Novo Ensino Médio
está alinhado a uma visão neoliberal e aprofundará as desigualdades educacionais
Após a luta de
estudantes, educadores e movimentos sociais, a reestruturação do Ensino
Médio,
a partir da Lei nº 14.945/2024, conseguiu amenizar alguns dos danos
promovidos pela Lei nº 13.415/2017, que institui o Novo Ensino Médio. “Não
houve uma revogação integral da Lei de 2017, mas pontos importantes foram
alterados, como a ampliação da carga horária da Formação Geral Básica, comum a
todos os estudantes, e a recomposição da obrigatoriedade de componentes
curriculares como História, Sociologia, Filosofia, Artes, Educação Física,
Biologia”, afirma a doutora em educação, Ângela Both Chagas.
Em entrevista por
WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, a especialista,
entretanto, pontua que a política segue problemática: há um alinhamento de toda
reforma com uma visão neoliberal, de esvaziamento de conhecimentos científicos
e culturais. “O Novo Ensino Médio representa uma política do autoritarismo materializada
no processo de implementação da rede estadual do Rio Grande do Sul, reduzindo a
autonomia das escolas e aprofundando as desigualdades”, pontua.
Outro alerta
que Ângela faz é para o aumento das desigualdades educacionais – e,
consequentemente, sociais – a partir de uma educação voltada à precarização da
vida dos estudantes. “Entre as consequências dessa política, está o desalento
dos estudantes em relação ao futuro, já que o Novo Ensino Médio não
prepara nem para a continuidade dos estudos, nem para a inserção qualificada no
mundo do trabalho”.
<><> Confira
a entrevista.
·
A
Lei nº 14.945/2024 instituiu a Política Nacional de Ensino Médio, em
substituição à Lei nº 13.415/2017. Quais são os principais pontos de mudança na
legislação? Em que consiste a reestruturação da política de Ensino Médio?
Ângela Both
Chagas – Para iniciar, considero importante contextualizar que a
reestruturação da política de Ensino Médio é o resultado da
mobilização de estudantes, professores, pesquisadores e movimentos sociais pela
revogação da Lei nº 13.415/2017, conhecida como Novo
Ensino Médio.
Diante dos protestos nas ruas e dos resultados de pesquisas que evidenciaram os
prejuízos para a formação dos estudantes, o Ministério da Educação apresentou
um Projeto de Lei que, entre avanços e recuos na disputa política no Congresso
Nacional, resultou na Lei nº 14.945, sancionada no ano passado. Não houve
uma revogação integral da lei de 2017, mas pontos importantes foram alterados,
como a ampliação da carga horária da Formação Geral Básica, comum a todos os
estudantes, e a recomposição da obrigatoriedade de componentes curriculares
como História, Sociologia, Filosofia, Artes, Educação Física, Biologia, entre
outros.
Mesmo assim, a
política mantém elementos problemáticos, como o alinhamento à concepção de
competências instrumentais da Base Nacional Comum Curricular – BNCC, reduzindo
os currículos escolares ao seu caráter utilitarista e padronizado. E traz
alguns pontos preocupantes, como a carga horária menor da formação geral para
quem vai cursar o itinerário da formação técnico-profissional.
Assim, entre
avanços e recuos, entendo que 2025 representará um momento decisivo para as
escolas, no sentido de disputarem politicamente o projeto de educação, fazendo
valer da sua autonomia para ressignificar conceitos e reafirmar o seu poder na
construção de políticas educacionais efetivamente democráticas.
·
Quais
os pontos negativos e positivos do Novo Ensino Médio?
Ângela Both
Chagas – Na tese de doutorado que defendi em julho de 2024, argumento que
o Novo Ensino Médio representa uma política
do autoritarismo materializada no processo de implementação da rede
estadual do Rio Grande do Sul, reduzindo a autonomia das escolas e aprofundando
as desigualdades.
