quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Banco Central é autônomo do Executivo, não da Constituição econômica, diz representante da banca que acionou o STF

O Banco Central é uma instituição autônoma dos interesses políticos do Poder Executivo, mas não é autônomo em relação à Constituição econômica, porque é um órgão de Estado e, como tal, deve obediência aos parâmetros constitucionais. Nesse sentido é que deve observar também os objetivos fundamentais da República brasileira, inclusive, o da redução da desigualdade e da erradicação da pobreza. Esses valores devem ser considerados na definição da taxa básica de juros (Selic) pelo Copom (Comitê de Política Monetária).

O entendimento acima é o ponto central da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceitos Fundamentais) apresentada pelo partido PDT ao Supremo Tribunal Federal. Representante da banca que assina a ação – Walber Agra -, a advogado Nara Cysneiro falou com exclusividade ao GGN sobre a iniciativa que visa promover um debate institucional que reconheça a omissão do Banco Central em definir parâmetros transparentes e mais plurais do que apenas observar as expectativas do mercado financeiro na definição da Selic pelo Copom.

“Nosso propósito não é que o Judiciário se substitua à autoridade monetária. Nosso propósito é que o Judiciário promova o estabelecimento de critérios objetivos para que as decisões do Copom atendem à Constituição econômica. Não queremos que o STF passe a fixar a Selic. O que queremos é que o STF determine ao Banco Central que considere valores como, por exemplo, a manutenção de postos de trabalho como [valores] relevantes para a tomada de decisão”, disse Nara Cysneiro em entrevista ao jornalista Luis Nassif, na noite de quinta (26).

“Não tiramos nada disso da cartola, isso é parâmetro constitucional para qualquer órgão público. O Banco Central é autônomo do Poder Executivo, mas não é autônomo em relação à sociedade brasileira e à Constituição Federal. Ele ainda é órgão de Estado e, portanto, deve obediência às regras constitucionais“, acrescentou.

O GGN teve acesso à ação de 60 páginas, que foi apresentada ao STF no dia 23 de dezembro. A peça questiona não a taxa Selic em si, fixada em 12,5%. O que está em jogo são os parâmetros utilizados atualmente para a tomada de decisão, que tem como principal baliza o boletim Focus.

“O Boletim Focus reflete a expectativa de um mercado específico: ele representa a expectativa do mercado financeirizado, especulativo. Mas no plano mercadológico há ainda o mercado produtivo – indústria, comércio e setores produtivos – que sofrem com o aumento da taxa Selic. Quando falamos em parametrização dessa decisão, é claro que admitimos que tem de se levar em conta o mercado financeiro, que financia muitas atividades. Mas também é preciso levar em conta a expectativa de outros mercados econômicos brasileiros. Estamos falando de ‘retirar a exclusividade de expectativa’ e ampliar a margem de discussão sobre o quanto essa taxa deveria favorecer os objetivos que a Constituição”, defendeu Nara Cysneiro.

Na visão da representante da banca Walber Agra, “no processo de fixação da taxa básica de juros, é preciso que se considere – para além das expectativas do mercado financeiro – outras expectativas que estão no parâmetro constitucional. Estamos falando de estabilidade de postos de trabalho, de desenvolvimento industrial nacional; dos impactos que essa taxa impõem ao orçamento fiscal, portanto, à capacidade de pagamento da dívida pública e sua trajetória sustentável. Estamos falando sobre crescimento econômico, erradicação da pobreza, desigualdade social”, apontou Cysneiro.

