quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

Arte e Memória: Fernanda Torres e a Incorruptibilidade da História (Ditadura Nunca Mais)

A frase da grande artista performática sérvia Marina Abramovic poderia muito bem ser relembrada para contextualizar melhor a dimensão do significado do reconhecimento de Fernanda Torres ao receber o prêmio de Melhor Atriz em Drama no Globo de Ouro 2025, tornando-se a primeira mulher e atriz brasileira a conquistar a estatueta por sua performance em Ainda Estou Aqui.

Mais do que o justo reconhecimento no âmbito internacional de uma das mais brilhantes atrizes do país, filha de outro ícone das artes dramáticas brasileiras, Fernanda Montenegro — igualmente premiada em 1999 com o Globo de Ouro de Melhor Filme de Língua Não Inglesa (título atual) por Central do Brasil —, o reconhecimento do brilhantismo, já conhecido pelo povo brasileiro, das nossas “Fernandas” possui, neste ano, um significado ainda maior: para as vítimas da ditadura militar de 1964, imposta ao país por meio de um golpe de Estado; para os familiares de perseguidos políticos assassinados e desaparecidos; e para os profissionais que atualmente se dedicam à preservação da memória política no Brasil.

O fato é que a brutalidade e os crimes contra a humanidade cometidos pela ditadura de 1964 são, mais uma vez, expostos ao mundo. Exceto para setores extremistas ou para aqueles que ignoram a própria história, não há mais como esconder o grau de barbárie que marca o caráter do golpe de 1964.

Não sem razão, fatos recentes corroboram tal constatação, como a decisão do ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal, para quem o desaparecimento forçado das vítimas da ditadura constitui um crime que se prolonga no tempo e, portanto, está fora do alcance da estapafúrdia interpretação da Lei de Anistia de 1979. Para alguns magistrados, essa interpretação impede o processamento e a condenação de perpetradores, torturadores e assassinos que cometeram crimes contra a humanidade em nome do regime ditatorial — crimes, por sua natureza, imprescritíveis. A tese sustentada pelo ministro Flávio Dino, de que a ocultação de cadáveres é um crime de natureza permanente, deve obter apoio da maioria do STF no Pleno.

A despeito do evidente avanço da extrema-direita no mundo e dos efeitos sombrios que a humanidade, no futuro, poderá ter de lidar como consequência, a democracia e os direitos humanos insistem em dizer: “…ainda estamos aqui, ditadura nunca mais…”.

Eis uma das funções primordiais da arte, como já afirmou Vera Tollmann, curadora de arte em Berlim: “Confrontar seu público com informações desagradáveis, transformando um conceito complexo e difícil de digerir em uma experiência estética.”

Assim, a arte apresenta sempre novas perspectivas — emocionais, pedagógicas e estéticas — que se dirigem diretamente à alma, ao espírito e ao coração. Não apenas transmite informações sobre a verdade histórica, contribuindo para a consolidação da memória social e coletiva, mas também desperta a percepção sobre a experiência da dor, da luta e da esperança que a mantém sempre viva: o drama humano, normalmente camuflado pelas estatísticas e pelas pesquisas acadêmicas.

A arte faz memória pulsar.

E sua eficiência na transmissão de sentimentos e informações a cada espectador, a cada espectadora, os tornam mais conscientes de sua própria identidade, uma vez que os conduzem à própria origem a partir do encontro com os demais, no âmago do próprio contexto histórico. Afinal, quando nos tornamos menos ignorantes sobre nossa própria história tornamo-nos mais brasileiros e crescemos como indivíduos e como um país mais democrático e pacificado.

Não sem razão, escreveu Hannah Arendt sobre o significado da relação entre arte e memória que a “… liberdade de contemplação é uma ação plural que necessita do outro e se realiza no outro; é a afirmação política da própria comunidade que se efetiva nos espaços da polis, espaços públicos, lugar de encontro entre os iguais (assim, a promessa da política se realiza nos espaços públicos). O desafio da arte e da arquitetura é produzir os lugares de encontro e de ócio, o espaço simbólico no qual a cidade, a democracia e a política se manifestam e se reúnem em liberdade…” (Gobierno de la Ciudad de Buenos Aires. Parque de la Memoria. Monumento a las Víctimas del Terrorismo de Estado. 2ª ed. ampliada. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Gobierno de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires, 2017, p. 50).