Para isso, é preciso rememorar que essa política foi instituída a partir de uma
Medida Provisória apresentada em 2016, sem diálogo com estudantes e educadores,
a partir de um “diagnóstico” de crise do Ensino Médio brasileiro. A solução
seria flexibilizar os currículos por meio da escolha individual dos percursos
formativos.
O que constatei,
depois analisar documentos e dados estatísticos e depois de mergulhar nos
cotidianos de duas escolas, foi que, em vez de tornar a escola mais atraente
aos estudantes com a propalada liberdade de escolha, essa reforma promoveu o
esvaziamento do conhecimento escolar e sua substituição por componentes
fragmentados e “sem sentido” das trilhas, como afirmaram estudantes
entrevistados.
Por isso, não
consigo ver pontos positivos em uma política que faz do desalento um projeto
educativo, na medida em que retira da escola sua função de garantir aos
estudantes a apropriação dos conhecimentos culturais e científicos fundamentais
para a superação das desigualdades. Mas o projeto do
autoritarismo almeja justamente isso, disciplinar as juventudes para
a precariedade
da vida,
restringindo os espaços de construção coletiva, responsabilizando os indivíduos
pelos fracassos e despolitizando a escola, reduzida ao papel de cumprir
determinações impostas centralmente.
Espero que o
“novíssimo Ensino Médio”, como tem sido chamada essa política aprovada em 2024,
não represente mais do mesmo e que os ataques à educação enquanto um bem
público sejam enfrentados com mais força em 2025.
·
Como
será distribuída a carga horária das disciplinas tradicionais e dos itinerários
formativos no Ensino Médio agora? O que mudará para os estudantes a partir de
2025?
Ângela Both
Chagas – A lei de 2017 definiu um teto de 1.800 horas para a Formação
Geral Básica (FGB), que compreende os componentes curriculares comuns a todos
os estudantes, e 1.200 horas para os itinerários formativos, a dita parte
flexível. Com a mudança na legislação em 2024, tivemos uma ampliação da FGB
para um mínimo de 2.400 horas. Com isso, reduziu-se os itinerários a 600 horas.
Em outras palavras, para uma escola com jornada de cinco horas diárias, a
proporção da Formação Geral passou de um teto de 60% da carga horária para um
mínimo de 80%. Claro que é importante fazer a ressalva que para a formação
técnica-profissional, a lei abre a possibilidade de uma carga horária menor
para a FGB, de no mínimo 2.100 horas.
O ano de 2025 será
de transição para o novo modelo, mas aqui na rede estadual do Rio Grande
do Sul tanto os estudantes que entrarão no Ensino Médio este ano quanto
aqueles que já estavam cursando o “velho” Novo Ensino Médio terão a
carga horária das disciplinas escolares ampliada, o que é importantíssimo tendo
em vista os prejuízos para a formação dos estudantes fartamente registrados nas
pesquisas científicas com a inserção dos itinerários formativos.
·
Como
avalia a introdução dos itinerários formativos? Como professores e alunos têm
avaliado essas aulas?
Ângela Both
Chagas – Na pesquisa nas escolas estaduais gaúchas, todos os
entrevistados, tanto estudantes quanto professores, manifestaram preocupação
com o esvaziamento da formação científica, cultural e humanística decorrente da
inserção dos itinerários formativos. Para exemplificar: no 2º ano
do Ensino Médio, havia em 2023 três períodos para Português e Matemática,
a mesma carga horária de “Empreender-se e Inovar para a Sustentabilidade”, um
dos componentes curriculares entre as trilhas que compõem os itinerários. Em
contraponto, apenas um período para História, Geografia, Sociologia, Química,
Física, Biologia, Arte, Educação Física, Literatura, Inglês e Espanhol. Um
período para Ensino Religioso; nenhum para Filosofia.