 

¨      Paulo Henrique Arantes: Entenda por que o Banco Central fere a Constituição ao elevar demais os juros

O PDT ingressou em 23 de dezembro com uma arguição de descumprimento de preceito constitucional (ADPF) no Supremo Tribunal Federal (STF) contra o Banco Central, motivado pela última ata do Comitê de Política Monetária (Copom), que elevou a Selic em 1%, para 12,25%. Na verdade, a atuação do BC nos últimos tempos dá todos os motivos para a medida judicial: juros excessivamente elevados ferem o pacto social que norteia a Constituição Federal, prejudicam o empenho do governo – e da nação, exceto a parte da Faria Lima – para que as classes mais baixas tenham e mantenham emprego, melhorem a qualidade do seu consumo, especialmente o alimentar, e vivam melhor, enfim.

Os argumentos que embasam a ADPF, que caiu nas mãos do ministro Edson Fachin, são claros. Os impetrantes não querem que o STF determine a Selic no lugar do Banco Central, mas que leve a autoridade monetária a dialogar com pessoas de fora do mercado financeiro. Afinal, o Brasil não é a Faria Lima.

Entrevistamos com exclusividade o advogado Lucas Gondim, que representa o PDT na ADPF junto com Walber Agra, Nara Cysneiros e Dayanne Rodrigues. Na sequência da entrevista com Gondim, veja o que o constitucionalista Pedro Serrano diz a respeito.

PHA - A depender do entendimento do ministro Fachin, a ADPF pode resultar em que?

Lucas Gondim - Pretendemos que a ADPF inaugure um verdadeiro diálogo institucional relacionado à política monetária. Não pretendemos que o STF se substitua à autoridade monetária - e isso é afirmado na petição diversas vezes – mas que obrigue o nosso BC a, se não aprimorar, ao menos ter o ônus de justificar, perante a sociedade, os critérios da política monetária. O exemplo da inflação de alimentos é paradigmático. Como isso pode ser um critério de motivação razoável para um aumento tão expressivo na taxa básica de juros? Não estamos falando ainda sequer da chamada “Constituição econômica”, mas simplesmente dos deveres de razoabilidade, moralidade e justificação que devem guiar todas as decisões administrativas.

O que a ADPF pode viabilizar, assim, é colocar o BC para discutir esses temas diretamente com a academia e com os setores profundamente afetados por suas decisões, e não apenas com o mercado financeiro. A ação pode instaurar uma dinâmica complexa de diálogo e aperfeiçoamento de processos decisórios, uma espécie de processo estrutural. Como afirmei, ainda que não reformule a política monetária por completo, que se imponha sobre o BC um ônus maior de justificação perante a sociedade.

PHA - O BC é autônomo, mas não está acima da Constituição. Gostaria que o senhor explicasse essa relação

Lucas Gondim - A autonomia precisa ser compreendida como um conjunto limitado e pré-determinado de garantias de que dispõe a instituição perante o Executivo e, de certa forma, o Legislativo, pela existência de quóruns qualificados para a aprovação e exoneração precoce de seus dirigentes.

A autonomia, no caso do Banco Central, não tem uma dimensão absoluta ou principiológica. Muitos querem tratar a autonomia do BC como se ela estivesse no mesmo patamar de postulados fundantes de nosso ordenamento, como a autonomia dos entes federativos ou a separação dos Poderes. Não estou afirmando que a autonomia não existe: mas ela é limitada nos termos do que dispõe a LC 179/2021 e não se impõe, por óbvio, sobre outros mandamentos constitucionais como a inafastabilidade da jurisdição, os princípios da administração pública e os da Constituição econômica.

PHA - Está provado que o juro alto (ou elevado exageradamente), ao passo que pode frear a inflação, desacelera a economia, favorecendo o desemprego, a queda do consumo das famílias etc. Ao ignorar esses aspectos, o BC distorce seu real papel?

