As famílias de
vítimas da ditadura que esperam novas certidões de óbito reconhecendo crimes do
regime
Causa da morte:
"Não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da
perseguição sistemática à população identificada como dissidente política
do regime ditatorial
instaurado em 1964".
É assim que mais de 400 certidões de óbito de brasileiros mortos e
desaparecidos durante a ditadura militar passarão a ser registradas.mSão documentos
que, até o momento, tinham como causa da morte "desconhecida".mOu
registrada "de acordo com a lei 9.140", a Lei dos Desaparecidos Políticos, que
reconheceu como mortas pessoas que sumiram em razão de participação ou acusação
de participação em atividades políticas durante a ditadura.
As alterações
atendem a uma das 29 recomendações do
relatório final da Comissão Nacional da Verdade. Instituída em
2011, a Comissão teve o papel de investigar as violações de direitos humanos
ocorridas na ditadura. Seu trabalho se estendeu até a entrega do relatório, em
2014. A determinação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) dará 30 dias aos
cartórios para que eles realizem as retificações, a contar a partir da
notificação. Devido ao recesso no judiciário, esse prazo ainda não começou a
contar.
A retificação das
certidões de óbito de mortos e desaparecidos na ditadura é algo muito aguardado
pelas famílias das vítimas. No filme Ainda Estou Aqui, a cena em
que Eunice Paiva, interpretada por
Fernanda Torres,
recebe a certidão de seu marido, o deputado Rubens Paiva, que desapareceu nas
mãos dos militares, levou para o cinema a realidade dessas famílias.
Rubens Paiva
desapareceu em 1971, mas foi só em 1996 que Eunice conseguiu um documento que
atestasse sua morte, por meio da Lei dos Mortos e Desaparecidos, sancionada no
ano anterior e que criou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos. A
Comissão coordenou o trabalho de busca e reconhecimento de ossadas de possíveis
mortos e desaparecidos na ditadura e a expedição das certidões de óbitos, mesmo
daqueles que jamais foram encontrados, como foi o caso de Rubens Paiva.mOutro
caso emblemático foi o da família do jornalista Vladimir Herzog, que conseguiu, em
2012, a retificação do documento que, até então, apontava suicídio como a causa
da sua morte.
Seis anos mais
tarde, a jornalista e advogada Lygia Jobim, filha do diplomata José Pinheiro
Jobim, também recebeu um novo atestado de óbito do pai, constando que o Estado
brasileiro foi o responsável por sua morte.m"Eu me lembro bem daquele dia.
Fiquei emocionadíssima. Peguei o documento, olhei em volta na rua. Entrei no
supermercado, pedi um café e fiquei ali", diz Lygia à BBC News Brasil.m"É
uma emoção muito grande e, ao mesmo tempo, estranha, porque ninguém fica feliz
quando recebe um atestado de óbito."mQuando foi sequestrado e morto, em
1979, Jobim estava escrevendo um livro que prometia revelar um esquema de
corrupção envolvendo a usina hidrelétrica de Itaipu.mFoi encontrado pendurado
pelo pescoço em uma cena montada, assim como Herzog, conforme foi reconhecido
pela Justiça anos mais tarde. Ainda assim, sua certidão trazia a causa da morte
como "indefinida".
Em 2019, no
primeiro ano de seu governo, o ex-presidente Jair Bolsonaro mudou a composição
da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, trocando quatro dos
sete integrantes, e os processos de retificação das certidões de
óbito ficaram emperrados. Depois, faltando 15 dias para o fim do seu
mandato, Bolsonaro extinguiu de vez a comissão, paralisando completamente os
processos.