Para os estudantes,
os novos componentes são “sem sentido” e “perda de tempo”. Para os professores,
não há aprofundamento nas ementas dos componentes e nem formação adequada para
trabalhá-los, o que, combinado com a dissociação da formação inicial desses
docentes, leva ao improviso. Além disso, toda a estrutura curricular dos
itinerários, por meio de trilhas e eletivas, foi construída centralmente, pela
Secretaria da Educação (SEDUC-RS), sem a participação das comunidades escolares
e sem a garantia de condições materiais para uma oferta diversificada.
·
Que
avaliações os professores e alunos estão fazendo das mudanças? Quais são os
argumentos favoráveis e contrários às alterações previstas a partir do próximo
ano?
Ângela Both
Chagas – Uma diretora que eu entrevistei antes da sanção da nova lei
resumiu de uma forma muito interessante este processo de construção da nova
política de Ensino Médio: “As pessoas que propuseram a mudança A estão propondo
a mudança B? Então a gente continua no mesmo tabuleiro, sendo coordenados pelas
mesmas pessoas”. Acredito que essa fala sintetiza um certo ceticismo em relação
às mudanças, no sentido de que pessoas e instituições que estiveram muito
alinhadas à construção do Novo Ensino Médio passaram a trabalhar na
sua reestruturação, inclusive atuando dentro da estrutura do Ministério da
Educação.
Então existe um
processo de incertezas nas escolas sobre o quanto essa nova política
efetivamente enfrentará os retrocessos dos últimos anos. Claro que há pontos
importantes de mudança, como a ampliação da carga horária da formação comum,
que é comemorada tanto por professores quanto por estudantes. Mas existe uma
preocupação quanto à manutenção de uma estrutura curricular de caráter
utilitarista, de preparação para o mercado
de trabalho precarizado e para o treinamento para as avaliações em
escala. E, ainda, da continuidade do processo de desvalorização da escola e dos
seus profissionais na construção das políticas educacionais. As primeiras ações
da SEDUC-RS para a implementação das mudanças a partir de 2025 já indicam a
manutenção de encenações participativas, relegando às escolas o papel de
execução da política decretada centralmente pela Secretaria e seus parceiros.
·
Uma
das críticas ao Novo Ensino Médio diz respeito aos impactos na formação dos
jovens. Pode explicar quais são as consequências da reforma na formação dos
estudantes?
Ângela Both
Chagas – Com o ingresso de uma população historicamente excluída na escola
nas últimas décadas, tivemos um aprofundamento da disputa entre os sentidos
do Ensino Médio. O que argumentei na pesquisa de doutorado, a partir da
análise da rede estadual do RS, é que esta reforma está alinhada a uma visão de
escola como treinadora de habitus neoliberal, ou seja, que
esvazia os conhecimentos culturais e científicos, a fim de privilegiar o
desenvolvimento de competências instrumentais e a escolha
individual.
Isso mostra que não é à toa que Filosofia passou a não ter mais espaço no
currículo.
Com isso, o foco
do Ensino Médio passa a ser o treinamento das juventudes para as
avaliações em escala e a legitimação da competição com vistas a um mercado
de trabalho precarizado, responsabilizando os indivíduos pelos seus fracassos.
Entre as consequências dessa política está o desalento dos estudantes em
relação ao futuro, já que o Novo Ensino Médio não prepara nem para a
continuidade dos estudos, nem para a inserção qualificada no mundo do trabalho.
Inclusive dados de uma pesquisa da própria SEDUC-RS com estudantes de todo o
estado – e que obtive via Lei de Acesso à Informação porque nunca
foram publicizados – indicam que a grande maioria deles não vê perspectivas
futuras com o Novo Ensino Médio.
·
Quais
desigualdades podem ser acentuadas entre os estudantes a partir do Novo Ensino
Médio?
Ângela Both
Chagas – Desde 2016, quando o Novo Ensino Médio (NEM) foi
apresentado via Medida Provisória, pesquisadores alertavam para o
aprofundamento das desigualdades, o que se efetivou com o avanço da
implementação nas redes de ensino. Eu costumo falar em camadas de desigualdades
educacionais, que estão ligadas às desigualdades
sociais porque
não podemos apartar o que acontece na escola das condições de vida, de moradia
e de renda da população.
