos disso durante pesquisa que realizou em
Xanxerê, Santa Catarina.
"Na minha pesquisa, um
dos presos comentou que, depois que passou a fazer as leituras, conseguia
dormir melhor. Outro disse que os agentes penitenciários o acharam mais
calmo", descreve.
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Prisões sem bibliotecas e acervo
desatualizado
Implementar e
ampliar iniciativas de remição de pena pela leitura para todos os presos,
independentemente do grau de escolaridade, ainda depende da criação de
estruturas jurídicas, físicas e da sensibilização das instituições públicas
para o tema.
Para ter a remição, a
leitura deve ser registrada nas bibliotecas e durar de 21 a 30 dias. Contudo,
53% das prisões brasileiras com biblioteca não garantem acesso de pessoas sem alfabetização
a elas, segundo o censo. Isso quando a unidade tem bibliotecas, o que não
é realidade em 30,4% das prisões.
No dia a dia, também faltam
livros nos acervos ou eles
são compostos por obras antigas e desatualizadas. "A menos que a
unidade vá atrás ou os projetos, não há material. A gente tem que ir atrás de
doações", afirma Leia Santos, coordenadora do projeto de remição de pena
por leitura Viajar sem sair do lugar, do CDP de Santo André, em São
Paulo
Quando há projetos de
remição pela leitura implementados, há ainda o desafio de ter os relatórios
aceitos pelos juízes, para contabilizar os dias de redução de
pena. "Nós temos juízes que aceitam e outros que não aceitam os
relatórios. Tenho um caso de um preso que desde 2022 está no nosso projeto e
não teve um relatório aceito. Todo ano, ele perde pelo menos uns 40 dias de
remição de pena", afirma Santos.
Como em alguns estados
sequer os relatórios mais formais são aceitos, explica Santos, isso freia os
responsáveis pelos projetos a utilizar outras formas de expressão como prova da
leitura. "Se um texto está sendo recusado, quem dirá um desenho?
Então a gente opta em ficar com a produção escrita, mas dar todo o suporte que
consegue", exemplifica.
Para Santos, mudar essa
realidade requer investir em mediadores de leitura. "Precisamos
permitir que a pessoa não só consiga remir a pena, mas que tenha ferramentas
para conseguir tornar a leitura uma prática cotidiana", diz. "O
Brasil não tem prisão perpétua nem pena de morte. O preso hoje está no sistema
prisional, amanhã estará contigo, na sociedade", recorda Chioretta.
¨ Como a
Holanda reduziu sua população carcerária
A população carcerária não
para de subir em países como Estados Unidos, China, Turquia e Brasil. A Holanda, porém, conseguiu reduzir o número de presos, e, hoje, algumas
prisões estão vazias e sendo reaproveitadas como centros culturais ou hotéis.
De acordo com um estudo
realizado pelas universidades de Leiden, na Holanda, e Portsmouth, no Reino
Unido, a taxa de encarceramento na Holanda caiu de 94 para 51 presos por 100
mil habitantes entre 2005 e 2016. Embora tenha ocorrido um pequeno aumento
entre 2021 e 2022, ficando em 54 presos por 100 mil habitantes, segundo a
agência de estatísticas da União Europeia Eurostat, houve uma estabilização
desta taxa num patamar baixo.
A Holanda é um dos poucos
países da Europa que registra queda nessa taxa. De acordo com a plataforma de
dados World Prison Brief (WPB), essa tendência também pode ser observada, até
certo ponto, na Alemanha, Liechtenstein, Bulgária, República Tcheca, Romênia e
Estados Bálticos.
A Holanda só é superada pela
Rússia. De acordo com o WPB, a taxa de prisioneiros na Rússia caiu 59% desde
2000. A razão para isso é política: os prisioneiros foram libertados para lutar
na guerra contra a Ucrânia.
Em todo o mundo, não há
sinal de declínio na população carcerária – pelo contrário: os números estão
explodindo. A América do Sul registrou um aumento de 224% desde 2000, a Ásia
141% e a Oceania 84%.