Lucas Gondim - Uma parte definitivamente “esquecida” da Constituição de 1988 é a Constituição econômica. O pacto civil e social que emergiu dos escombros do regime militar erigiu algumas diretrizes para o Tesouro e para a economia: se, por um lado, a Constituição se preocupa com o planejamento e com o equilíbrio das contas governamentais, ela também direciona a economia para objetivos muito específicos, como a busca do pleno emprego, a valorização do trabalho, a erradicação da marginalização e das desigualdades. É difícil imaginar a contemplação desses objetivos num país que freia artificialmente o seu crescimento para conter uma inflação de alimentos, voltando ao exemplo anterior. Sabemos que há um problema na meta de inflação – e isso não é uma questão objeto da ADPF, nem a cargo do BC, mas do CMN. Mas dentro de seu mandato – perseguir a meta – o BC não pode esquecer que existe toda uma normatividade de estatura supralegal, acima de sua lei de autonomia, que vincula a perseguição de objetivos muito específicos. Diante dessa taxa básica de juros, cria-se um cenário em que se torna pouco atrativo ao detentor de capital investir no capital produtivo, que gera emprego e renda e muda realidades sociais e espaciais.

O BC em nenhum momento se preocupa com os impactos de suas decisões sobre isso. E, repito, para que não nos acusem de “aventura”: não pretendemos que o STF se substitua à autoridade monetária, mas que o BC passe a ter o ônus de, perante a sociedade brasileira, de afirmar naqueles Comunicados do Copom, tão celebrados pela imprensa, que está ciente dos efeitos sociais perversos de sua decisão e que a toma mesmo assim porque entende que é a melhor para o cumprimento de seu mandato. Sendo assim, a discussão passa a ser outra. O que não pode persistir é a realidade atual: um BC completamente alheio à incidência da Constituição econômica. O que determina que o aumento da Selic seja de 1,0 p.p. e não de 0,75 p.p., por exemplo? Evidentemente é uma decisão política, e talvez nunca deixe mesmo de sê-lo. Não há um modelo matemático, nem defendemos que possa ou deva haver. Mas é preciso que haja um custo argumentativo, um custo político maior da autoridade monetária ao definir esse escalonamento.

PHA - Por que o BC se baseia apenas nas análises do mercado financeiro? Ele está capturado?

Lucas Gondim - O PDT não é o primeiro a questionar a metodologia de consulta e consolidação do Boletim Focus. Trata-se de uma discussão antiga, e esperamos que o STF não ignore essas contradições. Sabemos que o Boletim FOCUS não é a única contradição do BC no que tange à sua eventual captura. 

Há também diversos trabalhos sobre o tema, e esperamos que no curso do diálogo institucional a ser instaurado na ADPF, esses especialistas tenham voz e vez para levar ao conhecimento do Judiciário, da sociedade, e do Banco Central as suas teses. Repetimos: diversamente do que algumas críticas – feitas por quem provavelmente sequer leu a íntegra da petição inicial fez – em nenhum momento pretendemos que o STF baixasse os juros numa canetada, numa marretada. Inclusive justificamos, por isso, a ausência de um pedido de liminar, como é praxe nessa espécie de ação. Ao final, o que pedimos não é que o STF fixe as taxas de juros, mas que obrigue o BC a rever os seus parâmetros de justificação, inclusive o Boletim Focus, e entendemos que as três linhas de revisão propostas são mais do que razoáveis – e não “aventureiras”. Veja-se: a um, queremos que o BC passe a ponderar o impacto de suas decisões sobre a trajetória da dívida e o orçamento fiscal. A diferença entre subir os juros 0.5 p.p. ou 1.0 p.p. tem um impacto bilionário sobre a rolagem da dívida. A dois, queremos que o BC leve em conta os impactos de suas decisões sobre os outros objetivos postos pela Constituição econômica, para que tenha ao menos o custo de accountability perante a sociedade. A três, queremos a revisão da metodologia do Boletim Focus, considerando que o mercado financeiro não pode ser o único setor da economia consultado para a definição das expectativas da economia.

PEDRO SERRANO: “EU CONCORDO COM A COLOCAÇÃO DO PDT” - Mais prestigiado constitucionalista do país, Pedro Serrano afirmou a este jornalista que concorda com as justificativas do PDT para ingresso de ADPF contra o Banco Central no Supremo Tribunal Federal.