Então essas
desigualdades não são apenas entre as escolas privadas que mantêm uma formação
para ingresso na Educação Superior e as escolas públicas submetidas ao
esvaziamento curricular do NEM. É também entre as escolas públicas, como no
caso da rede estadual do Rio Grande do Sul, onde algumas instituições atuam nas
brechas de autonomia para a contenção de danos e há aquelas que, diante
da precarização extrema, não conseguem nem garantir o mínimo.
Aqui abro um
parêntese para citar o exemplo de uma das escolas onde fiz pesquisa, na qual
todos os dias estudantes entravam e saíam mais cedo por conta da falta de professores.
Em uma das turmas que acompanhei, durante seis meses não houve aula de nenhum
dos três componentes da trilha de Expressão Corporal por não haver docente
designado pela SEDUC-RS, mesmo diante dos inúmeros pedidos feitos pela direção.
Temos, ainda, as
desigualdades intraescolares, entre estudantes que conseguem mobilizar recursos
para buscar em outros espaços oportunidades para a continuidade dos estudos e a
inserção mais qualificada no mercado de trabalho, e os que precisam
sobreviver diante das condições
precárias de estudo, de trabalho e de vida.
·
A
reforma do Ensino Médio representa uma redução da participação do Estado na
educação?
Ângela Both
Chagas – Um dos pontos que me chamou atenção durante a pesquisa de
doutorado, principalmente ao mapear todas as notícias publicadas no site da
Secretaria da Educação do Rio Grande do Sul, de 2019 a 2023, foi um aumento da
presença de fundações e institutos ligados ao empresariado na condução da
política de Ensino Médio. Cruzei essas informações com dados de convênios
firmados pela SEDUC-RS e cheguei a 16 parceiros envolvidos com a implementação
do Novo Ensino Médio na rede estadual do Rio Grande do Sul.
São fundações, a
maioria com base em São Paulo, que trabalharam na estruturação da matriz
curricular, na construção dos cadernos com as ementas das trilhas, na formação
dos professores, nas estratégias de comunicação. Então o Estado transfere para
essas fundações o seu papel, esvaziando o poder das instituições escolares.
Temos aquilo que a professora Vera
Peroni define
com uma privatização
da política educacional, com graves efeitos para a democracia. A legislação de
2024 não enfrenta o empresariamento da educação, pelo contrário, mantém a
porteira aberta para as parcerias, por isso a importância de seguirmos
acompanhando esses movimentos nas pesquisas.
·
No
longo prazo, quais os impactos que este novo modelo de Ensino Médio pode
causar?
Ângela Both
Chagas – Em 2024, fechamos o primeiro ciclo de implementação do Novo
Ensino Médio em todas as escolas. Ou seja: estudantes que entraram e
concluíram a etapa sob a nova estrutura curricular. Em 2023, para a pesquisa de
doutorado, entrevistei um estudante que foi às ruas protestar pela revogação
do NEM. Ele disse que era mobilizado pelo desejo de que a irmã mais nova
tivesse uma experiência diferente quando chegasse ao Ensino Médio, sem a
estrutura dos itinerários formativos. Então nós não vamos recuperar a “perda de
tempo” com os componentes “sem sentido” do NEM, para retomar as expressões dos
estudantes entrevistados, mas podemos fazer diferente para quem está chegando
na etapa. Enfrentar os impactos das desigualdades
educacionais impulsionadas pelo Novo Ensino Médio requer uma
política educacional que coloque centralidade na educação como um direito de
todas e todos, um bem público que não pode ser apropriado pelos interesses de
alguns. Os esforços até agora têm sido, no mínimo, insuficientes.
Fonte: Por Angela Both Chagas, para
IHU
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