A ativista dos
direitos humanos Maria do Amparo Araújo ficou nesse meio do caminho. Pediu a
retificação do documento do irmão, Luiz Almeida Araújo, com quem ela militava
na Ação Libertadora Nacional (ALN), e do companheiro, Luiz José da Cunha, ambos
mortos pela repressão. Mas só conseguiu retificar a certidão do irmão. "O
pedido do meu companheiro foi negado", conta ela, que é fundadora da ONG
Tortura Nunca Mais. "Recorri, e o pedido foi negado de novo. Isso
significa que não havia um procedimento padronizado [para realizar as
retificações] como está se pretendendo que seja agora [com essa resolução do
CNJ]." Para ela, a notícia sobre a retificação de todas as certidões de
óbito é uma formalização da responsabilização do Estado pelas mortes políticas
durante a ditadura. Mas não é o suficiente. "As pessoas continuam
desaparecendo porque são mortas pela Polícia Militar."
A desmilitarização
das polícias estaduais é outra das 29 recomendações do relatório da Comissão
Nacional da Verdade. Embora o documento tenha sido entregue há dez anos, um
levantamento do Instituto Vladimir Herzog, realizado antes dessa decisão do
CNJ, mostrou que uma parcela muito pequena das recomendações foram cumpridas
até agora. Dos 29 apontamentos, apenas dois foram integralmente concretizados.
O primeiro foi a
introdução da audiência de custódia, em 2015. Esse mecanismo garante que o
acusado por um crime, preso em flagrante, tenha o direito de ser ouvido por um
juiz, em até 24 horas após a detenção, para que sejam avaliadas eventuais
ilegalidades da sua prisão. A outra recomendação atendida, em 2021, foi a
revogação da Lei de Segurança Nacional. Criada durante a ditadura militar, a
lei previa, dentre outras coisas, pena de até quatro anos de detenção por
"fazer, em público, propaganda de processos violentos ou ilegais para
alteração da ordem política ou social", ou por "incitar a subversão
da ordem política ou social ou a animosidade entre as Forças Armadas ou entre
estas e as classes sociais ou as instituições civis".
·
Abertura
dos arquivos
Emocionada, a
especialista em finanças Marta Costa, sobrinha da guerrilheira Helenira de
Souza Resende Nazareth, conta que a retificação da certidão de óbito de sua tia
é um passo muito simbólico. "É muito significativo. Minha mãe tentou por
anos conseguir essa retificação", diz. "Hoje, ela está com 84 anos.
Essa conquista é uma devolutiva dessa luta de tantos anos."
Helenira, cujo
codinome era Fátima, fez parte da Guerrilha do Araguaia, um movimento de
resistência à ditadura ocorrido na região amazônica, quando desapareceu. Seu
corpo jamais foi encontrado, e a família nunca conseguiu realizar uma cerimônia
fúnebre. "Conseguimos trazer as ossadas do Araguaia para a UnB
[Universidade de Brasília], mas elas estão paradas lá há anos", diz Marta.
"Existe essa ansiedade de saber se a minha tia está lá e se poderemos
seguir, fazer o sepultamento."
Em julho de 2024, o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva instalou novamente a Comissão Especial de
Mortos e Desaparecidos Políticos. Um dos primeiros atos desta retomada foi a
entrega do pedido das retificações das certidões de óbito ao CNJ. As famílias
reconhecem esse passo, mas reafirmam que o caminho ainda é longo. "Minha
mãe tem 77 anos e até hoje não pôde fazer o luto e enterrar meu avô",
afirmou Leo Alves, músico e membro da Coalizão Brasil por Memória, Verdade e
Justiça, uma organização que defende a democracia, a memória e a reparação de
violações aos direitos humanos. Leo é neto do político Mario Alves, um dos
fundadores do extinto Partido Comunista Revolucionário Brasileiro (PCBR), e
desaparecido durante a ditadura. "Essa decisão é uma vitória, mas não é
tudo. Não constará, por exemplo, o local do sepultamento. Por isso nosso
trabalho não acaba aqui".
Lygia Jobim sente
falta das mesmas informações. Mesmo com o atestado de óbito do pai já
retificado, ela cobra explicações. "Queria uma explicação. A causa da
morte continua desconhecida. Sabemos que foi a repressão, mas falta o resto da
história para mim", diz Lygia. "Essa história não para aí. Do que meu
pai morreu? Quem matou meu pai?"
