Arte e Memória: Fernanda Torres e a Incorruptibilidade da História
(Ditadura Nunca Mais)
A frase da grande artista performática sérvia Marina Abramovic poderia muito
bem ser relembrada para contextualizar melhor a dimensão do significado do
reconhecimento de Fernanda Torres ao receber o prêmio
de Melhor Atriz em Drama no Globo de Ouro 2025, tornando-se a
primeira mulher e atriz brasileira a conquistar a estatueta por sua performance
em Ainda Estou Aqui.
Mais do que o justo reconhecimento no âmbito
internacional de uma das mais brilhantes atrizes do país, filha de outro ícone
das artes dramáticas brasileiras, Fernanda Montenegro — igualmente premiada em
1999 com o Globo de Ouro de Melhor Filme de Língua Não Inglesa (título atual)
por Central do Brasil —, o
reconhecimento do brilhantismo, já conhecido pelo povo brasileiro, das nossas
“Fernandas” possui, neste ano, um significado ainda maior: para as vítimas da
ditadura militar de 1964, imposta ao país por meio de um golpe de Estado; para
os familiares de perseguidos políticos assassinados e desaparecidos; e para os
profissionais que atualmente se dedicam à preservação da memória política no
Brasil.
O fato é que a brutalidade e os crimes contra a
humanidade cometidos pela ditadura de 1964 são, mais uma vez, expostos ao
mundo. Exceto para setores extremistas ou para aqueles que ignoram a própria
história, não há mais como esconder o grau de barbárie que marca o caráter do
golpe de 1964.
Não sem razão, fatos recentes corroboram tal
constatação, como a decisão do ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal
Federal, para quem o desaparecimento forçado das vítimas da ditadura constitui
um crime que se prolonga no tempo e, portanto, está fora do alcance da
estapafúrdia interpretação da Lei de Anistia de 1979. Para alguns magistrados,
essa interpretação impede o processamento e a condenação de perpetradores,
torturadores e assassinos que cometeram crimes contra a humanidade em nome do
regime ditatorial — crimes, por sua natureza, imprescritíveis. A tese
sustentada pelo ministro Flávio Dino, de que a ocultação de cadáveres é um crime de
natureza permanente,
deve obter apoio da maioria do STF no Pleno.
A despeito do evidente avanço da extrema-direita no mundo e dos efeitos
sombrios que a humanidade, no futuro, poderá ter de lidar como consequência, a
democracia e os direitos humanos insistem em dizer: “…ainda estamos aqui, ditadura nunca mais…”.
Eis uma das funções primordiais da arte, como já
afirmou Vera Tollmann, curadora de arte em Berlim: “Confrontar seu público com
informações desagradáveis, transformando um conceito complexo e difícil de
digerir em uma experiência estética.”
Assim, a arte apresenta sempre novas perspectivas —
emocionais, pedagógicas e estéticas — que se dirigem diretamente à alma, ao
espírito e ao coração. Não apenas transmite informações sobre a verdade
histórica, contribuindo para a consolidação da memória social e coletiva, mas
também desperta a percepção sobre a experiência da dor, da luta e da esperança
que a mantém sempre viva: o drama humano, normalmente camuflado pelas
estatísticas e pelas pesquisas acadêmicas.
A arte faz memória pulsar.
E sua eficiência na transmissão de sentimentos e
informações a cada espectador, a cada espectadora, os tornam mais conscientes
de sua própria identidade, uma vez que os conduzem à própria origem a partir do
encontro com os demais, no âmago do próprio contexto histórico. Afinal, quando
nos tornamos menos ignorantes sobre nossa própria história tornamo-nos mais
brasileiros e crescemos como indivíduos e como um país mais democrático e
pacificado.
Não sem razão, escreveu Hannah Arendt sobre o
significado da relação entre arte e memória que a “… liberdade de contemplação
é uma ação plural que necessita do outro e se realiza no outro; é a afirmação
política da própria comunidade que se efetiva nos espaços da polis, espaços públicos, lugar de encontro
entre os iguais (assim, a promessa da política se realiza nos espaços
públicos). O desafio da arte e da arquitetura é produzir os lugares de encontro
e de ócio, o espaço simbólico no qual a cidade, a democracia e a política se
manifestam e se reúnem em liberdade…” (Gobierno de la Ciudad de Buenos Aires. Parque de la Memoria. Monumento a las Víctimas del
Terrorismo de Estado. 2ª ed. ampliada. Ciudad Autónoma de
Buenos Aires: Gobierno de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires, 2017, p. 50).