Importantes memoriais e museus ao redor do mundo estão guarnecidos por obras de arte notáveis, em todas as suas expressões. Desde telas como Guernica (óleo sobre tela, 1937, Pablo Picasso), que denunciou o massacre da cidade basca de Guernica (Gernika-Lumo) pela força aérea de Hitler, apoiador do déspota Francisco Franco (1892-1975) na Guerra Civil Espanhola, passando pela dramática escultura do sobrevivente iugoslavo Nandor Glid (1924-1997), que sobreviveu ao Holocausto e cuja obra guarnece o memorial do campo de concentração de Dachau (Alemanha), até o Monumento em Homenagem aos Mortos e Desaparecidos durante o regime ditatorial militar de 1964 (2014), de autoria do arquiteto Ricardo Ohtake, em São Paulo, no Parque do Ibirapuera, todos — e muitos outros que poderiam ser citados — projetam um dos destinos mais nobres da arte: iluminam o que de melhor o ser humano pode criar sobre a própria história e destacam a esperança de que ditaduras e genocídios nunca mais se repitam.

Mas há outra dimensão sobre a função da arte na consolidação da memória: ela é neutra. Assim como a memória, a arte pode ser utilizada de forma distorcida e empregada a serviço do mal, do racismo e do ódio, como faziam os nazistas com as famigeradas “mostras de arte degenerada” durante o período nazista.

Como ensinou Tzvetan Todorov: “… se temos que conservar viva a memória do passado, coloquemos o passado a serviço do presente e a memória a serviço da justiça…” (resenha do texto Abusos da Memória, de Tzvetan Todorov, por Bernat Castany Prado).

Assim é a arte, um importante instrumento para realização da Verdade, Memória e Justiça, o que nem sempre se dá a partir dos Tribunais, mas da história por ela eternizada.

Nesse sentido, a obra Ainda Estou Aqui (Walter Salles, 2024) ensina, hoje, com repercussão internacional, a verdadeira face bárbara da ditadura militar de 1964 e mostra como uma grande mulher brasileira, Eunice Paiva, lutou por décadas para que se tornasse conhecido o paradeiro de seu marido, o deputado Rubens Paiva, além de ter lutado pelos povos indígenas e por outros desaparecidos políticos.

E, como lembra Ivan Akselrud Seixas, sobrevivente do DOI-CODI de São Paulo, assim como Eunice Paiva, outras grandes mulheres também buscaram suas filhas, seus filhos e maridos sequestrados, torturados e assassinados pela ditadura de 1964, dentre as quais Dilma Borges, em busca de Mário Alves; Maria Augusta Capistrano, em busca de Davi Capistrano; Amparo Araujo, na luta por localizar seu irmão de Luiz Almeida Araujo; Felicida Mardini de Oliveira, em busca de sua filha Ísis Dias de Oliveira, diplomada após mais de 50 anos pela Faculdade de Ciências Sociais da USP em 26 de agosto de 2024; Elza Joana, mãe de Joel Vasconcelos; Helenalda de Souza Nazaré, irmã de Helenira de Souza Nazaré; Zuzu Angel, mãe de Stuart Angel e também assassinada pela ditadura; Elzinta Santa Cruz, mãe de Fernando Santa Cruz; Alzira Grabois,– viúva de Maurício Grabois; além de Fany Akselrud de Seixas, viúva de Joaquim Alencar de Seixas assassinado no DOI-CODI de São Paulo e pais de Ivan Akselrud Seixas, que registrou como a vitória de Fernanda Torres é importante e reflete a luta de muitas outras mulheres brasileiras, assim com Eunice Paiva.

A todas elas e às vítimas da ditadura de 1964, nossas homenagens.

 

¨      Globo de Ouro para Fernanda Torres mostra que crimes da ditadura não podem ser esquecidos nem anistiados. Por Aquiles Lins

A vitória de Fernanda Torres no Globo de Ouro de melhor atriz pelo filme Ainda Estou Aqui transcende a celebração de um feito histórico para o cinema brasileiro. O prêmio é, acima de tudo, um convite à reflexão sobre a importância de preservar a memória e buscar justiça pelos crimes cometidos durante a Ditadura Militar brasileira.

Na obra dirigida por Walter Salles, Fernanda interpreta Eunice Paiva, advogada e viúva do deputado federal Rubens Paiva, morto sob tortura em 1971 após ser sequestrado por agentes do regime. A premiação não apenas reconhece o talento de Fernanda Torres, mas também dá visibilidade a uma história que o Brasil ainda luta para enfrentar. Eunice Paiva simboliza a resiliência em meio à dor e a busca incansável por justiça, mesmo diante de um Estado que se recusou a reconhecer seus crimes por décadas. O discurso de Fernanda Torres ao receber o prêmio reflete a força da arte como resistência. A atriz dedicou a premiação à mãe, Fernanda Montenegro, que há 25 anos venceu o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro com Central do Brasil, também dirigido por Walter Sales.