Leo Alves também
considera que a retificação dos documentos não é um desfecho para toda a
história. "No campo da Memória algo aconteceu, mas na Justiça, nada. A
condenação dos agentes de repressão nunca existiu", diz Leo. Assim como
todas as famílias de mortos e desaparecidos com quem a BBC News Brasil
conversou, o músico foi categórico. "Queremos a abertura dos
arquivos",
disse, sobre documentos da época da ditadura que jamais se tornaram públicos.
·
'Essa
história precisa ser contada'
A abertura dos
arquivos é outra das recomendações do relatório da Comissão Nacional da
Verdade. Segundo documento do Instituto Vladimir Herzog, essa resolução não só
não obteve avanço, como retrocedeu devido à "notória dificuldade em
adentrar os arquivos dos órgãos militares" pela Comissão Nacional da
Verdade.
Em 2004, o então
presidente Lula anunciou a abertura dos arquivos e um prazo de 30 anos,
renovável por mais 30, para que a sociedade tenha acesso aos documentos
ultrassecretos do regime militar. Passados 20 anos do decreto, os documentos ainda
não se tornaram públicos. "Tudo o que a Comissão Nacional da Verdade
entregou para nós foram documentos que já tínhamos", diz Marta Costa.
"Essa história
precisa ser contada para que a gente não passe por isso de novo."
A servidora pública
Lorena Moroni Girão Barroso, irmã de Jana Moroni Barroso, guerrilheira no
Araguaia que é considerada desaparecida política, também cobra o acesso aos
documentos militares. "A certidão de óbito retificada, embora tenha o
efeito do raciocínio lógico, já que agora o Estado está se responsabilizando
pelas mortes, o principal, que são as circunstâncias em que essas mortes
ocorreram, a certidão não trará", diz Lorena. "Isso só virá com a
abertura dos arquivos."
Lorena se recorda
que cada passo até aqui foi trabalhoso e dolorido, mas com pequenos avanços. "Quando
a gente entrou com um processo contra a União para saber a localização dos
corpos, se negava até a existência da guerrilha do Araguaia", diz ela. "Agora,
além do reconhecimento de que houve a guerrilha, há também o de que ela foi uma
das vítimas da ditadura."
¨ Como funcionava o SNI, o 'monstro' da repressão criado
pela ditadura militar há 60 anos
"Criei um
monstro", afirmou certa vez o general Golbery do
Couto e Silva (1911-1987). Ele se referia ao Serviço Nacional de Informações
(SNI), órgão de espionagem da ditadura militar
brasileira que
foi instituído em lei de 13 de junho de 1964. O general foi seu principal
idealizador — e primeiro chefe, ocupando o posto até março de 1967.
Semanas após o
golpe de 1964, o SNI foi criado em um "momento de grande paranoia anticomunista", conforme
contextualiza à BBC News Brasil o historiador Paulo Henrique Martinez,
professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp). "Foi também o momento
de passagem da estratégia de 'contenção e retaliação' aos movimentos
reivindicatórios por direitos e reformas sociais para a estratégia de
'repressão e contra-ataque' na América Latina", explica. "A
montagem destes serviços de identificação e vigilância, ditos de inteligência,
visava ao atendimento e garantia da doutrina de segurança nacional. Esta orientava-se
pelo combate ao 'inimigo interno', no interior das sociedades nacionais. Daí a
sanha de enxergar e de buscar 'comunistas' em toda parte, o
tempo todo. Rapidamente esta paranoia desdobrou-se em repressão a qualquer tipo
de crítica, de oposição e denúncias contra o regime instaurado em 1º de abril
de 1964."