Importantes memoriais e museus ao redor do mundo estão
guarnecidos por obras de arte notáveis, em todas as suas expressões. Desde
telas como Guernica (óleo
sobre tela, 1937, Pablo Picasso), que denunciou o massacre da cidade basca de
Guernica (Gernika-Lumo) pela força aérea de Hitler, apoiador do déspota
Francisco Franco (1892-1975) na Guerra Civil Espanhola, passando pela dramática
escultura do sobrevivente iugoslavo Nandor Glid (1924-1997), que sobreviveu ao
Holocausto e cuja obra guarnece o memorial do campo de concentração de Dachau
(Alemanha), até o Monumento em Homenagem aos Mortos e Desaparecidos durante o
regime ditatorial militar de 1964 (2014), de autoria do arquiteto Ricardo
Ohtake, em São Paulo, no Parque do Ibirapuera, todos — e muitos outros que
poderiam ser citados — projetam um dos destinos mais nobres da arte: iluminam o
que de melhor o ser humano pode criar sobre a própria história e destacam a
esperança de que ditaduras e genocídios nunca mais se repitam.
Mas há outra dimensão sobre a função da arte na
consolidação da memória: ela é neutra. Assim como a memória, a arte pode ser
utilizada de forma distorcida e empregada a serviço do mal, do racismo e do
ódio, como faziam os nazistas com as famigeradas “mostras de arte degenerada”
durante o período nazista.
Como ensinou Tzvetan Todorov: “… se temos que conservar
viva a memória do passado, coloquemos o passado a serviço do presente e a
memória a serviço da justiça…” (resenha do texto Abusos da Memória, de Tzvetan Todorov, por Bernat
Castany Prado).
Assim é a arte, um importante instrumento para
realização da Verdade, Memória e Justiça, o que nem sempre se dá a partir dos
Tribunais, mas da história por ela eternizada.
Nesse sentido, a obra Ainda
Estou Aqui (Walter Salles, 2024) ensina, hoje, com repercussão
internacional, a verdadeira face bárbara da ditadura militar de 1964 e mostra
como uma grande mulher brasileira, Eunice Paiva, lutou por décadas para que se
tornasse conhecido o paradeiro de seu marido, o deputado Rubens Paiva, além de
ter lutado pelos povos indígenas e por outros desaparecidos políticos.
E, como lembra Ivan Akselrud Seixas, sobrevivente do DOI-CODI de São Paulo,
assim como Eunice Paiva, outras grandes mulheres também buscaram suas filhas,
seus filhos e maridos sequestrados, torturados e assassinados pela ditadura de
1964, dentre as quais Dilma Borges, em busca de Mário Alves; Maria Augusta
Capistrano, em busca de Davi Capistrano; Amparo Araujo, na luta por localizar
seu irmão de Luiz Almeida Araujo; Felicida Mardini de Oliveira, em busca de sua
filha Ísis Dias de Oliveira, diplomada após mais de 50 anos pela Faculdade de
Ciências Sociais da USP em 26 de agosto de 2024; Elza Joana, mãe de Joel
Vasconcelos; Helenalda de Souza Nazaré, irmã de Helenira de Souza Nazaré; Zuzu
Angel, mãe de Stuart Angel e também assassinada pela ditadura; Elzinta Santa
Cruz, mãe de Fernando Santa Cruz; Alzira Grabois,– viúva de Maurício Grabois;
além de Fany Akselrud de Seixas, viúva de Joaquim Alencar de Seixas assassinado
no DOI-CODI de São Paulo e pais de Ivan Akselrud Seixas, que registrou como a
vitória de Fernanda Torres é importante e reflete a luta de muitas outras
mulheres brasileiras, assim com Eunice Paiva.
A todas elas e às vítimas da ditadura de 1964, nossas
homenagens.
¨ Globo de
Ouro para Fernanda Torres mostra que crimes da ditadura não podem ser
esquecidos nem anistiados. Por Aquiles Lins
A vitória de Fernanda Torres
no Globo de Ouro de melhor atriz pelo filme Ainda Estou Aqui transcende
a celebração de um feito histórico para o cinema brasileiro. O prêmio é, acima
de tudo, um convite à reflexão sobre a importância de preservar a memória e
buscar justiça pelos crimes cometidos durante a Ditadura Militar brasileira.
Na obra dirigida por Walter
Salles, Fernanda interpreta Eunice Paiva, advogada e viúva do deputado federal
Rubens Paiva, morto sob tortura em 1971 após ser sequestrado por agentes do
regime. A premiação não apenas reconhece o talento de Fernanda Torres, mas também
dá visibilidade a uma história que o Brasil ainda luta para enfrentar. Eunice
Paiva simboliza a resiliência em meio à dor e a busca incansável por justiça,
mesmo diante de um Estado que se recusou a reconhecer seus crimes por décadas.
O discurso de Fernanda Torres ao receber o prêmio reflete a força da arte como
resistência. A atriz dedicou a premiação à mãe, Fernanda Montenegro, que há 25
anos venceu o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro com Central do Brasil,
também dirigido por Walter Sales.