A celebração de Ainda Estou Aqui em uma premiação internacional como o Globo de Ouro é um lembrete de que a cultura pode ser uma ponte para revisitar o passado e iluminar os erros que não podem ser repetidos. Enquanto o país não se comprometer plenamente com a justiça e a reparação, as feridas da Ditadura continuarão abertas.

O reconhecimento internacional do filme, impulsionado pelo talento de Fernanda Torres e pela coragem das histórias que ele conta, é um passo importante para que o Brasil não se esqueça de seu passado e para que a sociedade reforce seu compromisso com os direitos humanos e a democracia.

<><> Importância da memória

A Ditadura Militar brasileira (1964-1985) deixou um rastro de violência que ainda ecoa na sociedade. Apesar das inúmeras evidências de tortura e assassinatos políticos, a Lei da Anistia de 1979 blindou os responsáveis de qualquer julgamento, legando-nos uma ferida aberta que impede o país de avançar plenamente na consolidação de sua democracia.

Nesse contexto, trabalhos como o de Marcelo Rubens Paiva e produções cinematográficas como Ainda Estou Aqui desempenham um papel crucial. Eles dão voz às vítimas e às famílias, preservando memórias que o tempo e a negligência institucional tentam apagar. Mais do que relatos históricos, são lembretes da urgência de um debate nacional sobre a responsabilização de quem violou direitos humanos.

Instituída em 2011 pela presidente Dilma Rousseff, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) documentou graves violações contra os direitos humanos cometidas pelo regime militar, identificando responsáveis e resgatando histórias de centenas de vítimas. Embora seu relatório final tenha sido um marco, os avanços na reparação às famílias e na responsabilização dos agentes da repressão permanecem tímidos. O caso de Rubens Paiva, cujo corpo jamais foi encontrado, expõe as lacunas de um país que ainda convive com os fantasmas do autoritarismo. Sua história só veio à tona oficialmente mais de 40 anos após sua morte, revelando o impacto do silêncio e da impunidade na consolidação da verdade histórica.

A luta de Eunice Paiva não foi em vão. Hoje, familiares de vítimas de crimes cometidos pela Ditadura Militar já podem ir ao cartório e solicitar a retificação da certidão de óbito para constar que seus entes foram vítimas de “morte não natural, violenta, causada pelo Estado a desaparecido no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política no regime ditatorial instaurado em 1964”. Ainda Estou Aqui nos mostra que anistia é a pior solução para os agentes do estado que assassinam e subvertem a democracia.

 

¨      Fernanda Torres e a questão Brasil. Por Márcia Tiburi

O merecido Globo de Ouro recebido por Fernanda Torres trouxe à tona o Brasil - e o ser brasileiro ou brasileira - como questão. Tanto a autodesvalorização, quanto a surpresa com um prêmio internacional fazem parte do nosso “Complexo de Vira-Lata” . 

O prêmio se torna uma espécie de bálsamo. Para quem sabe a profundidade da ferida da ditadura militar no Brasil, é um bálsamo ainda mais intenso. Eunice Paiva, a personagem histórica, entendeu na pela a extensão da ferida ainda aberta: o que aconteceu com Rubens Paiva - homem branco e burguês - acontece com a população negra e indígena diariamente. Enquanto vemos Fernanda Torres receber seu prêmio com todas as glórias, vemos os corpos indígenas sangrando no Mato Grosso. O constraste entre esses mundos mostra a profundidade da ferida. Que as pessoas entendam o que Eunice Paiva entendeu é a parte mais importante desse filme de Walter Salles. 

Sobre o diretor há que se reconhecer seu mérito que faz pensar no mérito que muita gente poderia ter no Brasil, caso houvesse oportunidade. Oportunidade se faz com educação, cultura, direitos básicos assegurados. É preciso dizer mais que isso no pais da desigualdade de classe, raça e gênero?

Sobre o orgulho nacional que desponta é preciso dizer ainda que a baixa autoestima é colonial e é vivida coletivamente. É também  diariamente promovida pela humilhação dos poderes vigentes - político, midiático, etc. Nesse cenário, não é fácil ver potências nacionais quando somos levados a não nos valorizar. De fato, falamos português, uma língua que não conta no cenário do inglês internacional, e de repente, um filme nessa língua periférica fura uma bolha, uma atriz ganha um prêmio importantíssimo, numa competição envolvendo outras atrizes muito bem inscritas nos poder do cinema internacional e, bingo, é Brasil! 

Que ninguém perca de vista que AINDA ESTOU AQUI consegue a façanha de colocar um sentimento de empatia na cultura política, fazendo pensar no horror do Estado matador. A cada ato da politica militar truculenta pelo Brasil afora, lembremos de Eunice Paiva e da luta pelos direitos humanos.

 

Fonte: Por Flávio de Leão Bastos Pereira, no Le Monde/Brasil 247

 

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