O órgão foi extinto
em março de 1990, quando Fernando Collor, primeiro eleito
por voto direto após o regime militar, assumiu a presidência do país. Antes,
havia sido tão importante que dois dos chefes do SNI acabariam alçados à
presidência do país: Emílio Garrastazu Médici (1905-1985), comandou o serviço
de 1967 a 1969 e presidiu o Brasil de 1969 a 1974; e João Baptista Figueiredo
(1918-1999) esteve à frente do órgão de 1974 a 1978 e foi o último presidente
da ditadura militar, de 1979 a 1985. Segundo explica à BBC News Brasil o
jurista Marcelo Crespo, especialista em direito penal e coordenador do curso de
direito da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), o SNI, instituído
"com o objetivo legalmente previsto de assessorar o presidente da
República em relação às atividades de informação e contra-informação, se tornou
rapidamente o centro do complexo aparato repressivo estruturado pelos
militares, desempenhando ações vinculadas à repressão política, participando de
operações de rua e de sessões de tortura".
"Oficialmente,
foi criado para combater a subversão e proteger o Estado contra ameaças
internas e externas", diz. "A função do SNI era ser um órgão de
informação, de inteligência, para assessorar os presidente militares na tomada
de decisões", esclarece à reportagem o historiador Rodrigo Patto Sá Motta,
professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). "No início, a
preocupação deles era o monitoramento de inteligência com foco nos inimigos
derrotados mas, com o passar do tempo, com a resistência à ditadura aumentando,
as funções do SNI foram se ampliando e eles foram assumindo um caráter mais
nacional e de coordenação de todo um sistema que eles chamavam de 'comunidade
de informações'." Era o tal "monstro".
<><> Corrupção
Quando foi criado,
o SNI absorveu duas estruturas pré-existentes, o Serviço Federal de Informações
e Contrainformação e a Junta Coordenadora de Informações. Na prática, o novo
órgão passou a desempenhar o papel de espionagem da ditadura — segundo a
Comissão da Verdade, havia células do SNI atuando até dentro de universidades e
estudos recentes mostram que o órgão ajudou a encobrir casos de corrupção e a
criar a percepção pública de que os governantes militares eram menos corruptos
do que os civis. "O SNI desempenhou um papel crucial na construção da
imagem do regime militar como incorruptível", salienta Crespo. "O
órgão atuava na censura e na manipulação de informações, controlando a mídia e
a propaganda estatal. Ao censurar notícias desfavoráveis e promover narrativas
que exaltavam a moralidade e a eficiência dos militares, o SNI contribuiu para
a criação de uma percepção pública de que os líderes militares eram
incorruptíveis." "Além disso, o SNI monitorava e reprimia qualquer
denúncia ou investigação de corrupção que pudesse manchar a imagem do regime,
garantindo assim a manutenção dessa imagem positiva. Esse controle era parte de
uma rede altamente capilarizada e autônoma de arapongagem que incluía diversas
instituições civis e militares", complementa o jurista.
Sobre o
encobertamento de práticas de corrupção, Sá Motta lembra o caso do jornalista
Alexandre von Baumgarten (1930-1982), ex-agente do SNI que acabou executado,
com a mulher e um barqueiro, em alto mar após ter escrito um livro,
supostamente de ficção, sobre uma operação de tráfico de urânio envolvendo o
serviço. Mais tarde, descobriu-se que o Brasil, por meio do SNI, vendia um
composto de urânio clandestinamente para o Iraque, com o intuito de abastecer
seus reatores nucleares.
Martinez acredita
que essa percepção de que os militares não eram corruptos foi alimentada
"pela prerrogativa de serviço secreto e de segurança nacional" que
distinguiu o SNI. "Nem mesmo a CIA norte-americana desfrutava de tanta
autonomia administrativa e política", diz ele. "As ações do SNI não
eram reportadas e nem submetidas a ninguém, exceto ao general-presidente de
plantão. Ou seja, o SNI escapou ao controle de qualquer instância governamental
e social, tornou-se 'um monstro', nas palavras do próprio general pai desta
criatura ideológica e máquina repressiva", afirma. "Sem prestar
contas de nada e a ninguém, logo os desmandos foram sendo conhecidos e
acobertados pelos dirigentes e governantes em cada período. Contrabando,
chantagem, pressões, ameaças, atentados foram se sucedendo, sem que houvesse
qualquer esclarecimento público das denúncias, apuração de fatos e
identificação de responsáveis e demais envolvidos" diz o historiador. Ele
cita como emblemáticos "do desmando e da impunidade" os casos do
assassinato de Baumgarten e também do episódio da bomba do Riocentro, ataque
terrorista planejado pelo Exército e pela Polícia Militar em 1981.