Eis o que nos disse Serrano:

“No site do Banco Central está dito que sua função é controlar a inflação e definir a taxa de juros. Mas não é bem assim. O BC deveria levar em conta outros fatores na análise macroeconômica. Teoricamente, a taxa de juros é usada para conter a inflação, mas na prática tem sido uma ação política discricionária que estabelece uma política pública.

“Acho que, como bem colocou o PDT, o Banco Central é autônomo em relação ao governo, especialmente pelo fato de seus dirigentes terem um mandato. Mas não é independente do Estado. Ninguém é independente do Estado, não existe isso nem quanto aos bancos particulares. O Banco Central, tanto quanto os bancos particulares, tem que cumprir a lei e a Constituição.

“O Banco Central não pode resistir a políticas públicas do governo. É uma autarquia, em regime jurídico especial, do Estado brasileiro.”

Se for fiel ao próprio pensamento, Galípolo trocará a receita ortodoxa contra a inflação

Já fizemos isto neste espaço. Rememorar o pensamento econômico de alguém que está prestes a comandar o Banco Central será sempre salutar, pois imagina-se que essa pessoa não irá contradizer seus princípios apenas por ter assumido um cargo importante. Gabriel Galípolo vem aí. Do alto do seu novo posto, mandará esquecer que escreveu, junto com Luiz Gonzaga Belluzzo, o ótimo livro “Manda Quem Pode, Obedece Quem Tem Prejuízo” ?

O capítulo intitulado “As Notícias do Mercado ou O Mercado das Notícias” é excepcionalmente bom, daqueles que fazem o leitor pensar: “poxa, que bom se um dos autores fosse presidente do Banco Central!”

Referindo-se às colunas especializadas na mídia, cujos titulares são chamados de “discutidores de bonds”, Galípolo e Belluzzo mencionam o bate-bate na insistente tecla da “imperatividade da elevação da taxa de juros básica da economia como forma de contenção do processo inflacionário, que estaria prestes a fugir do controle no Brasil”. 

Como o livro é de 2017 (Editora Facamp), percebe-se que o terrorismo com a inflação não vem de hoje, bem como a receita única anti-inflacionária da elevação dos juros. Para sorte de todos nós, o futuro presidente do Banco Central, ao lado do colega Belluzzo, sabe que a solução ortodoxa para a pressão inflacionária costuma ter efeitos colaterais terríveis. Confira o trecho a seguir, de Galípolo-Belluzzo:

Está claro como a elevação das taxas de juros contém a elevação dos preços (inflação) decorrente de uma alta na demanda. Mas, ainda assim, não causa estranheza ao leitor que, ao longo de 2015 (nada mudou), a outra parte do caderno de economia do seu jornal, aquela que não fala sobre a inevitabilidade  da elevação nas taxas de juros, se dedique a expor a crise e o desaquecimento da economia, materializado justamente na queda da demanda?”

Mas pérola do capítulo em tela encontra-se no seguinte parágrafo, uma micro-aula de lucidez econômica:

“O estabelecimento automático de uma relação causal determinística entre inflação e ‘excesso de demanda’ (sempre!) faz paralelo ao diagnóstico de virose com recomendação de analgésico, antitérmico e anti-infamatório de alguns plantonistas de pronto-socorro. Ante as inevitáveis evidências de que a economia brasileira não passa por um cenário de ‘excesso de demanda’, não caberia uma investigação se o processo inflacionário teria outra causa?”

A resposta é sim, cabe investigação. E cabe ao Banco Central, que estará a partir de janeiro sob a batuta de um dos autores desse belo livro. Que Gabriel Galípolo não repita Fernando Henrique Cardoso, dono da famigerada frase “esqueçam o que escrevi”.

 

Fonte: Jornal GGN/Brasil 247

 

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