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O que levou ao declínio na Holanda
Há vários motivos para o
declínio da população carcerária na Holanda. Entre eles estão a redução das
sentenças de prisão, o desenvolvimento da taxa de criminalidade, o trabalho das
autoridades judiciais, os custos da prisão e da reabilitação, além da legislação.
O número de sentenças de
prisão diminuiu. Enquanto 8.305 pessoas foram condenadas à prisão em 2005, esse
número caiu para 4.540 em 2015. De acordo com estudos, essa queda foi
registrada em todos os tipos de crimes.
Houve uma redução de 44% nas
penas de prisão por crimes contra a propriedade, uma redução de 39% nos crimes
violentos e sexuais e uma redução de 49% em sentenças relacionadas ao tráfico
de drogas. Em relação aos detidos por não pagarem multas, a redução foi de 38%.
Na Holanda, a duração média
do tempo que um condenado passa na prisão também é notavelmente curta. Os
especialistas em crime da Universidade de Leiden documentam em seu estudo que
metade de todos os presos é libertada em um mês.
Em comparação, de acordo com
um relatório da Universidade de Lausanne, em média, 5,2% dos presos nos 46
Estados-membros do Conselho da Europa passam menos de seis meses atrás das
grades. A maioria, 21,3%, fica presa entre um e três anos.
Outro fator é a queda no
número de detidos em prisão preventiva. De acordo com um estudo, 21.029 pessoas
foram presas preventivamente em 2005, esse número caiu para 13.350 em 2016 –
uma redução de 37%.
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Queda na taxa de criminalidade
Entre 2005 e 2016, o número
de infrações penais caiu de 1,3 milhão para 930 mil. Foram registrados, entre
outros, 216 mil crimes contra a propriedade a menos (uma queda de 27%) e 32 mil
crimes violentos a menos (uma redução de 26%).
O declínio mais acentuado
foi registrado no número de crimes contra a ordem pública, uma queda de 50%, e
houve 31% menos infrações relacionadas a drogas.
Em 2018, o número de crimes
relatados atingiu o mínimo histórico de 770 mil. Desde então, os números
voltaram a subir ligeiramente. De acordo com o Statista, em 2022, a Holanda
registrou 798 mil delitos.
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Mais poder para os promotores públicos
Desde 2006, os promotores
públicos na Holanda podem processar casos sem o envolvimento de um juiz e impor
sentenças que não incluam a pena de prisão, como multas ou trabalho social.
Isso deveria levar a um processamento mais rápido dos casos e reduzir a carga
de trabalho dos juízes.
Estudos mostram que,
surpreendentemente, a mudança não fez com que o Ministério Público impusesse de
fato mais sentenças. Pelo contrário, os números diminuíram.
Como resultado, muitos casos
não foram encaminhados ao tribunal e o número de suspeitos que poderiam ter
recebido uma sentença de prisão foi reduzido. Isso, por sua vez, contribuiu
para a queda na população carcerária.
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Investigações lentas
No entanto, um estudo
publicado em 2017 pelos pesquisadores criminais Judith van Valkenhoef Edward
van der Torre expressa dúvidas consideráveis sobre a história de sucesso
holandesa. Eles apontam para investigações ineficientes e insuficiência de
processos judiciais.
Um estudo afirma que a
Holanda se tornou um ator importante no campo das drogas sintéticas e
continuará sendo se as políticas não mudarem. Para o autor deste estudo, o
criminologista Francis Pakes, da Universidade de Portsmouth, o declínio da
população carcerária não significa necessariamente que houve uma redução da
criminalidade em geral.
Segundo ele, se os delitos
não forem denunciados ou investigados, isso gera menos condenações, mas não
menos crimes. Essa relação poderia ser vista, por exemplo, na crescente influência de organizações criminosas envolvidas do tráfico de drogas na Holanda.
Fonte: DW Brasil
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