"Levaram à fúria e ao desligamento do próprio general Golbery da equipe de
governo do [então presidente] general Figueiredo", relata.
<><> Estrutura
Pelo organograma, o
chefe do SNI tinha status de ministro. Golbery do Couto e Silva foi sucedido
por Médici, depois por Carlos Alberto da Fontoura (1912-1997), Figueiredo,
Octávio Aguiar de Medeiros (1922-2005) e Ivan de Souza Mendes (1922-2010),
todos eles militares. Ligado à estrutura da presidência, o SNI gozava de imenso
poder e quase ilimitadas prerrogativas. Podia investigar qualquer um que
considerasse suspeito e de seus relatórios originavam-se decisões da cúpula do
país. "Era uma estrutura nacional, com a central em Brasília e agências
nas principais capitais", explica Sá Motta. "Com o tempo eles foram
ampliando. No final da ditadura havia mais de 100 unidades de informação, quase
200. Só no meio das universidades eram mais de 40. O SNI se tornou um sistema
muito grande, capilarizado. Com isso eles tinham informação do Brasil todo e
coordenavam uma máquina de informação."
Segundo o
professor, foi por isso que o criador Couto e Silva classificou o aparato como
"um monstro". "Ficou grande. Além de ter ficado também
corrupto", frisa. "O SNI tinha uma estrutura hierárquica e complexa,
com o presidente da República no topo, seguido pelo chefe do SNI, que tinha
status de ministro", salienta Crespo. "O órgão possuía diversas
divisões e setores especializados, como a Divisão de Operações e a Divisão de
Contra-Informações. A operação do SNI envolvia a coleta de informações através
de uma extensa rede de agentes e informantes espalhados por todo o país, além de
parcerias com outros órgãos de segurança e inteligência, tanto civis quanto
militares. Essas informações eram analisadas e utilizadas para orientar as
ações do governo e das forças de segurança, bem como para reprimir opositores e
controlar a população", afirma o jurista. "O SNI se espalhava pelo
Estado, criando novas agências conforme necessário e atuando em ministérios
civis, universidades e empresas públicas."
Havia uma agência
central, em Brasília, de onde as ações eram coordenadas e onde todas as informações
coletadas eram catalogadas e processadas. Mas o SNI tinha uma estrutura
capilarizada, com agências regionais nas principais capitais e escritórios que
funcionavam ligados a instituições como fundações, autarquias, empresas
públicas e universidades. Eram nesses escritórios que as informações costumavam
ser coletadas. Para tanto eles contavam com duas fontes principais: os
"cachorros" e os "secretas". Os primeiros eram agentes que
atuavam de forma voluntária, muitas vezes funcionários públicos em cargos de
confiança que delatavam colegas na esperança de algum favorecimento. Já os
“secretas” eram agentes remunerados e treinados pelo SNI, infiltrados em
diversos setores da administração pública e privada. Tanto
"cachorros" quanto "secretas" comumente se infiltravam em
organizações, a fim de buscar informações e identificar potenciais opositores
do regime ditatorial.
Em um modelo
inspirado no funcionamento da CIA, a agência de inteligência dos Estados
Unidos, o SNI contava com secretarias paralelas, com poderes equivalentes, na
ideia de impossibilitar ao máximo que agentes inimigos conseguissem interferir
nas informações, já que entre essas estruturas estava prevista uma vigilância
mútua. O SNI tinha uma secretaria administrativa — que cuidava da burocracia —,
uma política — que fazia a vigilância sobre atividades partidárias, de
parlamentares e de suas famílias —, uma econômica — que acompanhava as empresas
privadas e o fluxo de moeda estrangeira entrando e saindo do país —, uma
ideológica — que acompanhava os potenciais subversivos — e uma psicossocial —
que vigiava as igrejas, a imprensa, os sindicatos, as escolas e outros
segmentos sociais.