A celebração de Ainda
Estou Aqui em uma premiação internacional como o Globo de Ouro é um
lembrete de que a cultura pode ser uma ponte para revisitar o passado e
iluminar os erros que não podem ser repetidos. Enquanto o país não se
comprometer plenamente com a justiça e a reparação, as feridas da Ditadura
continuarão abertas.
O reconhecimento
internacional do filme, impulsionado pelo talento de Fernanda Torres e pela
coragem das histórias que ele conta, é um passo importante para que o Brasil
não se esqueça de seu passado e para que a sociedade reforce seu compromisso
com os direitos humanos e a democracia.
<><> Importância da memória
A Ditadura Militar
brasileira (1964-1985) deixou um rastro de violência que ainda ecoa na
sociedade. Apesar das inúmeras evidências de tortura e assassinatos políticos,
a Lei da Anistia de 1979 blindou os responsáveis de qualquer julgamento,
legando-nos uma ferida aberta que impede o país de avançar plenamente na
consolidação de sua democracia.
Nesse contexto, trabalhos
como o de Marcelo Rubens Paiva e produções cinematográficas como Ainda
Estou Aqui desempenham um papel crucial. Eles dão voz às vítimas e às
famílias, preservando memórias que o tempo e a negligência institucional tentam
apagar. Mais do que relatos históricos, são lembretes da urgência de um debate
nacional sobre a responsabilização de quem violou direitos humanos.
Instituída em 2011 pela
presidente Dilma Rousseff, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) documentou
graves violações contra os direitos humanos cometidas pelo regime militar,
identificando responsáveis e resgatando histórias de centenas de vítimas.
Embora seu relatório final tenha sido um marco, os avanços na reparação às
famílias e na responsabilização dos agentes da repressão permanecem tímidos. O
caso de Rubens Paiva, cujo corpo jamais foi encontrado, expõe as lacunas de um
país que ainda convive com os fantasmas do autoritarismo. Sua história só veio
à tona oficialmente mais de 40 anos após sua morte, revelando o impacto do
silêncio e da impunidade na consolidação da verdade histórica.
A luta de Eunice Paiva não
foi em vão. Hoje, familiares de vítimas de crimes cometidos pela Ditadura
Militar já podem ir ao cartório e solicitar a retificação da certidão de óbito
para constar que seus entes foram vítimas de “morte não natural, violenta,
causada pelo Estado a desaparecido no contexto da perseguição sistemática à
população identificada como dissidente política no regime ditatorial instaurado
em 1964”. Ainda Estou Aqui nos mostra que anistia é a pior solução para os
agentes do estado que assassinam e subvertem a democracia.
¨ Fernanda
Torres e a questão Brasil. Por Márcia Tiburi
O merecido Globo de Ouro
recebido por Fernanda Torres trouxe à tona o Brasil - e o ser brasileiro ou
brasileira - como questão. Tanto a autodesvalorização, quanto a surpresa com um
prêmio internacional fazem parte do nosso “Complexo de Vira-Lata” .
O prêmio se torna uma
espécie de bálsamo. Para quem sabe a profundidade da ferida da ditadura militar
no Brasil, é um bálsamo ainda mais intenso. Eunice Paiva, a personagem
histórica, entendeu na pela a extensão da ferida ainda aberta: o que aconteceu
com Rubens Paiva - homem branco e burguês - acontece com a população negra e
indígena diariamente. Enquanto vemos Fernanda Torres receber seu prêmio com
todas as glórias, vemos os corpos indígenas sangrando no Mato Grosso. O
constraste entre esses mundos mostra a profundidade da ferida. Que as pessoas
entendam o que Eunice Paiva entendeu é a parte mais importante desse filme de
Walter Salles.
Sobre o diretor há que se
reconhecer seu mérito que faz pensar no mérito que muita gente poderia ter no
Brasil, caso houvesse oportunidade. Oportunidade se faz com educação, cultura,
direitos básicos assegurados. É preciso dizer mais que isso no pais da desigualdade
de classe, raça e gênero?
Sobre o orgulho nacional que
desponta é preciso dizer ainda que a baixa autoestima é colonial e é vivida
coletivamente. É também diariamente promovida pela humilhação dos poderes
vigentes - político, midiático, etc. Nesse cenário, não é fácil ver potências
nacionais quando somos levados a não nos valorizar. De fato, falamos português,
uma língua que não conta no cenário do inglês internacional, e de repente, um
filme nessa língua periférica fura uma bolha, uma atriz ganha um prêmio
importantíssimo, numa competição envolvendo outras atrizes muito bem inscritas
nos poder do cinema internacional e, bingo, é Brasil!
Que ninguém perca de vista
que AINDA ESTOU AQUI consegue a façanha de colocar um sentimento de empatia na
cultura política, fazendo pensar no horror do Estado matador. A cada ato da
politica militar truculenta pelo Brasil afora, lembremos de Eunice Paiva e da
luta pelos direitos humanos.
Fonte: Por Flávio
de Leão Bastos Pereira, no Le Monde/Brasil 247
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