Os
"secretas" eram coordenados pela secretaria política; os
"cachorros", pela ideológica. Além disso, na estrutura do SNI haviam
assessorias, que serviam para vigiar as secretarias — e eram por elas vigiadas.
As Assessorias de Segurança de Informações coletavam dados em instituições como
o Banco do Brasil, a Companhia Vale do Rio Doce e a Fundação Getúlio Vargas,
entre tantas outras. Já as Divisões de Segurança Nacional coordenavam as
coletas de informações, enviando-os à agência central. No modus operandi,
grampos telefônicos e censura postal eram praxe.
Segundo a avaliação
do historiador Martinez, a estrutura do SNI era "cara, burocrática,
ineficiente e numerosa", com "centenas de funcionários, em sua
maioria militares, raros civis". "Suas ações eram dissimuladas, mas
tornavam-se evidentes as suas interferências em nomeações, votações, acordos
partidários e eleitorais, auxílios e dificuldades a parlamentares, inclusive
governistas, e mesmo governadores de Estados", diz ele. "A sua
carteira funcional, ligada diretamente à Presidência da República, removia
obstáculos administrativos, políticos, partidários e pessoais. Erguia muros de
contenção e de autopreservação de identidades, responsabilidades, interesses e
beneficiários, em diferentes situações. Não faltaram relações cooperativas com
nomes e segmentos do mundo empresarial, financeiro, rural, jornalístico e
cultural."
<><> Repressão
e violência
De acordo com os
pesquisadores, o SNI participava dos episódios violentos da repressão
característicos da ditadura, principalmente porque estava diretamente ligado a
ações de órgãos como o Destacamento de Operações de Informações - Centro de
Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), conhecidos pela prática de tortura
contra opositores do regime. "O SNI esteve envolvido em práticas de
tortura e outras violações dos direitos humanos", salienta Crespo.
"Havia uma comunicação sistematizada entre o SNI e outros órgãos de
repressão, como o DOI-CODI. Esses órgãos colaboravam na troca de informações e
na coordenação de operações contra opositores do regime, incluindo prisões,
interrogatórios e torturas. Documentos e testemunhos de ex-presos políticos e
agentes de segurança confirmam que o SNI tinha conhecimento e, em muitos casos,
participava diretamente dessas práticas." O jurista lembra que mais de 300
mil brasileiros foram fichados pelo SNI, muitos deles tendo sido presos,
torturados e assassinados.
O historiador Sá
Motta lembra que, no início, o SNI "não atuava em operações específicas de
repressão", restringindo-se ao papel de "uma agência de informação e
inteligência”. “Mas com a intensificação da repressão política, ele começou a se
envolver mais [com a repressão], embora não fosse a sua função principal",
aponta. "Como o SNI era o grande órgão de informações, acabava se
envolvendo em todas essas atividades, com agentes envolvidos nesses aparatos
[como DOI-CODI, polícias militares e Forças Armadas]", acrescenta o
historiador. "O SNI monitorava tudo e tentava controlar tudo "Os
relatórios elaborados pela Comissão Nacional da Verdade colocaram em evidência
a cadeia de comando que, partindo do Palácio do Planalto, alcançava os porões
de delegacias e dos centros de detenção e de tortura clandestinos",
ressalta Martinez. "Havia relatos, vestígios e testemunhos que foram
confirmados pelo trabalho da Comissão Nacional da Verdade e pela abertura de
arquivos no exterior, sobretudo, nos Estados Unidos. O general [Ernesto] Geisel
[que foi presidente entre 1974 e 1979] consentiu na eliminação física seletiva
de opositores e dirigentes considerados vips políticos dos grupos clandestinos
e da luta armada. A ditadura nunca foi desinformada e o SNI nasceu com esta
finalidade: listar e localizar, em tempo recorde, potenciais adversários dos
generais-presidentes e seus patronos ideológicos e políticos", diz ainda o
historiador. Em outras palavras, era preciso "neutralizá-los",
conforme a conveniência e os riscos.
Fonte: BBC News
Brasil
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